26 Agosto 2022
Após um ciclo de derrotas eleitorais, o fracasso dos presidentes-gerentes e o esgotamento do discurso trumpista na região, qual é o horizonte das forças políticas conservadoras para além do antiprogressismo?
A reportagem é de Naiara Galarraga Gortázar, Catalina Oquendo, Federico Rivas Molina e Elena Reina, publicada por El País, 21-08-2022. A tradução é do Cepat.
Seis meses antes de Gustavo Petro se tornar o primeiro presidente de esquerda na história recente da Colômbia, o cientista político Alberto Vergara escreveu que a estratégia de provocar medo de candidatos progressistas, sem oferecer nada em troca, não estava mais funcionando para a direita latino-americana.
Ao longo de 2021, Keiko Fujimori, no Peru, José Antonio Kast, no Chile, e Juan Orlando Hernández, em Honduras, perderam as eleições em seus países, após agitarem sobre seus adversários o fantasma do comunismo (e, nos dois primeiros casos, reivindicar políticas das últimas ditaduras).
Após a falta de conquistas e a decepção provocada por uma direita gerencial, defensora do neoliberalismo, com expoentes como o empresário chileno Sebastián Piñera, o argentino Mauricio Macri e o peruano Pedro Pablo Kuczynski (uma direita “que não aprende a ser cidadã de seus países, mas dona de seus países”, escreveu Vergara), as réplicas locais do modelo Trump também não trouxeram resultados.
Focar o discurso na ameaça comunista, flertar com o racismo ou transformar em bandeira assuntos como a proibição do aborto e combater a “ideologia de gênero” só ajudaram conduzir Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, em 2018, mas a estratégia não voltou a dar frutos.
O candidato com quem Petro disputou o segundo turno na Colômbia, Rodolfo Hernández, parecia encarnar a ressaca das duas tendências: um milionário empresário do setor imobiliário com discurso focado no combate à corrupção (mas com processos judiciais abertos por contratos, quando era prefeito), que falava das mulheres como fábricas de filhos ou prostitutas e que chegou a dizer que admirava “um pensador alemão, Adolf Hitler”, havia se transformado na opção eleitoral do uribismo, que após décadas de domínio na política colombiana, não conseguiu disputar a presidência com um candidato próprio.
Nem o próprio Hernández aceitava publicamente esse apoio. Qualquer apoio associado à figura do ex-presidente Álvaro Uribe, antes todo-poderoso, passava a ser considerado agora perda de votos.
Foi a derrota real e simbólica de um político e de um movimento que cunhou o termo “castrochavismo”, usado por anos em toda a região para apontar como ameaça qualquer político de esquerda, e que não provocava mais qualquer efeito. E é também o início de um tempo de virada marcado pelo esgotamento dos discursos conservadores, em que bastava não ser de esquerda para disputar o poder.
Embora os governos de Andrés Manuel López Obrador e Gustavo Petro tenham diferenças abismais em suas visões e objetivos, é possível traçar um paralelo significativo sobre o que representou a chegada deles ao poder para os tradicionais tabuleiros políticos em seus territórios. Não só são os primeiros presidentes de esquerda na história moderna de seus países, como também o processo de ascensão ao cargo foi, ao mesmo tempo, o processo de demolição dos partidos que dominaram a política nacional por décadas. Nos dois casos, um cenário semelhante teria sido completamente inverossímil há apenas 10 anos.
Na Colômbia, o declínio do partido de direita, o Centro Democrático, liderado pelo ex-presidente Álvaro Uribe, foi estrondoso. A incapacidade de levar seu próprio candidato às eleições presidenciais mostrou os limites de uma força política extremamente personalista.
Há dois fatores claros que alimentaram essa queda, atribuíveis à própria lógica do partido. Por um lado, a situação judicial do ex-presidente, que enfrenta um caso de suposta manipulação e suborno de testemunhas. Uribe chegou a ficar em prisão domiciliar e renunciou ao cargo no Senado para se defender na justiça ordinária e deixar de ser investigado pela Corte Suprema. “Sou o responsável pelo quanto minha reputação está afetada”, reconheceu após os resultados das eleições legislativas de março, quando o Centro Democrático perdeu 21 cadeiras no Congresso.
A isso se soma a baixa popularidade do Governo de Iván Duque, que acaba de entregar o poder com uma das piores imagens de qualquer mandatário, em três décadas. Passou seu mandato em meio a protestos de rua, cuja resposta policial deixou ao menos 28 mortos, e em meio a críticas de seu próprio partido, para o qual não teve pulso firme o suficiente.
Contudo, existe um elemento que, mais do que obedecer à dinâmica própria do uribismo, corresponde à incapacidade do partido em se adaptar ao processo de paz. Pela primeira vez em anos, o conflito armado não foi tema central da agenda de campanha em 2022. A saúde, o sistema previdenciário e a economia apareceram em cena.
Alguns analistas insistem em que o uribismo foi enterrado, mas outros veem ingenuidade nesta posição. Hoje, quatro figuras desse partido fazem oposição a Petro: os senadores Miguel Uribe, Paloma Valencia, Paola Holguín e María Fernanda Cabal. Disseram que não apostam no fracasso do Governo e que defenderão os direitos de 10 milhões de pessoas que votaram contra Petro (ou seja, em Hernández).
Terão que se reinventar em um país menos conservador do que se acredita. De acordo com um estudo realizado pelo El País e 40dB., em abril, a Colômbia está mais à esquerda do que à direita em assuntos econômicos, migratórios ou de liberdades individuais. O medo que existe é que se incube uma direita extrema que não aceite a chegada de Petro, que em sua juventude foi guerrilheiro do desmobilizado M-19.
Embora tenham um peso eleitoral muitíssimo menor, a radicalização de setores da direita que ficaram sem rumo e sem opções com as quais poderiam ajustar sua posição em termos democráticos, não deixa de ser uma preocupação. No México, também ficaram encurralados. Em 2018, o presidente Andrés Manuel López Obrador varreu qualquer tipo de ideologia. Há mais de três anos, convivem apenas duas opções democráticas no país: o lopezobradorismo e seus adversários.
Os grandes partidos mexicanos saíram fulminados por uma vitória de mais de 30 milhões de votos e ainda não se recuperaram. Não há líderes à direita do presidente, nem no outro velho partido de esquerda – em risco de extinção – que o tenha feito sombra. E os dados de popularidade o mantêm como um dos chefes de Estado mais queridos do mundo, segundo a última pesquisa publicada pelo Financial Times, que lhe conferiu 65% de aprovação. Para López Obrador, direita significa todos aqueles que não comungam com sua proposta de transformar o país.
O conservador Partido da Ação Nacional (PAN) tentou nesses anos se esquivar dos ganchos que o Governo promove todos os dias pela plataforma presidencial, mas suas manobras para se distanciar das políticas do mandatário e se tornar a principal força de oposição, às vezes, revelam sua face mais sombria. Com o aparente objetivo de ganhar oxigênio e visibilidade, os líderes do PAN chegaram a se aproximar do Vox, o partido da ultradireita espanhola que evoca o passado colonial.
E em outros momentos, aproveitaram certas ondas de indignação civil às quais chegavam tarde, como o movimento feminista ou o dos familiares de desaparecidos, que se tornaram a única oposição real a López Obrador nas ruas. Algumas manobras improvisadas que para a professora do Centro de Estudos Internacionais do Colégio de México e autora de dois livros sobre o PAN, Soledad Loaeza, significam apenas “a falta de uma liderança nacional e o desconcerto em que o partido se encontra há muitos anos”.
Tanto o PAN como o Partido Revolucionário Institucional (PRI) - que chegou a governar o México por mais de 70 anos e que mantém seu bastião no Estado do México há 90 anos - transitam entre lutas intestinas e sem uma cabeça visível, arrastando também o lastro da corrupção quando tiveram o poder.
O espectro da direita que o PAN perdeu, nos últimos anos, foi abarcado por outro mais recentemente, o Movimento Cidadão, que foi fundado como um partido progressista, próximo ao Partido Socialista espanhol. Alguns de seus líderes, como o governador Samuel García (em Nuevo León), representam uma espécie de direita liberal, mais próxima a um político republicano do Texas do que à identidade conservadora e católica da direita tradicional mexicana.
Enquanto seus rivais se destroem no interior de seus partidos ou são silenciados pela frenética agenda política do mandatário, o movimento de López Obrador resiste a pandemias, insegurança e inflação. Para a direita só resta alguns Estados no norte, tradicionalmente conservadores, onde seu futuro será decidido nas próximas eleições presidenciais de 2024.
Jair Messias Bolsonaro, de 67 anos, detonou no Brasil, há quase quatro anos, a tradicional alternância protagonizada entre a centro-direita e a esquerda, desde o fim da ditadura. Bolsonaro, reservista militar e deputado veterano, chegou ao poder com um discurso ultraliberal na economia, ultraconservador, reacionário e antissistema.
Embora a pandemia e a necessidade de aliados parlamentares para se manter no cargo o forçaram a suspender seus planos de enxugar o Estado, suas outras posições políticas pouco mudaram. E as derrotas dos mandatários latino-americanos ideologicamente mais próximos - e sobretudo a de seu ídolo, o estadunidense Donald Trump - fizeram dele o líder indiscutível da direita, enquadrado, isto sim, na ala mais radical.
Com ele, a extrema direita brasileira saiu do armário. O presidente expressa com orgulho posições antes restritas a pequenos círculos privados. Desde que entrou na política, Bolsonaro sempre foi conhecido por suas provocações, seus ataques verbais e sua nostalgia pela ditadura (1964-1985). Era o deputado machista, homofóbico, defensor dos interesses corporativos de soldados e policiais de quem metade do país ria.
Contudo, soube ler como ninguém o descontentamento com a política de toda a vida e, em particular, com o Partido dos Trabalhadores, após 14 anos de governos progressistas. Incitou o ódio a Lula da Silva, de 76, e com uma hábil estratégia digital chegou ao palácio presidencial, uma façanha que meses antes soaria um delírio.
Recém-iniciada a campanha eleitoral, Bolsonaro segue diminuindo a distância, mas Lula ainda tem 15 pontos à sua frente, conforme revelado pela pesquisa Datafolha, a mais confiável, nesta quinta-feira. Bolsonaro espera repetir a façanha com uma avalanche de dinheiro público, em uma tentativa de dar a volta por cima nas pesquisas, lideradas por Lula.
No entanto, sua atitude desumana e anticientífica durante a pandemia e o abandono de seus planos econômicos afastaram aqueles eleitores que abominam o PT, mas não comungam com suas posições mais radicais. Contudo, mantém o firme apoio de um terço do eleitorado, o mais ideológico e reacionário, aquele que gostaria de fechar o STF e sustenta que o povo tem que se armar para se defender. São milhões de brasileiros que o consideram a única pessoa capaz de enfrentar um sistema político do qual desconfiam.
Os ataques do presidente às instituições que são um contrapeso e ao sistema de votação eletrônica provocaram temores de que ele não reconheça um resultado que lhe seja adverso e gere uma crise ou mesmo uma tentativa de golpe ao estilo do assalto ao Capitólio, em Washington. O papel que as Forças Armadas e as Polícias Militares poderiam desempenhar é tema de intenso debate, há meses.
A novidade é o envolvimento direto dos militares em todos os preparativos para as eleições, inicialmente em uma função técnica, mas que gera enorme preocupação entre os mais críticos a Bolsonaro. O Datafolha também revela que o apoio à ditadura entre os brasileiros (7%) é o menor na democracia. De qualquer forma, se Bolsonaro perder as eleições em outubro, concordam os especialistas, o bolsonarismo sobreviverá a ele.
A crise de 2001 na Argentina, que significou a implosão do modelo neoliberal promovido pelo presidente Carlos Menem, na década anterior, deixou a direita política sem uma clara referência partidária. No entanto, longe do poder estatal, manteve seu poder de lobby a partir de organizações intermediárias, como câmaras empresariais e rurais.
A partir daí, travaram uma guerra contra o governo kirchnerista, representante da corrente mais à esquerda do peronismo. Conforme o kirchnerismo foi perdendo poder, essas direitas inorgânicas se uniram em torno da figura de Mauricio Macri, membro de uma das famílias mais ricas do país.
Verónica Giordano, socióloga da Universidade de Buenos Aires e pesquisadora do Conicet, define Macri como de “uma direita liberal, como a de Sebastián Piñera, no Chile, ou a de Luis Lacalle Pou, no Uruguai, próxima a essas estruturas de empresários ligados ao Estado, apegadas à escola dos Chicago Boys e a uma visão política com menos peso da Igreja Católica”. Isso explica por que há eleitores da direita dominante na Argentina que podem defender o aborto legal.
Macri chegou à Casa Rosada em 2015, mas sua incapacidade para resolver a crise econômica custou a sua reeleição quatro anos depois. O terceiro Governo do ciclo kirchnerista, o atual, também não conseguiu encontrar uma saída para a crise, o que abriu espaço para uma direita que busca se reinventar como opção de poder.
“Estamos todos nos acomodando a partir da centro-direita, mas na Argentina não sabemos como isso vai terminar. No Brasil, Lula da Silva teve que buscar uma solução fora [com uma aliança com o conservador Geraldo Alckmin]. O peronismo permite uma solução dentro do partido”, disse Giordano, com figuras como o novo ministro da Economia, Sergio Massa.
O elemento disruptivo é o líder “libertário” Javier Milei, um deputado ultraliberal vociferante que atrai o voto dos desencantados com o sistema. O flerte de Macri com Milei trouxe tensão para a principal coalizão opositora, Juntos pela Mudança, devido à rejeição de algumas de suas figuras mais moderadas a qualquer acordo com uma figura tão nos extremos.
Giordano disse que Milei, um imitador local de Jair Bolsonaro ou Donald Trump, “é mais perigoso para Macri do que para o resto dos partidos”. “O eleitor da Frente de Todos (no Governo) hesitará entre Massa ou Cristina Kirchner, mas nunca votará em Milei. O de Juntos pela Mudança pode votar em Macri, mas também em Milei”, disse.
Essa dinâmica entre os extremos e a moderação dentro da própria direita também se tornou problemática no Chile, onde as forças conservadoras não conseguiram reconstruir um projeto depois do triunfo de Gabriel Boric, em dezembro de 2021. O apoio do setor ao candidato de ultradireita José Antonio Kast deixou os partidos liberais do bloco em uma posição incômoda frente ao futuro.
Hoje, a oposição concentra seus esforços para conseguir a rejeição à proposta de uma nova Constituição que será votada em plebiscito, no dia 4 de setembro, e que, segundo as pesquisas, é a opção que pode prevalecer.
Porém, após este evento eleitoral, a direita chilena terá que se concentrar em dois assuntos. Trabalhar tendo em vista o processo constituinte que continuará, após o referendo, seja qual for o resultado, pois nem o texto da Constituição vigente permanecerá, caso vença a opção pela rejeição, nem a proposta será implementada como está, conforme já parece ser um consenso político. Em segundo lugar, a direita deverá necessariamente trilhar um caminho de refundação para oferecer um projeto em um país diferente ao das últimas décadas, com uma nova Constituição, onde os direitos sociais aparecem fortemente entre as demandas pactuadas pelos cidadãos, e o nascimento de um setor extremo - o de Kast -, que os ameaça com um discurso focado, entre outras coisas, no combate à criminalidade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As direitas da América Latina buscam um futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU