O professor, integrante da equipe de transição do novo governo Lula, se diz estarrecido com o que tem visto das informações vindas da atual gestão do Ministério da Educação
O professor Daniel Cara já suspeitava e até imaginava como se dava o chamado aparelhamento do Ministério da Educação durante o governo de Jair Bolsonaro. Ainda assim, depois de conhecer os meandros dos escaninhos do MEC, ele não esconde a surpresa. “Na transição, isto, que eu já desconfiava, ficou comprovado. Foi revelador observar que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, liderado por Damares Alves, deu a concepção educacional ao MEC, o que é absurdo e inaceitável”, diz. Por isso, dispara, sem meias palavras: “Jair Messias Bolsonaro tirou o Ministério da Educação da tomada e, ato contínuo, plugou o MEC na tomada da guerra cultural bolsonarista”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Cara detalha que na mesma proporção em que se preparava a tal guerra cultural, sufocava-se a política pública de educação no país. “O MEC não se dedicou ao direito à educação e optou por estrangular orçamentariamente as universidades e os institutos federais, realizar uma política de alfabetização ultrapassada e promover antipolíticas pedagógicas como a lógica do Escola sem Partido, da educação cívico-militar e da educação domiciliar, entre outras políticas equivocadas”, observa.
Entre as ações que considera prioritárias na nova gestão, o professor aponta o combate à fome a partir da escola. “Em contato com a agricultura orgânica e familiar, tive uma boa notícia: resolvendo orçamentariamente, já há produção e logística estruturadas para a melhoria da alimentação escolar”, adianta. Com relação à recuperação dos déficits de aprendizagem acumulados nos últimos anos, também já aponta caminhos para reversão do quadro. “Organizamos e sugerimos ações da creche à pós-graduação, com esmero e em interlocução intensa com a comunidade educacional”, conta.
E, pensando em financiamento da educação num percurso mais de médio e longo prazo, Cara se alinha aos especialistas que defendem a extinção do teto de gastos. “Se o teto permanecer, estabelecido pela Emenda à Constituição nº 95/2016, o país não terá como sustentar as universidades federais e o Sistema Único de Saúde”, reitera.
Daniel Cara
Foto: Jane de Araujo/Agência Senado
Daniel Cara é doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Ciência Política e bacharel em Ciências Sociais pela mesma instituição. É coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, membro titular do Fórum Nacional de Educação e do Conselho Universitário da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e, ainda, coordenador dos cursos de licenciatura da mesma instituição. Integra o grupo de trabalho em Educação da equipe de transição do novo governo Lula.
IHU – Que balanço faz da gestão Bolsonaro na área educacional? Quais os avanços e retrocessos?
Daniel Cara – Em poucas palavras, em relação ao direito à educação, Jair Messias Bolsonaro tirou o Ministério da Educação da tomada e, ato contínuo, plugou o MEC na tomada da guerra cultural bolsonarista. Na transição, isto, que eu já desconfiava, ficou comprovado. Foi revelador observar que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, liderado por Damares Alves, deu a concepção educacional ao MEC, o que é absurdo e inaceitável.
Eu já tinha a tese de que o Ministério da Educação estava subordinado à guerra cultural bolsonarista, sendo reduzido a um aparelho de propaganda, como instrumento para a disputa da hegemonia na sociedade. Contudo, na transição governamental pude perceber isso objetivamente, pois fui um dos responsáveis por visitar o MEC para a passagem de informações. Fiquei estarrecido.
Assim, concretamente não ocorreram avanços, apenas retrocessos. Até porque o MEC não se dedicou ao direito à educação e optou por estrangular orçamentariamente as universidades e institutos federais, realizar uma política de alfabetização ultrapassada e promover antipolíticas pedagógicas como a lógica do Escola sem Partido, da educação cívico-militar e da educação domiciliar, entre outras políticas equivocadas. Nunca o Brasil regrediu tanto em termos de educação, especialmente após a Promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Não será fácil reconstruir, mas tampouco é impossível. Estou esperançoso.
IHU – Recentemente, o senhor declarou que as linhas gerais do novo governo Lula na educação já estão definidas e serão alimentação escolar e recuperação da aprendizagem. Por que, segundo o governo, essas são as linhas mais importantes no momento e o que tem sido pensado para ser implementado a partir do próximo ano nesse sentido?
Daniel Cara – Sim. Coloquei isso como uma demanda do presidente, tratada concretamente é: um comando efetivo, resultado do contato de Lula com o povo brasileiro antes e durante a campanha presidencial. Lula é o político que tem maior interação e capacidade de observação junto ao povo. Inclusive, esses dois comandos foram dados por Lula durante debates de forma objetiva e direta.
Assim, eles precisam ser empreendidos e serão, pela futura equipe ministerial. Em contato com a agricultura orgânica e familiar, tive uma boa notícia: resolvendo orçamentariamente, já há produção e logística estruturadas para a melhoria da alimentação escolar. Ou seja, estamos adiantados.
Sobre a recuperação de aprendizagem, há muita negociação a ser feita junto a estados e municípios. Contudo, quero deixar claro: não teremos apenas estas duas prioridades. No âmbito da transição governamental, organizamos e sugerimos ações da creche à pós-graduação, com esmero e em interlocução intensa com a comunidade educacional. Fizemos muitas oitivas. A futura equipe ministerial receberá um material valioso para comandar o MEC.
IHU – Quais os maiores problemas enfrentados nas escolas em relação à violência? O que tem sido discutido neste período de transição a esse respeito e quais são as propostas para enfrentar essa problemática?
Daniel Cara – A principal questão é assumirmos que há um escalonamento do extremismo de direita no Brasil e ele tem sido o responsável por recrutar jovens, resultando nos ataques às escolas. Veja que não se trata de radicalização, como alguns dizem. O termo correto, segundo a linguagem acordada internacional, é precisamente extremismo de direita. E, sim, precisamos ter coragem de dizer: há células extremistas no Brasil, mobilizadas pela ideologia fascista, nazista e neonazista, organizadas na internet e que aliciam adolescentes e jovens.
Fiz a proposta de estudarmos o tema, diante da tragédia de Aracruz e – por consenso – a decisão da transição foi encarar o problema e propor soluções. Para encarar o problema, observando o que há de mais avançado dentro e fora do Brasil, mobilizei onze pesquisadoras e ativistas de diversas áreas. Mulheres que estudam o tema. E propusemos ações desde o sistema de justiça, como cooperação internacional (que já existe e precisa ser aprofundada) e estratégias de inteligência e monitoramento da internet, até soluções para sistemas de ensino, redes públicas, escolas e para os profissionais da educação, mães, pais e responsáveis.
O relatório é bem completo e pretende subsidiar a ação governamental. Esse tema não podemos mais jogar para debaixo do tapete. É preciso agir rápida e efetivamente.
IHU – Neste mês, o governo Bolsonaro bloqueou mais de 1,68 bilhão na Educação para cumprir o teto de gastos. Como o cumprimento do teto de gastos tem impactado a educação brasileira?
Daniel Cara – Em 2016, coordenei, como coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o furo estrutural do teto de gastos públicos federais: a participação da União no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica – Fundeb está fora desse teto. Contudo, isso é insuficiente. Se o teto permanecer, estabelecido pela Emenda à Constituição nº 95/2016, o país não terá como sustentar as universidades federais e o Sistema Único de Saúde. Assim, defendemos a PEC da transição como solução de emergência, mas queremos imediatamente o fim do teto dos gastos públicos federais.
IHU – Então, o senhor está entre os que sugerem um “revogaço” do teto de gastos no governo Lula?
Daniel Cara – É o que defendo. Revogar a EC nº 95/2016. O futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já afirmou que substituirá o teto de gastos por outro mecanismo fiscal, além de promover uma reforma tributária. Esse é o caminho.
IHU – Quais os principais desafios do novo governo na área da educação? Que questões são urgentes de serem enfrentadas nesta área?
Daniel Cara – Os desafios são hercúleos, mas podem ser resumidos na retomada do Plano Nacional de Educação 2014-2024. Ele precisa voltar a ser o instrumento de planejamento educacional do Brasil.
IHU – Simone Tebet seria um nome para assumir o Ministério da Educação?
Daniel Cara – Não será a Simone Tebet. E considero que o nome dela não seria bom, ainda que eu a respeite, contribuiu muito no segundo turno para vencermos Bolsonaro. Eu acredito no trabalho e Simone trabalhou pelo nosso projeto democrático. Mas a trajetória dela não foi na área da educacional e precisamos de gente que conheça a área para religar o MEC na tomada do direito à educação, de onde ele nunca deveria ter sido desligado.