"O fenômeno da fome é muito mais frequente e devastador do que se imagina, pois atinge milhões de pessoas que mesmo comendo todos os dias passam fome. Trata-se (...) de considerar não apenas aqueles que morrem de fome, como também aqueles que vivem dramaticamente com fome", disse o geógrafo José Raimundo Sousa Ribeiro Junior ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 2008, seis anos antes de o Brasil sair do Mapa da Fome, em 2014.
Transcorridos quinze anos desde então, Ribeiro Junior retorna ao IHU para refletir sobre esta realidade e as possibilidades da sua superação, em videoconferência a ser ministrada na próxima semana, 16-03-2023, e transmitida pelo sítio do IHU, pelo Canal do YouTube e pelas redes sociais. Inspirado em Geografia da fome (1946), livro do geógrafo e médico Josué de Castro, o pesquisador caracteriza este problema social do seguinte modo: "A fome é individual ou coletiva; endêmica (sempre presente) ou epidêmica (ocorrendo em surtos); e total (que seria a inanição) ou parcial/oculta (fenômeno no qual a falta permanente de determinados elementos nutritivos leva lentamente grupos inteiros à morte, mesmo que esses comam todos os dias)".
Apesar dessas características, sublinha, há uma "desnaturalização da fome" no Brasil e no mundo e um contrassenso entre a produção de alimentos de uma determinada região e a fome, pobreza e miséria a que a população local é submetida. "Para Josué de Castro, a fome se configura como um fenômeno social, produzido pelo homem, e não pode ser explicada somente a partir de elementos naturais. Ao identificar a fome endêmica na Zona da Mata do Nordeste, uma região que apresentava todas as características naturais necessárias à produção suficiente de alimentos para sua população, Josué de Castro nos dá um exemplo de como a fome é um fenômeno produzido socialmente. Ainda no que se refere à desnaturalização da fome, Josué de Castro se contrapõe aos discursos malthusianos que tentam, através de uma abordagem demográfica, responsabilizar o próprio faminto pela fome. Não é difícil, ainda hoje, nos depararmos com esse tipo de discurso que vê no 'excesso de população' a principal causa da fome".
Segundo ele, "a fome, enquanto drama vivido cotidianamente, é sempre cruel" e revela "a desumanidade inerente à sociedade capitalista", observada nas grandes cidades.
Assim como Josué de Castro propunha que a problemática da fome fosse abordada de modo multidisciplinar, recentemente, Jung Mo Sung, teólogo e professor titular no PPG em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, ao comentar a retomada da temática pela Campanha da Fraternidade de 2023, disse que esta "não é somente uma questão social", ou um problema que deve ser abordado de modo restrito pelos programas sociais, mas igualmente "é um tema teológico-espiritual". Nesse sentido, propõe, "precisamos retomar, na Igreja e na sociedade, o debate sobre Deus e a fome". Para compreendermos melhor "a dor da fome" e "a importância da Campanha da Fraternidade, que coloca o tema da fome dos pobres – dos que não têm dinheiro para entrar no mercado capitalista e matar a fome – como um assunto teológico-pastoral, vale a pena discutir teologicamente a fome dos pobres", assegura.
O Pe. Joaquim Parron, missionário redentorista, professor de moral social na Faculdade Claretiana e integrante do projeto SOS Vila Torres, está inserido em uma favela na região central de Curitiba e há 40 anos atua nos meios populares, apoiando as lutas sociais. Ele ressalta que a manutenção da fome "é a negação da própria existência da pessoa humana".
Na videoconferência intitulada "Fraternidade e fome: da indiferença à responsabilidade", promovida pelo CEPAT em fevereiro deste ano, o religioso destaca as incongruências do projeto Brasil fazenda do mundo e a realidade social nacional. "O flagelo da fome no Brasil, com 33 milhões de brasileiros sem ter o que comer, é algo paradoxal, pois todos os anos o país bate recordes de produção de alimentos, de exportação de grãos para outros países. O mesmo país que é reconhecido como o celeiro do mundo está também entre os mais desiguais. Esta realidade questiona o tipo de sociedade que historicamente nos tornamos", complementa.
A fome, observa, quando analisada a partir da realidade cotidiana e concreta, "vai além dos números e estatísticas. Ela tem nome, tem rosto e tem história pessoal. Para nós, que acompanhamos as periferias, ela tem rosto, tem nome e tem lágrimas". Uma das consequências desse problema social, acrescenta, é a perda de vidas e da dignidade humana. "Sem a nutrição, perdemos talentos, perdemos dons. Como alguém conseguirá progredir na escola? Como irá conseguir crescer em conhecimento, sabedoria, se não tem nutrientes suficientes para que possa acompanhar esse processo de aprendizagem?”
O tratamento teológico-espiritual desta questão está diretamente ligado à insistência do Papa Francisco na garantia da dignidade da pessoa humana, de modo que todos tenham acesso aos 3 T's: terra, teto e trabalho. "Este encontro nosso", afirmou Francisco no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em 2014, "responde a um anseio muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos; um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais longe da maioria: terra, teto e trabalho. É estranho, mas, se eu falo disso para alguns, significa que o papa é comunista. Não se entende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja".
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior é professor adjunto da Universidade Federal do ABC. É graduado, mestre e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP. Entre 2013 e 2014, realizou doutorado sanduíche no Center for Place, Culture and Politics (Universidade Municipal de Nova York) sob supervisão do professor David Harvey e com apoio do convênio CAPES/FULBRIGHT. Entre 2019 e 2021, foi professor visitante do Instituto Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, tendo atuado junto ao Centro de Práticas e Pesquisas em Alimentação e Nutrição Coletiva – CPPNAC. Entre janeiro e maio de 2022, desenvolveu pesquisa de pós-doutorado vinculada ao Grupo de Trabalho Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome da USP. Desde janeiro de 2019, atua como representante da Associação dos Geógrafos Brasileiros no Conselho Municipal de Segurança Alimentar – COMUSAN-SP.