Código Florestal protege 80% da Amazônia, mas só 30% da savana. Fora da atenção internacional, o Estado tarda em declará-la patrimônio nacional. A destruição bateu recorde este ano. E metade do bioma já foi devastado em nome do agronegócio.
A reportagem é de Julia Braun, publicada por BBC Brasil e reproduzida por Outras Palavras, 13-06-2023.
Ainda não chegamos à metade do ano, mas o Cerrado já atingiu um novo recorde de desmatamento, tanto no mês de maio quanto no acumulado anual, da série histórica, iniciada em 2019.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre janeiro e maio deste ano foram desmatados mais de 3.320 km² do bioma, um aumento de 27% em relação ao mesmo período do ano passado. Para comparação, esse território desmatado nos primeiros cinco meses de 2023 equivale a quase duas vezes a área total da cidade de São Paulo.
A realidade não é nova. Em 2022, a ecorregião já havia registrado a maior taxa de desmatamento em sete anos: foram 10.689 km², segundo os dados oficiais divulgados pelo Prodes Cerrado, programa de monitoramento do Inpe. Ao todo, 110 milhões de hectares do bioma (49% do total) já foram destruídos, sendo substituídos pelo cultivo extensivo de commodities agrícolas, principalmente soja, milho, cana-de-açúcar e algodão, ou usado para extração de matérias-primas voltadas à produção industrial.
Enquanto o Cerrado bateu recordes de destruição nos primeiros cinco meses de 2023, o desmatamento na Amazônia Legal caiu 31% na comparação com o mesmo período do ano passado. Foram 1.986 km² de área desmatada entre janeiro e maio. Em termos absolutos, esse total representa quase metade do que foi registrado no Cerrado, sendo que a floresta no norte do Brasil tem quase o dobro da área da região savânica.
Especialistas afirmam que é necessário cautela ao interpretar os dados de desmatamento em épocas de chuva, já que a alta cobertura de nuvens pode aumentar o tempo de detecção dos alertas de desmatamento. Ainda assim, todos afirmam que a situação é preocupante. A devastação da vegetação nativa para uso da terra por atividades de agricultura, pecuária e mineração preocupa especialmente por suas consequências brutais para a dinâmica hídrica nacional e no cone sul do continente e, consequentemente, na produção de alimentos na região.
Fonte: Reprodução | BBC Brasil
“O Cerrado é o bioma mais ameaçado do Brasil e talvez um dos mais ameaçados do mundo”, diz Yuri Salmona, geógrafo e diretor executivo do Instituto Cerrados, que explica que, por muitos anos, a Mata Atlântica esteve sobre grande risco, mas nas últimas décadas foi alvo de fortes esforços de conservação, ao contrário da área de savana.
Segundo o pesquisador, é no período entre maio e junho que costumam ser registradas as maiores taxas de desmatamento no Cerrado, por conta do clima. “Ainda estamos entrando nesse período, o que significa que podemos esperar números ainda piores nos próximos meses.”
Segundo os especialistas consultados pela BBC News Brasil, grande parte da discrepância entre os números mais recentes de desmatamento no Cerrado e na Amazônia pode ser explicada por leis mais permissivas na área de savana.
Embora seja o segundo maior bioma da América do Sul, o Cerrado é o que tem a menor porcentagem de áreas sobre a proteção integral no país. Enquanto o Código Florestal protege 80% da mata localizada em áreas privadas na Amazônia contra o desmatamento, as reservas legais cobrem apenas de 20% a 35% do Cerrado. Ou seja, a lei estabelece uma proporção quase oposta para os dois biomas.
Ao mesmo tempo, apenas 8,21% da área total da savana é legalmente protegida com unidades de conservação (UCs), contra quase metade da floresta do norte. “Historicamente, o Cerrado foi escolhido para morrer”, diz a ecologista Rosângela Azevedo Corrêa, professora da Universidade de Brasília (UnB) e diretora do Museu do Cerrado, que classifica ainda a legislação como “desastrosa” para a ecorregião.
Fonte: Reprodução | BBC Brasil
A especialista afirma que uma legislação mais permissiva no Cerrado em relação à Amazônia também não faz sentido do ponto de vista científico, já que as duas áreas estão fortemente relacionadas e dependem uma da outra para sobreviver. “Todos os rios da margem direita do Amazonas dependem da água das entranhas do Cerrado”, diz. “Se o Cerrado morrer, metade da Amazônia morre junto.”
O geólogo Yuri Salmona diz ainda que é preciso pensar em políticas públicas para Amazônia e Cerrado juntos. “Mais de 80% do desmatamento no país acontece nesses dois biomas e a região onde se encontram os maiores índices de desmatamento da Amazônia Legal compreende o bioma Cerrado”, afirma. “Criar políticas públicas separadas pode deslocar o desmatamento de um bioma para o outro, pois os responsáveis pela destruição buscam novas áreas para seguir com seus negócios.”
Há ainda, segundo os pesquisadores ouvidos pela reportagem, mais iniciativas voltadas para a proteção da Amazônia do que para o Cerrado, apesar da situação mais urgente da área de savana. “Sabemos que o novo governo Lula ainda está se estruturando e lidando com a falta de estruturas e o desmonte promovido pelo governo anterior, mas até o momento se priorizou muito mais a Amazônia do que o Cerrado”, diz o diretor executivo do Instituto Cerrados. “Temos esperanças de que isso possa mudar, mas precisamos de demonstrações dessa vontade política logo.”
O geólogo afirma também que os números alarmantes dos últimos meses podem ser uma resposta de agricultores e pecuaristas ao novo governo, algo como uma “corrida” pelo desmatamento antes que novos mecanismos de proteção sejam instalados. Já Rosângela Azevedo Corrêa vê as indicações dos ex-governadores Rui Costa (Bahia) e Flávio Dino (Maranhão) para, respectivamente, ministro da Casa Civil e ministro da Justiça, como um ato simbólico do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Bahia e Maranhão são dois dos Estados onde mais se continua destruindo o Cerrado e, ainda assim, dois ex-governadores foram nomeados ministros”, diz. “É por isso que do ponto de vista político, os dados de desmatamento recentes não surpreendem tanto.”
Dados do Inpe classificam os Estados do Tocantins e de Goiás como os responsáveis pelo maior incremento de desmatamento acumulado nos últimos 20 anos. Eles são seguidos por Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia. “A invisibilidade do Cerrado se tornou política pública no Brasil, infelizmente”, diz Corrêa.
A professora da UnB acredita ainda que há falta de conhecimento da sociedade brasileira sobre o Cerrado e sua situação delicada, o que colabora para uma certa priorização da Amazônia em detrimento da savana. “A população não conhece o Cerrado e, portanto, não luta para defendê-lo”, diz. “Em uma de minhas pesquisas analisei 20 livros didáticos utilizados nas escolas de Ensino Fundamental do Distrito Federal e, quando muito, eles trazem uma página sobre o Cerrado, com uma ou outra foto do Lobo-guará e do Ipê-amarelo”.
Outro ponto levantado por especialistas é o fato do Cerrado não ser patrimônio nacional do Brasil, como a Amazônia, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona Costeira. Uma proposta de emenda para alterar a Constituição Federal e incluir o Cerrado e a Caatinga na lista de patrimônios está há 13 anos em tramitação no Congresso. A PEC passou em janeiro de 2023 pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados e está pronta para ser votada em Plenário. “O fato do Cerrado não ser patrimônio enquanto quase todos os outros são é um sinal da predileção do Estado brasileiro, que reflete nas políticas nacionais”, diz a bióloga Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA).
Outro ponto apontado como significativo pelos pesquisadores é o baixo interesse despertado pela preservação do Cerrado fora do Brasil, especialmente quando comparado à atenção recebida pela Amazônia. “Líderes internacionais quando vêm ao Brasil só visitam a Amazônia”, diz Rosângela Azevedo Corrêa, que cita as doações ao Fundo Amazônia, destinado à proteção e desenvolvimento da região, como consequência positiva da fama desse bioma no resto do mundo. “Mas o governo brasileiro decidiu destinar apenas 20% do fundo para os demais biomas brasileiros. Ou seja, cinco biomas tendo que dividir essa parcela”.
