Violações de direitos indígenas no MS chegam a consumidores europeus

Foto: Earthsight

18 Mai 2022

 

Uma enorme área de soja reivindicada como território tradicional da etnia Guarani Kaiowá em Juti (MS) está diretamente ligada a grandes supermercados e redes de restaurantes na Europa.

 

A reportagem é publicada por Earthsight e De Olho nos Ruralistas, e reproduzida por EcoDebate, 16-05-2022.

 

As informações fazem parte do relatório “Sangue indígena: A dura realidade por trás do frango exportado para a Europa”, fruto de uma investigação conjunta entre a organização ambientalista britânica Earthsight e o observatório jornalístico De Olho nos Ruralistas, que monitora o agronegócio no Brasil.

 

O estudo adentrou as cadeias de suprimento da Lar Cooperativa Agroindustrial, uma das maiores exportadoras de frango do Brasil, e de dezenas de varejistas europeus, onde identificou compras oriundas da Fazenda Brasília do Sul. A Lar exportou à Europa grandes quantidades de frango marinado e congelado, especialmente para Reino Unido, Alemanha e Holanda, assim como ingredientes para produção de ração para pets na Alemanha.

 

“Enquanto o atual governo brasileiro fez tudo que podia para obstruir a demarcação de terras indígenas, latifundiários e exportadores de alimentos se beneficiaram de áreas historicamente reivindicadas pelos povos originários”, afirma Rubens Carvalho, diretor de pesquisa em desmatamento da Earthsight. “Estas empresas alcançam mercados globais e, inadvertidamente, tornam os consumidores cúmplices dessas violações”, complementa.

 

Expulsão de indígenas durante a ditadura e a agropecuária no MS

 

Com 9.700 hectares, a Fazenda Brasília do Sul foi formada sobre um território ancestral da etnia Guarani Kaiowá, conhecido como Taquara, de onde os indígenas foram ilegalmente expulsos nos anos 1950 para dar espaço à monocultura. A política de remoção forçada e confinamento de comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul, implementada durante esse período, é reconhecida pela Comissão Nacional da Verdade como uma grave violação dos direitos humanos.

 

“O caso da Terra Indígena Taquara é um lembrete poderoso do porquê o governo brasileiro deve cumprir seu dever constitucional e avançar com o processo de demarcação das terras indígenas identificadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em vez de se opor e trabalhar para minar direitos indígenas”, acrescenta Carvalho.

 

“É igualmente importante que os mercados consumidores se articulem para banir importações de commodities contaminadas pelo desmatamento e violação de direitos indígenas. Este é um dos principais temas legislativos em discussão no Reino Unido e na União Europeia. Mas antes que essas leis sejam implementadas, é necessário fortalecê-las para que atendam os direitos territoriais de forma integral”.

 

O barão da carne Jacintho Honório da Silva Filho, conhecido por ter ajudado nas primeiras importações de gado Nelore ao Brasil, comprou a Brasília do Sul em 1966. A transação deu início a um ciclo intenso de desmatamento da Taquara, que havia permanecido praticamente intocada até então. A prosperidade da fazenda cimentaria a influência política e econômica do clã Jacintho.

 

Embora tenha feito seu nome na pecuária, na última década a Brasília do Sul passou a produzir soja em larga escala – um dos principais ingredientes de ração animal. Fontes locais confirmaram à equipe da Earthsight e De Olho nos Ruralistas que a soja da Brasília do Sul é vendida a grandes cooperativas e traders, incluindo a Lar Cooperativa Agroindustrial, uma das principais produtoras brasileiras de avicultura.

 

Violações dos direitos indígenas alimentam mercado europeu

 

Registros comerciais mostram que a importadora britânica Westbridge importou mais de 37.000 toneladas de frango congelado e marinado da Lar entre 2018 e 2021 – cerca de um terço das exportações totais da empresa ao Reino Unido e União Europeia no período.

 

A Westbridge é uma importante fornecedora de produtos à base de frango para supermercados do Reino Unido, como Iceland, Sainsbury’s, Asda, Aldi, bem como a rede de fast food KFC.

 

No mercado de pets, o principal cliente europeu da Lar foi a empresa alemã Paulsen Food, que importou 14.000 toneladas entre 2017 e 2021. A Paulsen Food fornece estes produtos às fabricantes Saturn Petcare e Animonda Petcare. A Saturn distribui rações a varejistas como Aldi Nord, Aldi Süd, Lidl, dm-drogerie markt, Edeka, Netto Marken-Discount, Rewe Markt e Rossmann. Já os produtos da Animonda podem ser encontrados na Fressnapf, a maior revendedora de ração animal da Europa, e em lojas online como Zooplus, Medpets e Vetsend.

 

Impunidade

 

Nesse intervalo, as tentativas dos Guarani Kaiowá de retomar seu território vem sendo brutalmente suprimidas, incluindo através de despejos violentos e do ataque judicial. Essa violência culminou em 2003 com o assassinato do líder indígena Marcos Veron, espancado até a morte quando empregados da Brasília do Sul e pistoleiros contratados atacaram o acampamento dos Guarani Kaiowá dentro da fazenda.

 

Três pessoas foram condenadas pelo crime, mas Jacintho Honório da Silva Filho, apontado como mandante do crime, nunca enfrentou a justiça. Ele morreu em 2019 aos 102 anos. Seus herdeiros ainda são donos da Brasília do Sul.

 

Atualmente, os Guarani Kaiowá continuam sofrendo com a falta de acesso às suas terras ancestrais. Apesar da Constituição Federal proteger os direitos territoriais indígenas, sucessivos governos e o próprio sistema de Justiça vêm ignorando seus anseios, em favor de latifundiários.

 

Nos últimos anos, Jacintho e seus familiares apoiaram ativamente o presidente Jair Bolsonaro e políticos do agronegócio, como a ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina, que promoveram a expansão agropecuária às custas dos direitos indígenas.

 

O Mato Grosso do Sul possui o maior número de homicídio de indígenas no Brasil, frequentemente descrita por especialistas como “genocídio” ou “extermínio”. Mesmo marginalizados, os Kaiowá mantêm sua capacidade de resistência e esperança.

 

A soja produzida na Brasília do Sul está também vinculada a consumidores europeus através de outra grande cooperativa brasileira, a Coamo, que esteve implicada no episódio conhecido como “Massacre de Caarapó”. Uma das plantas da empresa no município foi o ponto de encontro de onde 70 pistoleiros contratados por fazendeiros locais saíram para atacar uma comunidade Kaiowá, resultando no assassinato do agente de saúde indígena Clodiode de Souza e em seis pessoas feridas, incluindo uma criança.

 

Entre 2017 e 2021, a Coamo exportou 3,9 milhões de toneladas de bagaço de soja (um produto obtido da prensagem dos grãos e usado em ração animal), para União Europeia e Reino Unido. A Alemanha foi responsável por metade dessas exportações e a Holanda por outros 36%.

 

Acesse o relatório completo clicando aqui.

Assista ao vídeo para saber mais.

 

Sobre a Earthsight

 

Fundada em 2007, é uma organização investigativa sem fins lucrativos baseada em Londres no Reino Unido, que realiza levantamentos para expor crimes ambientais e sociais, injustiça e os seus vínculos com o consumo global.

Clique aqui para acessar o site.

 

Sobre o De Olho nos Ruralistas

 

Fundado em 2016, é um observatório do agronegócio no Brasil. De seus impactos sociais e ambientais. Do desmatamento à expulsão de camponeses, da comida com agrotóxicos à violação de direitos dos povos indígenas.

Clique aqui para acessar o site.

 

Leia mais