21 Abril 2023
Em seu início, governo entra num labirinto de juros elevados e “austeridade suave”, quando precisaria elevar despesa pública para a reconstrução do país. É preciso enfrentar o financismo, que tenta capturar a política econômica através da monetária.
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 18-04-2023.
Dentre as inúmeras aberrações que marcam o processo de tomada de decisões do Banco Central (BC) encontra-se a famosa pesquisa Focus. A cada segunda-feira, as páginas da instituição divulgam um relatório contendo as chamadas “expectativas de mercado” a respeito de algumas das variáveis mais relevantes para a conformação dos cenários macroeconômicos futuros. O “pequeno detalhe” é que os questionários elaborados pelo órgão responsável pela regulação e fiscalização do sistema financeiro só são respondidos por pouco mais de uma centena de pessoas. Trata-se de um seleto grupo escolhido a dedo, formado por dirigentes e integrantes do alto escalão de bancos e de empresas que atuam no financismo.
Assim a direção do BC ausculta apenas o que esse pessoal tem a dizer sobre o crescimento do PIB, sobre os níveis de inflação, sobre a taxa de câmbio e sobre a própria taxa oficial de juros. E a partir de tais opiniões nada descomprometidas e tampouco ancoradas em alguma neutralidade técnica, os nove membros da diretoria do BC se travestem de membros do Comitê de Política Monetária (Copom) a cada 45 dias e definem o patamar da Selic. O nível de captura do órgão regulador é absolutamente flagrante e não apresenta a menor cerimônia em revelar a que tipo de interesse se prestam seus dirigentes.
Nunca são ouvidos ou chamados a debater e emitir opiniões aqueles economistas e/ou profissionais que não rezem fielmente pela cartilha do dogma conservador. As posições de professores universitários ou pesquisadores não são levadas em consideração, pois talvez incomodem ao questionarem os fundamentos da política monetária equivocada e contrária aos interesses da maioria da população. Tudo se passa como se não houvesse alternativa à ortodoxia e ao arrocho da taxa de juros. Trata-se de um enorme engodo, pois é mais do que sabido que a economia não é uma ciência exata. É um campo do conhecimento que pertence ao ramo das ciências humanas e sociais. Sempre existem diferentes opções, em especial quando se trata de decisões de política econômica e de políticas públicas a serem adotadas pelos governos.
Pois o Relatório Focus divulgado no começo desta semana traz uma informação interessante. Pela primeira vez, a pesquisa aponta para uma redução nas avaliações da taxa de juros. Os questionários revelam uma expectativa de que a Selic talvez possa sofrer uma ligeira diminuição, uma vez que os 12,75% esperados no relatório anterior transformaram-se nos 12,50% divulgados atualmente. Esse dado é um indicador de que o Copom possa realmente promover uma ligeiríssima, quase imperceptível, queda na taxa, depois de um longo período em que a mesma não sofreu esse tipo de mudança para baixo. Muito pelo contrário, em 5 de agosto de 2020 ocorreu a última reunião em que o comitê havia optado por baixar a taxa. À época, ela desceu de 2,25% para 2% anuais. Desde então, o colegiado apenas veio promovendo uma escalada criminosa para os atuais 13,75%, que foram atingidos em agosto do ano passado, patamar de onde não mais saiu até o presente momento.
Ao que tudo indica, o próprio sistema de informações, que opera formal e informalmente no interior do financismo, acusa as consequências do movimento patrocinado pelo presidente Lula e por parte de seus colaboradores mais próximos no sentido de denunciar o exagero dos níveis atuais da Selic. Depois da aprovação da lei da independência do BC em 2021, todos os integrantes da atual diretoria do órgão foram nomeados por Paulo Guedes e pelo ex-presidente genocida. Ancorados em um mandato fixo, não podem ser substituídos por outros de confiança do Chefe do Executivo. Com isso, são talvez os últimos bolsonaristas infiltrados em um governo que ganhou as eleições com um programa contrário a tudo aquilo em que eles acreditam, em especial no que se refere à economia.
O comportamento do presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem sido o de promover uma verdadeira sabotagem, opondo-se à vontade de Lula em implementar um programa que mire no crescimento das atividades e no desenvolvimento social e econômico do Brasil. Afinal, desde a confirmação da vitória da oposição no pleito de outubro passado, já foram realizadas 3 reuniões do Copom e em todas elas a decisão foi por manter a taxa nos estratosféricos 13,75%. Na verdade, trata-se de uma afronta ao nosso processo democrático e republicano, um tapa na cara da maioria da população que votou pela mudança e pela retomada de um projeto que promova um novo ciclo desenvolvimentista.
Assim, face às amplas pressões que passou a sofrer, a direção do banco talvez opte por oferecer algum sinal de trégua. Mas é importante relembrar que uma diminuição de 0,25%, de 0,5% ou mesmo de 1,0 % na taxa referencial durante a 254ª reunião do Copom, a ser realizada entre 2 e 3 de maio, não podem ser considerados suficientes para alguém que prometeu durante a campanha eleitoral realizar 40 anos em 4. Em qualquer das hipóteses acima aventadas de eventual redução na Selic, o Brasil ainda continuaria a ser o campeão mundial no quesito taxa real de juros. Uma loucura!
As dificuldades enfrentadas por Lula tornam-se ainda mais graves quando se introduz outros aspectos da política econômica no debate. Para começo de conversa, estamos diante de um flagrante absurdo, situação em que um presidente da República recém-eleito e com legitimidade para governar seja impedido de decidir a respeito da política monetária. Mas, mesmo assim, ainda lhe restaria um conjunto amplo de ferramentas associadas à política fiscal para conseguir alavancar um programa de reconstrução nacional. O problema é que também neste domínio existem obstáculos ao exercício de suas funções no Palácio do Planalto. Trata-se da Emenda Constitucional (EC) 95, aquela que introduziu o famigerado teto de gastos como regra de proibição de elevação de despesas orçamentárias por longos 20 anos.
