O grande herói das estradas. Porque o Clube da Esquina merece encabeçar uma lista de melhores discos brasileiros. Artigo de Rafael Senra

Reprodução da capa do disco Clube da Esquina | Fonte: Gravadora EMI - All Music

25 Mai 2022

 

"Dificilmente um único disco será onipresente nas listas que virão daqui para a frente. Mas o momento de glória do [álbum] Clube [da esquina] em 2022 me parece justo. Não apenas pelo aniversário do principal disco desse movimento, mas também pela necessidade de legitimação à altura da contribuição desses músicos", escreve Rafael Senra, autor do livro Dois lados da mesma viagem. A mineiridade e o Clube da Esquina, publicado pela Editora Bartlebee. Senra também é professor da Universidade Federal do Amapá, doutor em Letras pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e mestre também em Letras pela UFSJ (Universidade Federal de São João del Rei).

 

 

Eis o artigo. 


O ano era 1972. Você colocava a agulha no Lado A do Disco 1 do álbum Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges. Você iria se deparar com uma levada de violão de nylon que, apesar das síncopes, tinha a urgência típica do rock. É muito, mas muito provável que, se esse violão não tivesse capturado sua atenção ainda, a voz sempre arrebatadora de Milton logo o faria. A letra que você ouvia era permeada de muita expectativa e poucas certezas: com sol ou com chuva, você sonhava que tudo iria ser melhor depois. Nada ali soava óbvio, você poderia pensar. “Você queria ser o grande herói das estradas”. Você não sabia que estradas eram essas, mas, de algum modo, a maneira como você sente o mundo encontra ressonância na busca que o eu-lírico te apresenta. A melodia dissonante se somava a inquietação existencial dos versos. “Tudo o que você podia ser”: a frase não soava como uma afirmação, mas como uma pergunta.

 

 

Cinquenta anos depois, não temos a resposta definitiva, mas um dado em especial nos mostra boa parte do que esses jovens mineiros poderiam ser: o disco Clube da Esquina (em que Milton e batizam e oficializam todo um coletivo de músicos e compositores ligados ao estado de Minas Gerais) foi eleito como o melhor disco brasileiro de todos os tempos pelo Podcast Discoteca Básica. O trabalho já participou de outras listas antes, mas apenas agora eles enfim se posicionam no topo de um importante ranking de melhores discos brasileiros.

 

 

Como publiquei um livro sobre o Clube da Esquina, chamado Dois Lados da Mesma Viagem (saiu em 2013 pela Editora Bartlebee, e será republicado em breve pela Editora Hucitec), muitas pessoas me procuraram com a mesma pergunta: “Rafa, me diga, porque você acha que o disco Clube da Esquina merece estar no topo de uma lista dos melhores discos da música brasileira?”. Essa dúvida me parece perfeitamente compreensível – afinal, enquanto críticos, especialistas, nerds e amantes de música debatem sobre tantas minúcias e notas de rodapé sobre o universo musical, a maior parte do público segue alheia a discussões estéticas razoavelmente aprofundadas. Para boa parte dos ouvintes da música popular brasileira, o Clube da Esquina possui tantos méritos quanto qualquer outro movimento musical do país. Portanto, quais as razões específicas para tal eleição?

 

Antes de entrar nos méritos, algumas considerações. Primeiramente: uma relativização das listas. Enumera-se os melhores discos... sob qual critério? Formalista? Conceitual? Inovação? No fundo, é por isso que listas nunca são unânimes: as escolas de análise na história da arte são variadas. Os estruturalistas vão eleger pela forma, enquanto os sociológicos vão querer ver o contexto de criação. Esse debate é antigo, e se não chegamos a nenhum tipo de consenso antes (em um passado no qual as pessoas ao pelo menos tentavam ser mais razoáveis), não é agora que vamos concordar nas escolhas.

 

O fato é que a taxonomia (tara por listas) é um dos sintomas do modo de existir da humanidade, um TOC que nunca vai deixar de existir. Antes da internet, as discussões sobre música popular no Brasil aconteciam nas publicações de banca, que sempre apareciam com listas novas que prometiam anunciar quem era o “mais isso” e o “mais aquilo”. Rolling Stone, Roadie Crew, Bizz (revista da qual o competente Ricardo Alexandre, responsável pela lista que elegeu o Clube, foi diretor de redação). Nessas eleições, alguns discos eram queridinhos. Nas listas de obras gringas, Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band garfava quase todas. Nas de obras brasileiras, Tropicália ou Panis et Circensis era um dos preferidos de sempre.

 

Apesar de meu texto ser sobre o álbum Clube da Esquina, vou precisar me deter aqui sobre discos como Tropicália, tentando brevemente traçar uma linhagem conceitual na qual esses (e outros trabalhos musicais) se inserem. Me refiro a diversas obras que, a partir do fim da década de 1960, tentam atualizar o conceito de antropofagia na acepção do poeta modernista Oswald de Andrade. O que não é pouca coisa. Para gente como Eduardo Viveiros de Castro (um dos grandes nomes da antropologia mundial, orgulhosamente brasileiro), a antropofagia é a grande contribuição intelectual do Brasil (e foi nesse conceito que Viveiros bebeu para elaborar seu perspectivismo ameríndio).

 

De acordo com o teórico e professor Evando Nascimento (em um artigo intitulado “A desconstrução ‘no Brasil’: uma questão antropofágica?”), a noção de antropofagia pode ser pensada como um possível modelo de formação da cultura e da literatura brasileira. O outro modelo elencado por Nascimento seria aquele que o crítico Antonio Candido trouxe em sua obra seminal Formação da Literatura Brasileira. O trabalho de Candido, já em seu próprio título, propõe um diálogo com todo um leque de obras que buscaram refletir sobre a formação da cultura brasileira a partir de diversos campos do conhecimento, como Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre), Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda), e Formação do Brasil Contemporâneo (Caio Prado Junior). A teoria de Candido também serviu de esteio para o pensamento intelectual característico da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

 

Independente das qualidades dos dois modelos, algo precisa ser trazido à baila: as ideias de Antonio Candido têm, claro, seus méritos no campo da historiografia e da interpretação de obras, autores, além da delimitação de movimentos e marcos literários. Mas a teoria de Oswald vai muito além, na medida em que não apenas pensa os rumos do Brasil numa perspectiva diacrônica, mas nos convida a uma prática também criativa, e que ainda permanece profundamente pulsante e atual – afinal, a cultura do sampler e do remix foi quase que prenunciada pelo Manifesto Antropófago de 1928. E o que dizer de AmarElo, do Emicida, uma verdadeira celebração antropofágica capaz de reativar a chama modernista dentro das periferias brasileiras? No fim das contas, Oswald fez muito mais do que trazer um modelo interpretativo: a antropofagia é um método de criação e reflexão simultâneas.

 

 

Recentemente, José Miguel Wisnik (em sua resposta elegante e magistral a um artigo provocador de Ruy Castro) relembrou os percalços pelos quais o legado modernista passou ao longo de décadas, em um processo de esquecimento e legitimação tardias. Foi no início dos anos 1960 que o modernismo se viu reativado no debate crítico, sendo os poetas concretistas grandes responsáveis por essa discussão. O grupo Noigandres (como era chamado esse coletivo de intelectuais e artistas concretos, em referência à revista que os lançou) buscava refletir como a noção de deglutição oswaldiana podia ser identificada nas produções culturais daquela época.

 

Um artigo em especial de Augusto de Campos (publicado em 1967) teve desdobramentos profundos nesse sentido. No texto, o poeta relaciona a canção “Boa Palavra”, de Caetano Veloso (apresentada pelo cantor baiano no II Festival de Música Popular da TV Excelsior), com o conceito de Oswald, no que ele pensava ser uma “retomada da linha evolutiva” de certa tradição experimental genuinamente brasileira. Entusiasmado com a análise criteriosa de Augusto, Caetano então se aproxima dos concretistas, e, através deles, cria familiaridade com a noção de antropofagia. Isso se torna o estopim para que ele e Gilberto Gil possam consolidar o entendimento de um fio verde-e-amarelo ligando algumas das manifestações artísticas que já andavam fazendo a sua cabeça: nas artes plásticas, a exposição Tropicália, de Hélio Oiticica; no teatro, a montagem de O Rei da Vela pelo Teatro Oficina; e, no cinema, o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Em um período onde o modernismo estava longe de representar o peso canônico de agora, os tropicalistas resgataram o espírito dionisíaco/macunaímico da antropofagia e o irradiaram a partir do campo da música popular.

 

 

Claro que, na verdade, a mistura profana de elementos culturais não é algo essencialmente antropofágico, e, desde sempre, outras culturas já absorveram e adaptaram conteúdos segundo um modus operandi semelhante ao proposto pelos modernistas. Há quem critique o conceito baseado nesta que, na verdade, é uma interpretação simplista e errônea. O que Oswald fez foi dar uma dicção brasileira para uma prática de apropriação presente em várias épocas e lugares. Em 1968, se dermos uma olhada na fila do caldeirão de ícones prontos para deglutição eleitos por Caetano e Gil, estarão lá os Beatles, que também eram aves de rapina famintos por misturas espúrias e variadas: desde o rockabilly, passando pelo folk, vaudeville, música indiana e bolero, é difícil sintetizar a quantidade de referências do quarteto de Liverpool. Portanto, a mistura e a experimentação eram um verdadeiro ethos daquela época.

 

E aqui voltamos ao Clube da Esquina, disco que também pode ser situado nessa linhagem sincrética da qual Tropicália também faz parte (seu lançamento em 1972 – exatos cinquenta anos após o início da Semana de Arte Moderna – desenha uma efeméride temporal que não podemos desprezar). Milton Nascimento, a princípio, até não parecia ser o artista mais afoito por misturas ousadas. Em seus primeiros discos, as arestas de estilo estão bem aparadas, bem conformadas com o padrão de MPB dos festivais. Uma audição de discos como Travessia ou Courage não traz pistas muito aparentes dos próximos capítulos. O fato é que os tempos mudavam rapidamente, e, mesmo existindo algumas pessoas e tendências mais conservadoras que pouco simpatizavam com misturas musicais (como boa parte das pessoas que organizaram a infame Marcha contra a Guitarra Elétrica em junho de 1967), a maior parte do público e dos artistas no Brasil estavam preparados para uma tarefa mais pretensiosa: a de elaborar expressões da matéria prima melódica nacional que se filiassem a parâmetros mais globais e inovadores, tanto na produção quanto na sua circulação.

 

 

Foi nos discos Milton Nascimento, de 1969, e Milton, de 1970, que o artista começa a trazer sua turma mineira para gravar junto (antes de se chamaram Clube da Esquina, Milton se refere aos amigos como “a pá” no encarte de seu disco de 1969). De uma maneira absolutamente generosa, Milton cede o espaço fonográfico de sua carreira como solista para que outros artistas cheguem e contribuam criativamente, gerando um ecossistema de celebração musical intrinsecamente coletiva. Curiosamente, ao mesmo tempo em que abre o caminho para uma órbita de compositores e músicos, a figura individual do próprio Milton paradoxalmente atinge uma estatura mítica que une diversas dimensões de excelência da arte: composição, interpretação, voz, performance, arranjo, harmonia. Praticamente todos os discos de Milton nos anos 1970 (de Milton até, vá lá, Sentinela, de 1980) são obras primas. Em qualquer aspecto ou nuance da artesania própria da música popular, esses trabalhos são irrepreensíveis.

 

Mas sinto que estou sendo vago demais nessa afirmação, e a grandiosidade da premissa pede algo mais direto ao ponto. A questão é que, se o negócio era misturar o caldo da música popular brasileira, me parece plausível afirmar que ninguém foi tão sofisticado quanto o Clube sem deixar de soar popular ao mesmo tempo. Essa é uma linha muito tênue e delicada: mesmo que artistas como Hermeto Paschoal, Egberto Gismonti ou Arrigo Barnabé possam ter sido mais ousados, eles não lotaram estádios e nem angariaram plateias amplamente numerosas cantando em uníssono. O adjetivo “popular” atrelado à música não compõe a sigla MPB à toa, afinal.

 

No caso do Clube da Esquina, estamos falando de um disco que os fãs cantam à plenos pulmões – e isso em meio a harmonias modais, polirritmia, fusões estilísticas imprevisíveis, silêncios repentinos, e sem contar também as letras ainda hoje originais, oscilando entre o singelo e o bizarro, o sublime e o aterrador, o familiar e o estranho. A ousadia nas misturas foi tamanha que, para a diretora Geni Marcondes, o Clube conseguiu uma façanha que era tida como impossível: unir os universos rural e urbano do Brasil. No campo da música popular, o arcabouço harmônico e lírico da bossa nova e da música rural eram tidos como água e óleo. Um dos milagres do Clube foi o de realizar essa mistura sem que o resultado parecesse incoerente ou forçado.

 

Temos também questões de ordem sociológica e mesmo ética que podem ser evocadas aqui. Como o fato de que Milton praticamente cria, em seu convite de comunhão da música, todo um movimento artístico que, de outra maneira, talvez não existiria. Ele enxerga méritos em figuras que pareciam não caber dentro do showbusiness brasileiro da época – me refiro aqui sobretudo aos então meninos Lô Borges e Beto Guedes, dois garotos supostamente hippies demais para a MPB da era dos festivais. O aceno visionário de Milton para ambos gerou duas das mais inspiradas carreiras da nossa música. E isso sem contar a galáxia de outros tantos compositores, intérpretes e músicos de apoio surgidos das sessões do Clube.

 

Assistindo ao podcast Corredor 5 esses dias, um dos entrevistados comentou que a situação da MPB nos anos 90 era crítica, pois as gravadoras entendiam que “não havia lugar para todo mundo”, enquanto selecionavam seu cast de artistas à dedo. Bem, o disco Clube da Esquina provou que não existe esse papo de limitação quando a matéria prima é a boa e velha (e imaterial) música popular. Tal visão economicista da música popular, baseada em critérios de escassez e demanda, é antiga. Entre 1971 e 1972, os executivos da EMI/Odeon acreditavam que essa história de disco coletivo (e ainda por cima duplo) representaria um verdadeiro suicídio comercial. Se não fosse o produtor Adail Lessa para convencer a alta cúpula da gravadora, o Clube não teria acontecido (Lessa também foi quem convenceu os mesmos executivos da Odeon a lançar Chega de Saudade, de João Gilberto, em 1959).

 

Nos anos posteriores, muita gente boa beberia nas influências do Clube. Até mesmo fora do Brasil. Trabalhos significativos de sumidades mundiais como Herbie Hancock, Wayne Shorter ou Pat Metheny são devedores, em algum nível, do trabalho dos mineiros. No campo das influências, porém, talvez os tropicalistas sejam muito mais abrangentes, com um lastro identificável em várias tendências, que vão desde a axé music até o funk carioca e o melody. Voltamos, portanto, ao ponto que comentei no cabeçalho do texto: qual o critério norteador das listas?

 

Dificilmente um único disco será onipresente nas listas que virão daqui para a frente. Mas o momento de glória do Clube em 2022 me parece justo. Não apenas pelo aniversário do principal disco desse movimento, mas também pela necessidade de legitimação à altura da contribuição desses músicos. Ao longo de muitos anos, a mídia e vários ditos formadores de opinião trataram o Clube da Esquina com doses de considerável desdém. As personalidades introspectivas e pouco afetadas dos integrantes do Clube, não muito confortáveis com a necessidade performática que o showbusiness exige, certamente pesaram nesse julgamento. Além, claro, do fato de se tratar de um movimento nascido fora do eixo Rio/São Paulo. Em minhas pesquisas sobre o Clube, cansei de ver resenhas e notas pejorativas a respeito de todo tipo de acusação infundada (nem vou me dar ao trabalho de trazer exemplos deselegantes aqui). Mas, em anos recentes, tem crescido uma revisão, tímida a princípio (como bem apregoa o protocolo da mineiridade) do Clube, e que ocorre em vários setores: institucional (com premiações e homenagens), midiático (matérias na imprensa em geral), documental (filmes, séries audiovisuais) ou acadêmico (teses, dissertações, publicações e debates). Além disso, a difusão da obra do Clube da Esquina no Brasil e no mundo também é digna de nota – vide as menções de artistas contemporâneos como Arctic Monkeys, Kanye West ou Pharrell.

 

Por tudo isso, acredito que era a hora do disco de 1972 encabeçar uma lista como essa. Méritos e qualidades para isso sempre existiram. Sol e chuva sempre estiveram nessa estrada, mas, como cantou Milton, “não importa, não faz mal”. Nada como o tempo para mostrar que amanhã, ou depois de amanhã, segue resistindo na boca da noite o gosto de sol.

 

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