Nurit Bensusan afirma que o interesse despertado e as campanhas massivas realizadas pela Amazônia por vezes deslocam as atividades econômicas – e consequentemente o desmatamento – para o Cerrado, já que os produtores e pecuaristas passam a buscar outras regiões para se desenvolver. “Costumo dizer que o Cerrado é um bioma azarado, porque está no país com a maior floresta tropical do mundo, um dos ambientes mais devastados, que é a Mata Atlântica, e a maior planície úmida do planeta, o Pantanal”, diz.
Yuri Salmona cita ainda a atual legislação europeia que proíbe a venda no continente de produtos oriundos de desmatamento em florestas, mas permite a comercialização do que é fruto da destruição do Cerrado, como exemplo da falta de apoio ao bioma. A norma aprovada pela União Europeia (UE) em abril deste ano estipula que qualquer cultura que utilize local onde houve desmatamento ilegal, como na Amazônia, sofrerá sanções de compra pelos países do bloco.
A regulamentação oferece proteção à Amazônia, à Mata Atlântica e ao Chaco, os biomas tipicamente florestais da América do Sul, mas não trata do Cerrado. “O Brasil precisa impulsionar acordos internacionais específicos que proíbam, por exemplo, o consumo de soja e outros produtos agropecuários que venham do desmatamento do Cerrado ou pelo menos pleitear uma revisão da lei aprovada na União Europeia”, diz. “Não faz sentido só importar as soluções usadas para a Amazônia.”
Segundo especialistas, a destruição do Cerrado pode impactar diretamente na biodiversidade e no abastecimento hídrico não só do Brasil, como de outros países na região do Cone Sul. O bioma é conhecido como “berço das águas” por sua enorme capacidade de abastecimento. Oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras — como as dos rios São Francisco e Paraná — nascem no território do Cerrado, que é também o segundo maior bioma do país, só atrás da Amazônia.
“O Cerrado funciona com um distribuidor de águas para várias bacias hidrográficas. Mas o processo de armazenamento e distribuição hídrico depende da interação entre atmosfera, vegetação e solo”, explica Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB). Segundo a bióloga, que é hoje uma das principais referências no bioma Cerrado, além do impacto nas águas superficiais, a alteração da cobertura de vegetação tem efeito direto também no retorno de água para atmosfera pela transpiração das plantas. “É por isso que diversos estudos consecutivos apontam que o Cerrado como um todo está se tornando mais seco e mais quente”, afirma. “Estamos cortando várias conexões que fazem o sistema funcionar produzindo água para outros biomas".
Uma pesquisa realizada por Yuri Salmona com o apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), mostrou que os rios do Cerrado perderam 15,4% de sua vazão de água por causa do desmatamento e das mudanças climáticas entre 1985 e 2022. A perspectiva de futuro também não é nada animadora: um terço do volume de águas (34%) tende a ser perdido até 2050 caso a destruição do bioma continue no ritmo atual.
E interferir no ciclo hidrográfico da região significa não só diminuir a oferta de água que chega nas torneiras da população brasileira, mas também de países como Argentina, Paraguai e Uruguai, segundo especialistas. Isso porque o Cerrado é componente importante para o ecossistema do Rio Paraná, que é também o principal curso de água formador da Bacia do Prata, a segunda maior da América do Sul e a quinta maior do mundo, com aproximadamente 3,1 milhões km².
Compartilhada por Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, estima-se que cerca de 50% da população desses cinco países se concentre em seu território. Além disso, a bacia ainda alimenta o Aquífero Guarani, um reservatório subterrâneo capaz de abastecer várias cidades no Brasil, na Argentina e no Uruguai. “De 1985 para cá, nós perdemos 19,7 mil metros cúbicos de água por segundo nas bacias analisadas, o equivalente à vazão do rio Paraná. É como se tivéssemos jogado fora o rio Paraná inteiro nesse período”, explicou Salmona à BBC Brasil. “Os aquíferos não se detém nas fronteiras. Ou seja, o impacto é de toda uma região do continente sul-americano”, diz Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA).
Os profissionais consultados pela reportagem afirmam ainda que o desmatamento do Cerrado e a diminuição da vazão da rede hídrica têm efeito direto na produção de alimentos em todas as áreas afetadas. Além da dependência da água para irrigação das plantações, a agricultura e a pecuária são diretamente impactadas pela instabilidade climática e pela contaminação por agrotóxicos e outros resíduos deixados pelas atividades econômicas. “À medida em que se desmata para criação de novas áreas de agricultura, o clima e a produção de chuvas se tornam mais erráticos e a temperatura mais alta, alterando as condições que são importantes para a produção de alimentos”, diz Mercedes Bustamante.
E o Cerrado é considerado por muitos atualmente o “pilar da agricultura brasileira”. Sozinho, o Brasil alimenta 900 milhões de pessoas por ano atualmente. O país tem hoje 79 milhões de hectares em áreas plantadas, dos quais 36 milhões são dedicados à soja. Metade desse total está no Cerrado, onde o cultivo de soja avançou sobre 16,8 milhões de hectares nos últimos 36 anos. “Desmatar o Cerrado é um tiro no pé do próprio setor agrícola”, resume Bustamante.
O Cerrado também tem um imenso valor para a diversidade de espécies. A ecorregião é responsável por um terço da biodiversidade do país, com mais de 11 mil espécies identificadas de plantas, além de 837 espécies de aves, 185 de répteis, 194 de mamíferos, 150 de anfíbios e 14.425 de invertebrados. Por tudo isso, é considerada a formação savânica mais biodiversa do planeta, compreendendo cerca de 5% do total da biodiversidade mundial.
Imagem do Cerrado (Foto: Reprodução | Getty Images)
Mas um estudo publicado em 2017 na revista Nature mostrou que, se a trajetória de desmatamento do bioma continuasse como naquele momento e nenhuma grande mudança de política pública fosse implementada, uma extinção massiva de espécies poderia estar no horizonte.
Por fim, o Cerrado tem ainda uma capacidade incrível de estocar carbono em suas raízes profundas e no solo. Desmatar a sua vegetação, portanto, significa imediatamente emitir uma quantidade enorme de gás carbônico e metano. Atualmente, segundo Yuri Salmona, o desmatamento no Cerrado já emite mais CO2 que toda a indústria brasileira.
À BBC News Brasil, o Secretário Extraordinário de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente, André Lima, afirmou que houve um aumento médio de 100% nas ações de autuação e fiscalização ambiental realizadas pelo Ibama em todos os biomas do país.
Segundo ele, a fiscalização acontece “em um ritmo e volume muito mais intenso do que no mesmo período do ano passado” apesar do “sucateamento do Ibama pela gestão anterior”. Lima disse também que uma parte importante dos casos de desmatamento em Estados onde o Cerrado está concentrado, como por exemplo a Bahia, foram registrados no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural, cuja fiscalização é feita pelos governos estaduais. “Estamos requerendo estas informações a todos os Estados, com foco no Cerrado, para entender o que é desmatamento legal e o que é ilegal e poder estruturar as próximas ações”, afirmou.
O secretário também disse que o governo trabalha a partir do que é estabelecido pela lei federal em vigor desde 2012, sobre a qual não tem controle. Além disso, segundo Lima, o governo planeja o PPCerrado, um plano de ação dedicado exclusivamente ao bioma e elaborado a partir de uma iniciativa de consulta à sociedade civil e à Academia.
O secretário afirmou também à BBC Brasil que não tem conhecimento de iniciativas do governo brasileiro para influenciar a legislação europeia. “Não queremos que nenhum parlamento europeu se mobilize para mudar a legislação nacional, então não faremos o inverso”, disse. “A obrigação do Estado brasileiro é implementar a legislação de proteção da vegetação nativa no Brasil, que é o nosso Código Florestal. E vamos fazer isso sem prejuízo aos mecanismos e instrumentos econômicos que possam estimular o não desmatamento de áreas passíveis de supressão pela legislação em vigor”, afirmou. Segundo Lima, esse é o grande desafio para que se atinja a meta de desmatamento zero até 2030 assumida pelo Brasil.