Bráulio Dias também avalia que o novo governo deve fazer o Brasil retomar seu protagonismo global em conservação da biodiversidade.
A entrevista é de Aldem Bourscheit, publicada por ((o))eco, 05-12-2022.
Doutor em Zoologia pela Universidade de Edimburgo (Reino Unido) e oficial do Painel de Ciência para a Amazônia – ligado à Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas –, o biólogo e professor do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) Bráulio Dias é uma das maiores autoridades mundiais em conservação da natureza. Já foi secretário-executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica (2012-2017) e do Ministério do Meio Ambiente, na gestão de Izabella Teixeira. Rumo à Montreal (Canadá), onde participa da 15ª Conferência das Partes da Convenção (COP15), o especialista comentou sobre suas expectativas para o evento, que pode culminar num acordo mais efetivo para conter as aceleradas perdas globais de biodiversidade. Segundo ele, o planeta também pode ganhar um mecanismo para proteger áreas em alto mar, comumente alvo de pesca ilegal ou excessiva de variadas espécies. Confira abaixo os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail.
Qual o balanço entre propostas na COP15, como a de proteger 30% das terras e dos mares, e o atingimento parcial das Metas de Aichi pelos países?
A Meta 11 de Aichi, da proteção global de 17% das terras e 10% das áreas costeiras e marinhas, foi em grande parte atingida dentro dos limites das jurisdições nacionais, de suas áreas continental, mar territorial e zona econômica exclusiva. Um desafio agora é criar áreas protegidas em alto mar além das jurisdições nacionais, porque faltam mecanismos de governança em alto mar. Uma grande exceção é o Tratado da Antártica, pelo qual algumas grandes áreas protegidas foram criadas em anos recentes. Assim, se forem concluídas as negociações para a adoção de um tratado internacional vinculante sobre biodiversidade em áreas marinhas além das jurisdições nacionais, o mundo poderá finalmente ter um mecanismo legal para proteger áreas em alto mar. Além disso, a meta a ser aprovada na COP15 [o evento será realizado de 07 a 19 de dezembro, em Montreal, no Canadá], de proteger ao menos 30% das áreas continentais e marinhas até 2030, já é endossada por muitos governos e por um grande número de empresas que apoiam a iniciativa Business for Nature. Há grande probabilidade de que isso seja aprovado na COP15, com o entendimento de que os países poderão mobilizar todos os diferentes mecanismos de conservação, incluindo terras indígenas, territórios de outras comunidades locais, áreas militares, áreas de proteção de mananciais de água e áreas protegidas privadas.
Quais as dificuldades ou atores poderão emperrar a definição de metas na COP15? Por quê?
As principais dificuldades serão atrasos nas negociações provocados pela pandemia da COVID-19, que acumularam propostas ainda não negociadas (textos entre colchetes nas minutas de decisão), a relutância dos países ricos em assumir compromissos para ampliar substancialmente o aporte de recursos financeiros que apoiem a implantação das novas metas a serem adotadas na COP15 nos países em desenvolvimento. Nesse escopo, os únicos avanços até agora foram o anúncio da China, em outubro de 2021, da criação do Fundo Kunming para Biodiversidade, o anúncio da Alemanha durante a Climate Week em Nova York, em setembro, que incluem financiamentos anuais de até € 1,5 bilhão para conservação, e a ampliação do capital do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF), de US$ 4,1 bilhões para US$ 5,25 bilhões. Mas, no caso do GEF, lembremos que menos de um terço dos recursos financiam diretamente agendas de biodiversidade. O restante vai para temas como mudanças climáticas, mercúrio e combate à desertificação. Outra grande dificuldade é chegar a um acordo sobre como aplicar as regras de ABS (sigla em Inglês para Acesso e Repartição de Benefícios, desde o uso da biodiversidade) em relação ao aproveitamento de sequências digitais de recursos genéticos, incluindo proteínas, pois países ricos resistem a pagar por ganhos econômicos resultantes de uso destes banco de dados.
Ex-campeão mundial na criação de áreas protegidas, o Brasil deve ter qual papel na COP15? Na COP27 do Clima o país começou a retomar seu espaço no tabuleiro das negociações ambientais globais.
Infelizmente a COP15 e a agenda global de manutenção da biodiversidade não recebem tanta atenção no mundo e no Brasil quanto a agenda do clima, apesar de o país ser o mais rico em biodiversidade no globo. Apenas isso justificaria mais atenção a esta agenda, não apenas para conservação, mas também para uso sustentável da biodiversidade, com atenção às cadeias produtivas da sociobiodiversidade e às oportunidades da bioeconomia, bem como para a repartição dos benefícios econômicos gerados pelo acesso aos nossos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados. O Brasil possui diplomatas muito competentes que estão fazendo um bom trabalho nas negociações preparatórias para a COP15, apesar da falta de empenho do atual Ministério do Meio Ambiente. Espero que o novo Governo Lula envie representantes a Montreal para anunciar na COP15 suas intenções para o setor e iniciar conversas com outros países e organizações sobre oportunidades de cooperação com o Brasil.