Durante a transição política no final do ano passado, o novo governo terminou por aceitar uma armadilha. Foi abandonada a opção de simplesmente revogar o teto de gastos, medida que seria a mais adequada às necessidades do país. Foi elaborada a EC 126, que contém um dispositivo que viria a perturbar o efetivo início do terceiro mandato de Lula. De acordo com o texto rapidamente promulgado, o teto de gastos só deixará de ter validade após a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma lei complementar “com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico”.
Pois a grande surpresa foi o processo dirigido pelo ministro da Fazenda para elaborar tais regras. A preocupação de Haddad parece ter se concentrado em agradar aos setores ligados ao sistema financeiro e ao entorno de Roberto Campos Neto. Assim, o conjunto a ser apresentado pelo Chefe do Executivo ao Parlamento não contou com a participação nem as sugestões dos profissionais não vinculados ao financismo nem ao pensamento ortodoxo. As entidades da sociedade civil, do movimento popular e do sindicalismo tampouco foram chamadas a dizer o que pensavam respeito do assunto.
Ora, quem foi que disse que apenas banqueiros podem opinar sobre política monetária, sobre política fiscal, enfim sobre política econômica? Os trabalhadores, os aposentados, os servidores públicos, os profissionais liberais e suas representações têm muita a colaborar nesse sentido. Mas o caminho escolhido foi outro. Assim, ao que tudo indica, a proposta deverá se aproximar bastante dos formatos de uma âncora ou de um calabouço fiscal, termos utilizados pelos “especialistas” do campo conservador para qualificar aquilo que esperam de novo regime que deverá substituir o teto de gastos.
Os primeiros exercícios realizados a partir das informações vazadas sobre o modelo em gestação não se revelaram nada animadores. Caso fosse o novo modelo tivesse sido aplicado desde 2003, teríamos sofrido perdas entre 8 e 10 trilhões de reais na capacidade de despesas realizadas. Ao insistir em conter as despesas face ao crescimento das receitas públicas, a meta continua sendo a de realizar desnecessários superávits primários como prioridade de resultado de política econômica. Lembremos que isso significa simplesmente comprimir o resultado entre receitas e despesas não-financeiras, de modo a que o saldo positivo desta conta seja totalmente destinado a pagar as despesas de juros da dívida limite. E, como já ocorria na regra anterior, para esse tipo de gasto não existe teto algum. Assim, mais uma vez, no quesito transferência de recursos públicos para os integrantes do topo de nossa pirâmide da desigualdade, o céu continua sendo o limite.
Não basta apenas o discurso dos integrantes da equipe de Haddad e de Tebet de que o novo arcabouço fiscal é mais adequado do que o regime do teto de gastos. Ora, qualquer proposta seria melhor do que o desastre representado pela proibição pura e simples de elevação de todo o tipo de despesa. No entanto, a sociedade não deveria perder a oportunidade histórica representada pela eleição de um novo governo progressista e introduzir regras mais flexíveis e que tenham por característica fundamental atuarem como contracíclicas, como se diz no jargão do economês. Sim, pois ao contrário do que deixa a entender o senso comum, é no momento de recessão ou de estagnação da economia que o Estado deve elevar seus gastos e seus investimentos.
Por melhores que sejam as intenções de sofisticar o modelo com bandas e margens para atenuar os efeitos indesejados de compressão das despesas, o fato é que ele corre o risco de inviabilizar os desejos de Lula de fazer mais e melhor do que ele realizou nos dois primeiros mandatos. A superação do quadriênio de destruição perpetrado pelo governo anterior exige um volume substancial de investimentos públicos e de gastos do governo. A implementação de programas e de políticas públicas tão aguardados pela maioria da população não podem deixar de ser colocada em marcha por uma tecnocracia preocupada apenas em acompanhar índices bastante polêmicos e questionados, a exemplo da evolução da taxa de endividamento público ou da curva diferencial entre crescimento de receita e despesas, dentre tantos outros.
Lula sabe muito bem que a tal da fadinha mágica das expectativas não virá apenas por meio de uma eventual pequena redução da taxa Selic. Apostar apenas na política monetária para obter a expressiva elevação necessária nos níveis de investimento em nosso país é um tremendo equívoco. Tudo leva a crer que Fernando Haddad, infeliz e ingenuamente, ainda acredita nessa hipótese de que o investimento privado vai liderar a nova fase de crescimento do PIB. Tanto que integrantes da equipe econômica ainda se valem das expressões dos tempos das missões do Fundo Monetário Internacional (FMI), recuperando frases absolutamente inadequadas, como as que o “Brasil precisa fazer seu dever de casa”. Ora, faz muito tempo que recuperamos nossa soberania nesse quesito da política econômica e não devemos satisfação a ninguém que não ao próprio povo. Quem seria essa figura anacrônica, esse professor disfarçado que estaria exigindo de nosso País tal tipo de sacrifício?
É fundamental para o sucesso do novo governo que Lula saia deste labirinto criado pela Selic elevada e pela ameaça do arcabouço fiscal. Como diz o lema oficial, “O Brasil voltou! ”. Mas para que essa volta seja de fato sentida pelo povo, é necessário que o governo coloque em marcha, de forma urgente, seu programa de retomada do desenvolvimento. E isso envolve a elevação das despesas e dos investimentos governamentais. A preocupação excessiva em apresentar resultados positivos aos olhos do financismo não é, com toda a certeza, a melhor estratégia para implementar esse projeto político e de país.
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Lula entre a Selic e o calabouço fiscal. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU