As ciências do Sistema Terra e o desafio de legitimar outro tipo de ação política. Entrevista especial com José Corrêa Leite

"A discussão sobre ciências para o autocontrole do impacto humano ou para a dominação da natureza é uma questão de vida ou morte para a civilização moderna", adverte o pesquisador

Foto: Pixabay

Por: Edição: Patricia Fachin | 19 Julho 2022

 

O desenvolvimento tecnocientífico dos últimos três séculos tem gerado inúmeras discussões sobre as ciências, a começar pela própria definição do que é ciência ou como a hiperespecialização científica pode dar sentido à vida humana ou servir de base para o enfrentamento político de questões emergentes, como o novo regime climático. Mais recentemente, nas últimas cinco décadas, as ciências do Sistema Terra propõem compreender o planeta em seu conjunto em articulação com a ação política a fim de que o conhecimento científico forneça recursos intelectuais para a ação prática de transformar o mundo. A partir desse pano de fundo, a questão emergente é: "como pensar uma política radicalmente diferente se nós – estou falando da esquerda mais despojada e comprometida com a transformação social – reproduzimos a mesma concepção de mundo da qual é portadora a tecnociência capitalista?", indaga José Corrêa Leite, professor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP.

 

No dia 28-06-2022, Leite participou do Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo, que está sendo promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU de forma virtual, com a palestra intitulada "As ciências do Sistema Terra: entre a infinidade do capitalismo e a finitude do planeta". Após explicar o surgimento e o objetivo das ciências do Sistema Terra, ele acentuou que "precisamos ter outro sistema de valores ligado a outra forma de conceber a ciência para fundamentar e legitimar outro tipo de ação política".

 

Segundo ele, "temos que entender o mundo de outra maneira. Os múltiplos conhecimentos são todos importantes, mas a forma de conhecimento legitimada ao longo dos últimos séculos, que chamamos de ciência, tem que ser redefinida. Isso não se faz do zero, mas a partir de potencialidades que estavam colocadas desde sua formação. A ciência foi portadora de uma revolução, mas temos que demarcá-la: a ciência experimental que surgiu no século XVII é uma construção eurocêntrica, vinculada a um sistema econômico, social e político originário da Europa e que se impôs sobre o mundo. O pensamento decolonial é fundamental, mas precisamos lidar com a dinâmica de conjunto estabelecida no planeta: há uma multiplicidade de saberes alternativos e há um saber dominante que tem contradições com as quais precisamos saber lidar. Isso é fundamental para qualquer projeto de alternativa social e política".

 

A seguir, publicamos a conferência no formato de entrevista.

 

José Leite (Foto: USP)

 

José Corrêa Leite é graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP e mestre e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Integra o Coletivo 660, constituído pelos animadores do Fórum Social Mundial. Impulsiona a Assembleia Mundial pela Amazônia e também o Diálogo Global por Alternativas Sistêmicas.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que são as ciências do Sistema Terra? Qual sua particularidade?

 

José Corrêa Leite - Para falar sobre as ciências do Sistema Terra, gostaria de pontuar algo sobre o subtítulo da conferência: entre a infinidade do capitalismo e a finitude do planeta. Na verdade, esse é um trocadilho em torno da ideia de que é impossível o crescimento infinito em um planeta finito – e o capitalismo é um modo de produção que demanda um crescimento infinito. Nesse sentido, temos uma armadilha civilizacional que vai explodir de alguma maneira em algum momento. As ciências do Sistema Terra foram, de certa maneira, o conhecimento que permitiu diagnosticar a grande crise civilizacional na qual estamos metidos.

 

A minha abordagem do tema é, de um lado, mais tradicional do que a de muitos que me antecederam neste Ciclo: é uma discussão de filosofia e história da ciência no sentido de como se forma o campo do conhecimento chamado de ciências do Sistema Terra e quais são suas características. Depois de explicar o que é essa ciência, será mais interessante discutí-la de um ponto de vista político porque sou, antes de tudo, um ativista político que desenvolveu pesquisas baseadas na ideia de que elas forneceriam recursos intelectuais para atividades práticas com a finalidade de mudar o mundo.

 

 

Ciências do Sistema Terra

 

As ciências do Sistema Terra são um conjunto de disciplinas de ciências que, como campo, têm uma constituição muito recente. Várias delas são bastante antigas, mas sua integração é recente. Elas se desenvolveram de forma autônoma ao longo dos séculos, com disciplinas como a geologia, a oceanografia, a meteorologia, e outras que são mais recentes, como a ecologia. Mas a integração delas se dá na medida em que se constitui um objeto de referência que não era comum e passa a sê-lo: o planeta Terra em seu conjunto e as condições que permitem a vida nesse planeta. A partir daí as ciências do Sistema Terra procuram decifrar as interações entre a terra, a atmosfera, os oceanos, a dinâmica da vida e, em função disso, vai transitando da meteorologia para a ecologia, da ecologia para a ecologia global. Estamos falando de um processo que emerge na década de 1970 e 1980.

 

“Nascer da Terra”: foto do astronauta Bill Anders, em 24 de dezembro de 1968, durante a missão Apollo 8

 

Nos anos 1960, as viagens espaciais permitem que a Terra seja percebida, pela primeira vez na história, como um conjunto. Ou seja, passa-se a ter uma abordagem do objeto Terra, do planeta como uma coisa que vai ser percebida simultaneamente como um todo integrado, frágil. A famosa expressão de Carl Sagan – “Um pálido ponto azul no universo imenso” – vai dar origem a muitas formulações. Uma delas é a de Kenneth E. Boulding, em 1966. Ele disse que precisávamos de uma economia da espaçonave Terra, uma economia que tem que gerir de maneira comum os recursos dentro do espaço finito, se contrapondo a uma “economia do cowboy” [com recursos aparentemente ilimitados].

 

Na sequência, se tem a percepção de que esse frágil ponto azul tem grandes problemas de conjunto. Nos anos 1970, começa a se perceber que a emissão de gases CFCs – cloro, flúor e carbono – está destruindo a camada de ozônio e isso leva ao debate sobre como conter essa situação. Nos anos 1980, isso leva ao Tratado de Montreal para limitar as emissões de CFCs e, em 1985, James Hansen dá um testemunho famoso no Congresso americano, dizendo que o planeta está atravessando uma fase de aquecimento global devido à emissão antropogênica de gases de efeito estufa. No início dos anos 1980, mais ou menos na mesma época, em 1981, começa uma discussão sobre o que significaria uma guerra nuclear, a possibilidade de um inverno nuclear desencadeado pela humanidade com o lançamento, na atmosfera do planeta, de uma poeira que tornaria grande parte da vida impossível, que faria centenas de milhões de mortos. Tem também uma ideia muito contraintuitiva de que as extinções em massa que ocorreram no passado seriam provocadas por fenômenos abruptos e ficou famosa a constatação de que o que levou à extinção dos dinossauros foi o choque da Terra com um cometa. Então, temos como pano de fundo, a corrida espacial, de um lado, e, de outro, um movimento ambientalista que se preocupa com as questões do planeta como um todo. Disso surge um novo objeto de preocupação, a constituição de um campo epistemológico novo, a emergência de modelagens climáticas que foram, pela primeira vez, estabelecidas por programas de computador de previsão do tempo. As modelagens começaram a extrapolar cenários alarmantes em 1972 com a divulgação do relatório do Clube de Roma. Ou seja, uma série de experimentos científicos e projetos de pesquisa começaram a delinear um tratamento holístico integrado do planeta Terra.

 

Nos anos 1980, surge o Programa Internacional da Geosfera - Biosfera - IGBP, que durou até 2015, para estudar a mudança global em uma pesquisa internacional sobre as interações resultadas dos processos físicos, químicos e biológicos entre a Terra e os sistemas humanos. O marco político mais geral para tudo isso é a Eco-92, a segunda grande conferência da Organização das Nações Unidas - ONU sobre o meio ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992.

 

A questão “Como a sociedade humana pode se desenvolver junto com o ambiente terrestre em mudança?” ficou famosa – mas isso é a ponta do iceberg – nas discussões sobre climatologia e aquecimento global e virou um objeto de disputas que não têm a ver diretamente com conhecimento científico.

 

 

Controvérsias políticas



O livro “Os mercadores da dúvida” discute as controvérsias na climatologia e mostra que elas não são descobertas do mesmo campo teórico; elas são, em grande medida, lutas políticas patrocinadas por institutos que querem manter a economia do petróleo, que alugam cientistas falcões da Guerra Fria, que antes tinham sido contratados pela indústria do tabaco para dizer que não existiam evidências científicas definitivas e provas inquestionáveis de que fumar causa câncer no pulmão. Esses mesmos cientistas são contratados para tratar de vários temas ligados às mudanças climáticas e, basicamente, jogar uma dúvida – o objetivo não é negar; é jogar uma dúvida – no sentido de dizer que as afirmações não são ainda suficientemente comprovadas em relação às emissões de gases de efeito estufa, ou seja, de que a queima de petróleo, carvão e gases lançados na atmosfera estão provocando um aquecimento do planeta.

 

Mercadores da Dúvida:

 

Há, nesse processo, um novo campo de conhecimento. O modelo de ciência que herdamos não é feito para lidar com objetos tão complexos.

 

IHU – O que esse campo representou para a ciência desenvolvida até então? Quais são as diferenças na concepção de cada modelo científico?

 

José Corrêa Leite - Temos uma concepção dominante de ciência. A ideia comum de ciências experimentais é a que foi criada por Galileu, consolidada com Newton e teorizada por Bacon e Descartes no século XVII: uma ciência atomista, mecanicista, passível de quantificação e que permite previsões.

 

No século XIX, esse modelo foi incorporado pelo sistema universitário em disciplinas de natureza positivista, instrumentais e capazes de permitir o controle da natureza ou de processos naturais para as atividades que desejamos. De fato, no final do século XIX e no século XX isso se integra com o processo econômico e com as grandes empresas, como a indústria química alemã, e vai constituir o que nos estudos de ciência se chama de tecnociência ou tecnociência capitalista. Essa é a grande ciência que permitiu que a humanidade conhecesse o desenvolvimento tecnológico do último século. Mas, quando examinamos as disciplinas que compõem as disciplinas do Sistema Terra, que poderiam ser enquadradas nesse modelo de ciência positivista, percebemos que o projeto baconiano de ciência é formulado para o controle e dominação da natureza pelos seres humanos, enquanto isso se dá de uma maneira distinta no campo que estamos chamando de ciências do Sistema Terra.

 

O que vamos ver são os cientistas, em várias ocasiões, de forma recorrente, levantarem questões que se chocam com interesses empresariais ou nacionais. Por exemplo, cientistas defendem a ciência contra os céticos do clima – uma analogia hoje seria a questão da vacina –; os ambientalistas sustentam, a partir da ciência, o argumento do princípio da precaução e uma ideia geral de que a ciência está mostrando a fragilidade da situação que nós enfrentamos hoje. Isso fica muito evidente quando o Programa Internacional da Geosfera - Biosfera lista os seus objetivos.

 

Um deles é constatar que a ação humana sobre o planeta está tendo um efeito disruptivo e que é necessário que nós tenhamos sabedoria em conter a nossa hubris, isto é, nossa arrogância em pretender manipular um sistema tão complexo. Uma ciência para a sustentabilidade é algo que se choca com a ideia de que os seres humanos são capazes de controlar sistemas tão complexos quanto o sistema terra.

 

Somos aprendizes de feiticeiros lidando com uma coisa da qual entendemos muito pouco e criamos interações extremamente complexas. Nós podemos falar da poluição química e tentar quantificá-la, mas ninguém sabe as consequências da enorme quantidade de produtos artificiais que lançamos no planeta para a vida na Terra. Em 2009, o Instituto de Resiliência de Estocolmo [Stockholm Resilience Centre] fez um primeiro esforço de integrar o que seriam os limites e as fronteiras que têm que ser preservados para que a vida no planeta se mantenha em condições adequadas. Chegou-se à conclusão de que já ultrapassamos uma série de limites porque essas fronteiras se influenciam mutuamente. De que maneira? Não dominamos totalmente, mas o aquecimento global, o ciclo do carbono e do fósforo, o ciclo da água, do ozônio, a acidificação dos mares, a poluição química, os aerossóis, tudo isso são impactos da atividade humana e, quando tomamos tudo isso em conjunto, se cria um quebra-cabeça através do qual estamos produzindo mudanças absurdas. As ciências do Sistema Terra nos dizem isto: ultrapassamos as fronteiras que manteriam o sistema estável e entramos em um estado de desequilíbrio.

 

 

Sexta extinção em massa – consequências do antropoceno

 

Não se trata somente de emissões de gases do efeito estufa; trata-se da sexta extinção em massa, da destruição de boa parte das condições de vida nos oceanos, dos efeitos da poluição química sobre a saúde, da possiblidade de se manter o sistema alimentar industrial, o carbono intensivo. O problema não é só que nós temos um capitalismo fossilista e que isso gera energia e combustível para o sistema de transporte; o sistema agrícola como é montado é insustável. Então, a partir dessas questões, temos uma ciência dos limites, uma ciência não para o controle da natureza pelo homem, mas uma ciência que vai nos dizer que, se nós não nos autocontivermos, vamos destruir as condições que mantêm a vida no planeta. Alguns chamaram isso de segunda revolução copernicana, de quarta descontinuidade, mas essa situação acabou se tornando mais conhecida através da ideia de antropoceno.

