A igreja do futuro

(Foto: Karl Fredrickson | Unsplash)

Mais Lidos

  • "A ideologia da vergonha e o clero do Brasil": uma conversa com William Castilho Pereira

    LER MAIS
  • O “non expedit” de Francisco: a prisão do “mito” e a vingança da história. Artigo de Thiago Gama

    LER MAIS
  • A luta por território, principal bandeira dos povos indígenas na COP30, é a estratégia mais eficaz para a mitigação da crise ambiental, afirma o entrevistado

    COP30. Dois projetos em disputa: o da floresta que sustenta ou do capital que devora. Entrevista especial com Milton Felipe Pinheiro

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

08 Julho 2022

 

"Como a Igreja poderá enfrentar seu entardecer, imaginando o cristianismo do futuro com estruturas, lógicas e processos teológicos ligados a uma manhã que já foi superada?", questiona Roberto Oliva, padre da Diocese de San Marco Argentano, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 07-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

No capítulo XXV de Os Noivos, a intensa conversa entre o cardeal Borromeo e Dom Abbondio traz à tona as peculiaridades da lógica pusilânime de um determinado sistema eclesiástico que vê na fé cristã uma opção cômoda e neutra mais que enraizada na força revolucionária do Evangelho.

 

De fato, no final da conversa narrada por Manzoni, falando consigo mesmo, Dom Abbondio exclama: “A coragem, ninguém pode dá-la para si.” A provocante pergunta do card. Martini ("Por que a Igreja não se sacode? Temos medo? Medo em vez de coragem?"), e retomada neste portal por Francesco Cosentino, lembra basicamente a tentação de Dom Abbondio.

 

O medo esconde uma forma introvertida da Igreja, que lentamente a leva a prestar serviços religiosos sem propor a opção messiânica de Cristo.

 

 

Além do medo

 

O medo que denunciava o cardeal Martini, portanto, pode ser reconduzido a uma Igreja sem Evangelho, a "um cristianismo sem Páscoa" (Papa Francisco, Homilia na Noite de Páscoa de 2022).

 

A Igreja do futuro é chamada a reencontrar a coragem na força do Evangelho: o único critério de discernimento capaz de traçar os caminhos de um cristianismo que sai do regime da cristandade para habitar de modo novo diferentes culturas e contextos sociais.

 

Uma comunidade eclesial que quisesse evitar o processo de recepção do Concílio Vaticano II correria o risco de naufragar, pois “foi uma atualização, uma releitura do Evangelho na perspectiva da cultura contemporânea. Produziu um irreversível movimento de renovação que vem do Evangelho” (Papa Francisco, Ao Grão-Chanceler da PUCA, 3 de março de 2015).

 

Não foi por acaso que durante a assembleia conciliar o livro dos Evangelhos foi colocado no centro da Basílica de São Pedro: toda reforma eclesial exige uma hermenêutica atualizada do Evangelho, questionada pelos sinais dos tempos que as culturas expressam em múltiplas linguagens e estilos. Os apelos da Igreja no futuro interceptados por F. Cosentino exigem, em minha opinião, uma recepção criativa do Vaticano II em chave relacional segundo dois pressupostos fundamentais.

 

Discernimento eclesial: entre pastoral vocacional e acompanhamento espiritual

 

Um dos objetivos mais preciosos do Vaticano II foi a recuperação da dimensão vocacional de todo o povo de Deus através da explicitação dos carismas e dos ministérios (LG 7.12.30). O pressuposto de um ministério verdadeiramente inclusivo é uma cultura vocacional que "desenvolva uma atenção ao itinerário ou ao carisma próprio, não só de cada cristão, mas também daqueles, homens e mulheres, que se encontram cotidianamente, crentes ou não" (C. Theobald, Vocação ?!, 93).

 

Uma Igreja totalmente ministerial requer um exercício contínuo de discernimento pessoal e comunitário, para que se deixe surpreender "por essas presenças 'carismáticas' tão ricas em potencial criativo" (C. Theobald, 94), e ao mesmo tempo exige uma renovada orientação da pastoral vocacional com os respectivos processos e locais de formação. A organização dos contextos destinados à formação dos futuros ministros ordenados (seminários e casas religiosas) sofre a influência de um modelo tridentino que só foi retocado a partir do Vaticano II.

 

De fato, não basta esperar e legitimar novas formas de ministerialidade se não se proceder à reforma na comunidade eclesial, "a educação e a formação daqueles que ela escolhe e prepara para o ministério" (T. Halik, Dio oltre i confini visibili, Il Regno / Attualità, 12, 15.06.22). Uma estrutura separada (muitas vezes com uma faculdade teológica anexa), uma espiritualidade quase monástica e uma vida relacional delimitada poderiam talvez favorecer a desclericalização esperada pela conversão pastoral proposta pelo Papa Francisco?

 

À luz dessas considerações, compreende-se o valor fundamental que deve ser atribuído ao discernimento vocacional no povo de Deus através do cuidado do acompanhamento humano e espiritual: "É minha firme convicção que o ministério do acompanhamento espiritual pessoal será o papel pastoral crucial da Igreja no iminente ‘entardecer’ da história cristã, e aquele mais necessário" (T. Halik, Dio oltre i confini visibili, Il Regno / Attualità, 12, 15.06.22).

 

A intuição de Halík parece-nos profética num tempo em que se fala do fim da cristandade, pois a Igreja poderá aproveitar a oportunidade para exercer a diaconia da caridade na forma inédita de companheira sábia no discernimento e terna de coração. G. Jung sobre as fases da vida, nos ensina que ela é feita de passagens repentinas e radicais: “É de repente que chegamos ao meio-dia da vida; pior ainda, chegamos armados com as ideias preconcebidas, os ideais, as verdades que tínhamos até então. É impossível viver o entardecer da vida segundo os mesmos cânones da manhã, pois o que era de grande importância então terá pouca importância agora e a verdade da manhã será o equívoco do entardecer.

 

Como a Igreja poderá enfrentar seu entardecer, imaginando o cristianismo do futuro com estruturas, lógicas e processos teológicos ligados a uma manhã que já foi superada?

 

Dinâmicas relacionais (governo) e sexuais

 

O segundo pressuposto na perspectiva da recepção pós-conciliar diz respeito à consideração das dinâmicas relacionais do poliedro eclesial. São indispensáveis em relação aos processos participativos do futuro eclesial e ao acompanhamento das experiências humanas, conflitos e escândalos.

 

De fato, o caráter simbólico da sexualidade humana exige uma abordagem integral não só no itinerário dos esposos e dos ministros ordenados, mas em toda a pastoral eclesial à luz de suas dinâmicas relacionais, participativas e de governo. O escândalo dos abusos sexuais por parte dos clérigos destampou o caldeirão fervente: escassa ou parcial formação afetiva e sexual nos seminários e tendência aos abusos de consciência ou de poder às vezes ligados aos sexuais.

 

A falta de integração da dimensão afetiva no itinerário que leva o candidato a viver o ministério provoca a tendência de preencher com o poder outros vazios emocionais e psicológicos, distorcendo o dinamismo relacional típico dos batizados e das batizadas. A sexualidade líquida de nosso tempo provoca ainda mais a Igreja a valorizar e propor a preciosidade dos laços afetivos e sexuais como um autêntico percurso de humanização responsável e consciente.

 

Também neste caso se trata de processos de discernimento em que todos os sujeitos eclesiais envolvidos são movidos por uma afetividade livre e madura, capaz de construir e evocar a rede relacional da família de Jesus de Nazaré.

 

Leia mais