O Brasil tem mais de 18% da área continental e mais de 26% da zona marinha legalmente protegidas. Como estimular diferentes setores a avançar na conservação da biodiversidade?
Creio que isto será perfeitamente possível no novo governo, quando forem retomadas as agendas estratégicas da criação de unidades de conservação e do reconhecimento de territórios indígenas, bem como a adoção de outras medidas efetivas de conservação baseadas em áreas, as chamadas OMECs, que podem ter variados modelos de gestão desde que apresentem resultados efetivos de conservação dos ecossistemas naturais.
Nesse sentido, além de unidades de conservação e terras indígenas, quais outros meios podem ser efetivos para conservar a biodiversidade?
Além desses, há os territórios quilombolas e de outras comunidades locais, áreas militares, áreas de proteção de mananciais e áreas protegidas privadas, áreas de restrição de pesca, as áreas de preservação permanente e as reservas legais determinadas pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa (o chamado Novo Código Florestal, de 2012), áreas de restrição de pesca, dentre tantos outros mecanismos possíveis.
Que esperas que a equipe de transição e novos titulares da área ambiental desenhem para a conservação da biodiversidade? O tráfico de vida selvagem pode ser abordado no reforço das relações com China e Estados Unidos?
Sim, a equipe de transição tem ótimos nomes e esperamos iniciativas importantes do novo governo, inclusive aproveitando as oportunidades financeiras da cooperação internacional. Certamente as políticas adotadas por Estados Unidos e China afetarão [a conservação da biodiversidade] no Brasil. A China obteve grandes avanços na última década na sua agenda interna ambiental, como anunciar recursos para a conservação em nações em desenvolvimento.
Iniciativas como da Opep das Florestas e do IPCC (o painel de cientistas climáticos das Nações Unidas), cujo último relatório sugere a proteção de 30% a 50% dos ambientes terrestres, de águas doces e salgadas, podem incentivar o cumprimento de metas, políticas e ações conservacionistas nacionais e privadas?
Um dos grandes desafios mundiais é fazer os governos e as empresas cumprirem suas obrigações e compromissos internacionais e nacionais.
Vejo que isso depende ainda mais da cobrança da sociedade, dos consumidores, dos investidores e mercados e do judiciário. Ao mesmo tempo, cresce o movimento de judicialização do não cumprimento de compromissos governamentais e das empresas em relação ao meio ambiente e ao clima.
Qual o balanço do atual governo em conservação da diversidade biológica? Nos parece que foi um dos piores desempenhos da história.
O Brasil enviou um excelente 6º Relatório Nacional para a CDB em 2019 em inglês, mas infelizmente o Ministério do Meio Ambiente não disponibilizou em seu portal a versão em Português, com cerca de 1000 páginas (ela pode ser conferida aqui). Esperamos que o novo Governo Lula retome as agendas de criação e fortalecimento de Unidades de Conservação e de reconhecimento de Terras Indígenas, mas será importante que o setor privado e os governos estaduais e municipais também façam a sua parte. Infelizmente os retrocessos do Governo Bolsonaro foram imensos, tanto na agenda ambiental, como na área de ciência e tecnologia, educação, saúde e cultura. O novo governo terá uma grande tarefa para retomar essas e outras agendas – não apenas para revogar os atos daninhos do atual governo, mas também para inovar e explorar outras formas de avançar nestas agendas.
A pandemia de Covid-19 não fomentou políticas e ações mais amigáveis à natureza na grande maioria dos países. Já somos mais de 8 bilhões de pessoas no planeta. Como conservar a biodiversidade diante de pressões cumulativas como essas?
A relação entre esta pandemia, zoonoses e crimes como o tráfico de vida silvestre ainda não é bem entendida pela maioria da população brasileira. Alguns países fizeram um esforço para retomar o crescimento econômico pós COVID-19 promovendo opções mais sustentáveis, mas não se observou muito disso no Brasil, com algumas exceções como as propostas do Consórcio de Governadores da Amazônia e do Consórcio de Governadores pelo Clima, da agenda de redução de riscos sociais, ambientais e climáticos do Banco Central, e de iniciativas de algumas empresas agroexportadoras preocupadas com possíveis restrições de acesso aos mercados dos países mais ricos.
Supostas necessidades humanas ainda são usadas para atacar e desfazer áreas protegidas, como fez o governador de Rondônia. Por que esse discurso ainda cola?
Parte é por ignorância, parte por interesses econômicos de curto prazo e parte por ideologia, por acreditarem que a agenda ambiental é um impedimento ao crescimento econômico, como muito foi promovido pelo bolsonarismo.