 

Cientistas do Sistema Terra discutiram, dos anos 1980 até os anos 2000, todos esses termos e o que se popularizou é que hoje somos uma força geológica que exerce uma força tão devastadora sobre o sistema Terra que é superior à das eras do gelo, das mudanças do clima em função das oscilações do planeta em sua órbita ao redor do sol etc.

 

 

IHU – Como enfrentar esse quadro a partir dessa ciência?

 

José Corrêa Leite - Isso não está definido. Surgiram, por parte de alguns cientistas, propostas de geoengenharia, como resfriar a Terra através de grandes projetos. Outra postura é reconhecer que precisamos ser modestos e reconhecer os saberes dos povos tradicionais que ajudam a preservar a biodiversidade. Isso abre uma caixa de pandora do que é a ciência tanto na sua pretensão quanto na necessidade de ser modesta no reconhecimento de que o que aparentemente valia para sistemas lineares e naquela visão mecanicista de ciência não se aplica para sistemas complexos e não lineares que são em grande medida imprevisíveis.

 

Complexidade

 

A discussão sobre a complexidade, que já tinha emergido em algumas áreas da ciência, se torna central para as ciências do Sistema Terra. Uma coisa que acho interessante partilhar na nossa discussão é que a visão de ciência dominante, de ciência experimental constituída no século XVII e que ganha essa conotação positivista no século XIX para se tornar instrumental e tecnociência dominante, não foi o único vetor central de desenvolvimento da ciência. No início do século XIX havia uma ciência distinta, que ia em outra direção, chamada ciência romântica, que trabalhava a relação entre a busca do conhecimento científico, das leis e da objetividade desse conhecimento na sua relação com os valores de forma distinta.

 

 

Ciência romântica

 

A ciência romântica, que emergiu como reação à ciência iluminista, também chamada de ciência vitoriana, enfatizava a ideia de natureza que se tornaria dominante nas ciências ambientais do último meio século. Quando observamos a obra de Goethe e de Alexander von Humboldt, que era considerado o maior cientista da primeira metade do século XIX, vemos que existe uma ideia de natureza que envolve admiração, amor, cuidado, deslumbramento estético e que tem muito a ver com o que é hoje a postura das ciências ambientais, mas que não tem nada a ver com o que é a tecnociência capitalista.

 

Não se trata de voltar a uma ciência que deixou de existir, mas de perceber que essa forma de conhecimento que chamamos de ciência tem potencialidades muito distintas dependendo de sua inserção social, dos propósitos com que é trabalhada, da visão de mundo que a orienta. E nós precisamos de uma visão de mundo que nos permita fazer frente aos grandes desafios que emergiram nas últimas décadas, as quais as ciências do Sistema Terra dizem que colocam em xeque a possibilidade se não da vida, pelo menos da civilização como nós a conhecemos.

 

As ciências do Sistema Terra: entre a infinidade do capitalismo e a finitude do planeta

 

IHU – Que relações estabelece entre essa discussão sobre a ciência com a política?

 

José Corrêa Leite - Como disse no início, busco nas ciências instrumentais ferramentas para entender o mundo e para alterá-lo no sentido de enfrentar os grandes problemas da civilização e organizar uma convivência melhor entre os seres humanos. Isso significa uma filosofia da práxis. Mas a política, que é a atividade que permite isso, se dá na interação com o conhecimento acumulado.

 

Uma das minhas experiências mais fortes foi perceber o quanto um processo como o Fórum Social Mundial é diferente do tipo de política que estamos acostumados, como a política eleitoral, institucional, dos partidos que disputam eleições e governos para, no final, ter uma atividade muito reiterativa do sistema social estabelecido. É evidente que faz diferença termos governos de partidos que compreendam que vivemos grandes problemas e desafios e tentem, dentro do sistema econômico e político vigente, enfrentá-los. Mas, ao mesmo tempo, existem posições fundamentalistas e sociais darwinistas que fecham os olhos para a existência dos problemas ambientais, sociais e econômicos estabelecidos.

 

 

Política radicalmente diferente

 

Mas a questão é: como pensar uma política radicalmente diferente se nós – estou falando da esquerda mais despojada e comprometida com a transformação social – reproduzimos a mesma concepção de mundo da qual é portadora a tecnociência capitalista? A esquerda hoje dominante – e não é uma questão desta ou daquela corrente, mas de conjunto – é economicista, produtivista, está focada na estrutura de poder estatal. Como pensar o enfrentamento dessas mudanças, desses grandes desafios de sociedade, que estão ligados às questões ambientais, mas também à globalização capitalista, à internacionalização dos problemas mais variados, às questões de saúde? Cada país desenvolveu uma política de enfrentamento da pandemia distinta. Além disso, temos as questões de interrupção das cadeias produtivas, da inflação global, os problemas ambientais, o aquecimento global, a perda de biodiversidade, problemas relativos à água e ao uso do solo. Como enfrentar esses problemas com a concepção instrumental de ciência hegemônica nos marcos da política estabelecida?

 

Essa discussão sobre ciências para o autocontrole do impacto humano ou para a dominação da natureza é uma questão de vida ou morte para a civilização moderna. Ela não sobreviverá sem uma mudança de rumo e não há como alterar esse rumo sem que nós estabeleçamos o conhecimento do mundo sobre outras bases. Nós vivemos em uma sociedade na qual essa constatação é um lugar comum em muitos setores, mas, em geral, o que emerge é uma valorização dos conhecimentos tradicionais. E essa é uma falsa contraposição, do meu ponto de vista. O que precisamos não é simplesmente contrapor o conhecimento adequado à sua sobrevivência e condições de vida das populações tradicionais e dos povos originários. Nesse sentido, gostei muito da fala do Mauro Almeida no Ciclo, sobre mundos ontologicamente incomensuráveis que têm que coexistir.

 

Verdades pragmáticas em mundo irreconciliavelmente diverso

 

 

 

Mundo dominante

 

Mas existe um mundo dominante, o da globalização capitalista neoliberal, que hoje é desafiado por algo mais regressivo do que isso, por políticas nacionalistas, autoritárias, neofacistas, racistas, misóginas, para as quais a simples reprodução do que está posto não dá conta.

 

Então, temos hoje dois grandes projetos. De um lado, o da globalização neoliberal, cosmopolita, globalista, sendo desafiado pela extrema-direita, propondo políticas de exclusão, regressão de direitos, ou para usar um termo bem reducionista, do “salve-se quem puder”, “quem tem força garante o seu”. De outro lado, o pensamento progressista não consegue constituir alternativas sistêmicas. A esquerda, quando chega ao poder, em todo o mundo – não é um problema deste ou daquele país –, não consegue implementar políticas qualitativamente distintas das políticas globalistas neoliberais. Então, é necessário que pensemos a política a partir de outras bases. Isso só vai ser possível se tivermos outro diagnóstico do que está acontecendo no mundo, se o objetivo não for o desenvolvimento econômico, o crescimento, a produtividade. Precisamos de outros parâmetros epistemológicos ou axiológicos, outros tipos de valores, como a preservação da biodiversidade, sem buscar a rentabilização de tudo. Mas preservar a floresta amazônica como? Por quê? Instrumentalmente, a argumentação é simples: porque sem isso se destrói o ciclo hidrológico da América do Sul. A região vai, em grande medida, se desertificar sem a floresta. Mas é esse o problema ou precisamos ter outro sistema de valores ligado a outra forma de conceber a ciência para fundamentar e legitimar outro tipo de ação política?

 

 

Estou levantando problemas para enfatizar que essa discussão não é acadêmica, filosófica; é uma discussão eminentemente política, prática, que afeta a vida de todos nós que vivemos nas grandes cidades e participamos da sociedade de consumo de massa e que temos diante de nós um grande desastre já formado e para o qual estamos caminhando celeremente.

 

Temos que entender o mundo de outra maneira. Os múltiplos conhecimentos são todos importantes, mas a forma de conhecimento legitimada ao longo dos últimos séculos, que chamamos de ciência, tem que ser redefinida. Isso não se faz do zero, mas a partir de potencialidades que estavam colocadas desde sua formação. A ciência foi portadora de uma revolução, mas temos que demarcá-la: a ciência experimental que surgiu no século XVII é uma construção eurocêntrica, vinculada a um sistema econômico social e político originário da Europa e que se impôs sobre o mundo. O pensamento decolonial é fundamental, mas precisamos lidar com a dinâmica de conjunto estabelecida no planeta: há uma multiplicidade de saberes alternativos e há um saber dominante que tem contradições com as quais precisamos saber lidar. Isso é fundamental para qualquer projeto de alternativa social e política.

 

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