14 Julho 2023
O podcast De Poa recebe o professor Francisco Eliseu Aquino, do Centro Polar e Climático da UFRGS, para uma conversa sobre eventos climáticos extremos no RS.
A entrevista é de Luis Gomes, publicada por Sul21, 13-07-2023.
O episódio desta semana do De Poa, podcast do Sul21 em parceria com a Cubo Play, recebe o professor Francisco Eliseu Aquino, do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Aquino conversa com Luís Eduardo Gomes sobre a maior incidência de eventos climáticos extremos. Eles estão mais frequentes e mais fortes? Quais as causas para isso? Estamos preparados?
Durante o programa, gravado em 21 de junho — antes dos eventos desta semana –, o professor explica como se formam os ciclones extratropicais, como os que atingiram o Estado em junho e nesta semana, e quais os fatores fazem com que estes fenômenos resultem em eventos climáticos extremos. Segundo Aquino, os ciclones extratropicais são eventos que sempre aconteceram no Rio Grande do Sul, mas, em razão das mudanças climáticas, estão cada vez mais acompanhados de períodos de chuva intensa e concentrada.
“Quando nós falamos do inverno gaúcho, a gente costumava dizer que o inverno teria quatro frentes frias, e geralmente as frentes frias estão associadas a um ciclone extratropical, seria um inverno com chuva regular e mais frio. Nas últimas décadas, nós percebemos que o número de ciclones ou número de frentes até pode ser o mesmo de um padrão típico de inverno, o detalhe é que, associada a essa frente fria, o evento de precipitação concentrada em algumas regiões é o que gera desastres. Então, a percepção e a ciência ambas estão com a mesma informação, o clima mudou, os eventos extremos são mais frequentes, estão mais presentes no Rio Grande do Sul”, diz.
O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.
Professor, nós tivemos nos dias 15 e 16 de julho de junho a passagem do ciclone extratropical pelo Rio Grande do Sul, especialmente pela Região Metropolitana e pelo Litoral Norte do Estado, deixando um rastro de destruição e de letalidade. É um desses chamados eventos climáticos extremos que têm aumentado nos últimos anos. Eu começo lhe pergunto justamente isso, esses eventos climáticos têm de fato aumentado? Isso é uma percepção ou estão se tornando mais corriqueiros?
É uma ótima pergunta e vou começar pela percepção. Se a gente conversa com os nossos avós, a gente vai perceber nitidamente que o clima do Rio Grande do Sul mudou, o clima do Sul do Brasil, do Pampa, mudou. A gente está, em média, com todas as estações mais quentes, as ondas de calor são mais longas, mais intensas. As ondas de frio são até mais intensas, porém são muito mais curtas. E os eventos de precipitação concentrada, que geram inundação, deslizamento e obviamente são fatais, também incrementaram. Então, como o clima do planeta mudou e todos os eventos extremos, os eventos meteorológicos, se intensificaram, não seria diferente no Rio Grande do Sul.
Quando nós falamos do inverno gaúcho, a gente costumava dizer que o inverno teria quatro frentes frias, e geralmente as frentes frias estão associadas a um ciclone extratropical, seria um inverno com chuva regular e mais frio. Nas últimas décadas, nós percebemos que o número de ciclones ou número de frentes até pode ser o mesmo de um padrão típico de inverno, o detalhe é que, associada a essa frente fria, o evento de precipitação concentrada em algumas regiões é o que gera desastres. Então, a percepção e a ciência ambas estão com a mesma informação, o clima mudou, os eventos extremos são mais frequentes, estão mais presentes no Rio Grande do Sul.
Quando nos referimos ao evento do ciclone extratropical dos dias 15 e 16 de junho, é importante destacar que o ciclone é um ciclone normal, típico dessa época do ano, e dentro da nebulosidade associada com a frente fria e o andar deste evento, concentradamente a precipitação se deu nas áreas elevadas ao norte da Região Metropolitana ou ao oeste do litoral. Quer dizer, aquela região que vai por Três Forquilhas, Maquiné, Caraá, Santo Antônio da Patrulha, etc., realmente é a região que mais choveu. Por isso, a gente detectou e inundações em diversos municípios, algumas são realmente calamidades, como Canoas, São Leopoldo e etc. Então, o evento ciclone extratropical não foi o mais intenso ou mais perigoso como outros que nós estudamos nos últimos três anos ou mais, mas a chuva concentrada associada ao evento, essa sim é o evento extremo que eu destacaria para os dias 15 e 16 de junho.
E o que diferencia um ciclone normal, como o senhor disse, que acontece diversas vezes ao ano, de um que vai registrar essa chuva concentrada muita rapidamente?
Aí eu coloco esse cenário de mudança ambiental global. O que nós temos hoje? Todos os oceanos do nosso planeta, no ano de 2023, estão anomalamente mais quentes. O que eu quero dizer? Os primeiros cem, duzentos, trezentos metros de massa d’água. O Atlântico Norte está em onda de calor oceânica, o Pacífico tem onda de calor. O Atlântico Sul, entre Santa Catarina e Uruguai, à medida em que a gente se afasta um pouco mais da costa, também está passando por uma onda de calor. Quer dizer, são semanas em que as águas estão anomalamente mais quentes. Um ciclone provoca a convergência do ar. O ar vai para a região central dessa baixa pressão e, se ele for com uma queda de pressão muito rápida, você vai entrar no ciclone que o vento é muito mais intenso, as tempestades são muito mais rápidas, o grau de destruição, de destelhamento e etc., é muito mais associado a vento, chuva forte e granizo. O que não foi esse caso. Esse caso a gente está com a chuva incrementada. E aí o que aconteceu? A posição do ciclone, dele se formar sobre o continente e evoluir em direção ao nordeste do Rio Grande do Sul, canalizou umidade vinda da Amazônia para abastecer as nuvens e elas terem vigor. Momentaneamente, a circulação dessa área de baixa pressão, que parece um vórtice para quem nos ouve, também canalizou a água e ar úmido do Oceano Atlântico. Portanto, a gente potencializou muito a formação de nuvens carregadas. E aí, a consequência: chuva concentrada de 12 a 24 horas sobre áreas de terreno elevado, que fazem com que essas pequenos arroios, pequenos córregos, encham rapidamente e, por consequência, quando encontra a área de várzea ou de planície de inundação, onde estão normalmente as localidades, dá uma travada e a onda cresce. Quer dizer, o nível sobe metros muito rápido e, claro, durante a noite ainda por cima. Então, se a gente combina isso, é o que tornou o evento extremo de precipitação associado a um ciclone que era previsto e que, a princípio, geraria a chuva. Inclusive, nos modelos de previsão e nos alertas, a chuva concentrada seria exatamente na região em que ocorreu. A combinação do relevo, os vales encaixados, isso é o que torna a previsão difícil. Porque, se realmente encher o que a gente imagina, será bastante rápido e, claro, o dano é grande, é amplo.
No ano passado, a gente teve um alerta da Defesa Civil que foi repercutido na imprensa, de que a gente teria um evento climático extremo, com chuvas intensas, e acabou não se concretizando naquela intensidade prevista. Em junho, a gente não teve esse mesmo nível de alerta. Qual a possibilidade de previsão de um evento com a intensidade como esse?
É uma ótima pergunta e um tema para horas de conversas. Mas, assim, a previsão meteorológica no mundo e no Brasil avançou rápido nas últimas duas décadas. Por quê? Você tem avanço da conectividade, da sociedade, e a previsão acompanhou isso com o lançamento de novos satélites, super computadores, modelo numéricos, treinamento dos novos meteorologistas, dos previsores e etc. Então, isso vai muito bem no Brasil. Falando do ponto de vista de um acadêmico que trabalha com pesquisa em mudanças do clima, tempo e clima no sul do Brasil, a previsão está excelente. Vamos falar tanto da previsão oficial, governamental do Estado, quanto de agências privadas. Os alertas têm ocorrido, por exemplo a formação de ciclones ou uma onda de calor, uma onda de frio, com mais de uma semana de antecedência. E, claro, os eventos extremos associados a essas previsões, a gente ganha um grau de maior acuracidade, vamos dizer assim, três dias antes. Então, inicia o processo de alerta e aí a municipalidade, Defesa Civil, todos os agentes envolvidos para aquela realidade local, vamos imaginar um município como Caraá ou Novo Hamburgo, têm a sua organização. Claro, dentro de um esquema rigoroso nacional. Isso tem funcionado bem, o Brasil não tá atrasado, muito pelo contrário.
Agora, a gente enfrenta desafios que são do processo da Defesa Civil. Toda essa estrutura nacional parte de 2011/12 para a atualidade, então ela é recente, em que a sociedade brasileira, a que tem mais acesso à informação ou não, está entendendo que existe a previsão, que existe a quem recorrer, que posso cadastrar meu celular para um SMS, para um WhatsApp, que eu vou continuar ouvindo o alerta no rádio, que eu vou ouvir um programa na televisão e etc. Isso tudo está organizado, funcionando bem. E, claro, no Brasil e no mundo, existe parte de sociedade que ou não prestou atenção ou não leva tão a sério porque não reconhece o risco. E aí, nós abrimos um outro portal para discussão que é educação. A educação ambiental, a educação da proteção, da primeira a atenção, do primeiro socorro, e também associado a essa questão dos eventos extremos. Então, nós precisamos continuar investindo na formação das escolas, professores, agentes comunitários, e as crianças entenderem o que é um risco dentro de casa. Um fogão é uma área de risco dentro de casa, ou uma chuva repentina de verão ou de inverno também é um risco. A percepção de risco para as pessoas, para as comunidades, também é um tema que vem sendo trabalhado, por exemplo, pela Defesa Civil. Isso é algo que você não resolve em um ano, nem em uma década. A gente acelerou bastante em uma década e meia no Brasil, eu não tenho dúvida quanto a isso, mas a gente vai encontrar, num país como o Brasil, aqueles rincões em que o cidadão diz assim: ‘Isso aí não existe, isso aí na época do meu avô já era assim’. Isso é um desafio.
Lembrando o início da tua pergunta, nós tivemos o ano passado alguns eventos extremos com alertas, com previsão, etc., e um que se destacou foi o do ciclone extratropical que se tornou vigoroso e evoluiu para um ciclone subtropical. Quer dizer, aquela área de baixa pressão que já está ao largo no oceano com água quente aqui e que pode vir a evoluir para o que seria um furacão. Então, na linguagem técnica, esse foi um evento que inclusive tem nome, Yakecan. Ele gerou tempestades fortíssimas, ventos fortes, ondas gigantes, ressaca, etc. Só que, por sorte, a atmosfera não se comportou como o modelo numérico de previsão do tempo. A atmosfera deixou o Yakecan ao largo do Rio Grande do Sul. O vento mais forte passou na região costeira e se afastando. Então, por isso, o alerta perdeu credibilidade pela opinião pública e lamentavelmente, na minha opinião, eu ouvi em comunicação de rádios ‘ah, mas a previsão não foi muito boa, não acertou’. Na minha opinião, é um erro.
O evento ocorreu, né?
O evento ocorreu e a grande população não entende do evento. Então, quando você tem uma comunicação que vai para massa, que acessa um grande público, você pode continuar colaborando para a falta de percepção e, diminuindo a atração da comunidade, aumentar confiabilidade no alerta. É claro que se eu, uma pessoa treinada, recebo uma mensagem de alerta, o primeiro raciocínio é: tomara que a atmosfera desvie, permita que isso aconteça e que eu fique ao lado. Segundo, que o evento aonde eu esteja, naquele ponto, não seja o mais intenso. Às vezes, do outro lado do vale, 50 km, choveu 350 mm e aqui choveu 220 mm. Então, eu não tenho dúvida que, quando a gente fala do Yakecan ou agora em junho de 2023, choveu mais de 300 mm em alguma encosta ali entre Santo Antônio da Patrulha e o vale, só que não tinha um pluviômetro fazendo a medida. E a gente não vai conseguir colocar pluviômetros por todos os metros quadrados. Mas o especialista, quando ele diz ‘eu tenho um alerta de previsão’, se a chuva passar de 10 mm por hora, ela já é uma chuva que causa transtornos, alagamento numa cidade. Se a previsão é acima de 100 mm em 24 horas ou acima 200 mm em 24 horas, já é uma previsão duríssima com alto risco. Então, eu, recebendo essa informação, vou pensar: eu vou sair da minha casa e vou pra casa de um parente que está numa localidade que realmente está mais elevada, mais segura, etc. Ou já vou deixar algo preparado, uma mochila, uma mala para a saída de emergência. Algo que a gente ensina para as crianças nas escolas em relação à Defesa Civil é que a criança, quando ela identifica que o avô tem dificuldade de mobilidade, que o avô usa muito remédio, tem receitas especiais, a família, através da criança, entende que precisa preservar essa informação, os documentos. O avô precisa, antes do evento de fato se configurar, já estar bem informado para a família saber por onde sair e para onde ir.
É como o senhor disse, esse evento de junho não só teve a formação do ciclone extratropical, como esses outros fatores como a umidade vinda da Amazônia. Então, nem sempre esses fatores vão acontecer conjuntamente para ter o pior cenário possível, como aconteceu agora.
Exatamente, foi o que aconteceu. O modelo, a previsão, os meteorologistas e os especialistas enxergavam o cenário da formação do ciclone que, com sua frente fria, se ela fica estacionária, fica ali alimentando a nebulosidade e começando a chover, etc., e a chuva intensificaria naquele setor. Agora, quanto intensificaria, se seria em horas ou em uma hora? A gente vai lembrar do evento no litoral de São Paulo no início desse ano. Pô, 600 mm, isso é algo impensável para Brasil, é algo quando a gente fala de climatologia de ilha, latitude equatorial com fenômeno meteorológico extremo, extremo, extremo. Então, o Sul do Brasil sempre foi palco, vamos dizer assim, de eventos de quatro estações do ano, o que é típico de cada uma das estações acontece. E, normalmente, por ter essas quatro estações com sua dinâmica da atmosfera bem marcada, você teria chuva o ano inteiro e eventos meteorológicos o ano inteiro. Com a mudança climática do planeta, em especial do Rio Grande do Sul, que tá um ponto um grau mais quente, por exemplo, chove mais do Rio Grande do Sul, só que você noticia mais estiagens, inclusive. Então, você noticia longos períodos sem precipitação e um curto período com a precipitação concentrada. O Rio Grande do Sul é um estado campeão em desastres no Brasil. Nós chegamos a perder mais de R$ 300 milhões ao ano, em média, por desastre no Rio Grande do Sul, R$ 300 milhões ou mais ao ano. Tem ano que passa de bilhão de reais os prejuízos pela atmosfera. Isso é só a inundação, é só vendaval, uma ponte, um pontilhão, uma escola, uma rua e etc. Tanto do público, quanto do privado. E isso não existe ressarcimento, não existe. Por mais que a gente nvista em seguro, etc., nenhum país consegue recuperar efetivamente isso. Então, só o estado consegue fazer esse trabalho, é um trabalho de longo prazo e, como eu disse no início da nossa conversa, a gente tem que investir na educação. Algo que, na minha opinião, o podcast aqui é fabuloso, porque é uma oportunidade de que eu saia da universidade, acesse um público que normalmente eu não consigo conversar e dizer olha: Defesa Civil, prefeitura, o governo do estado, se você tá no seu município, pergunta para o prefeito, pergunta para o teu vereador, como está a Defesa Civil do ‘meu município’. Quem é o agente Defesa Civil do meu município? Ele precisa de mais uma caminhonete, ele precisa de mais uma coisa? Isso é importante.
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“Os eventos climáticos se intensificaram no mundo, não seria diferente no RS”. Entrevista com Francisco Aquino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU