"Literato, cientista, agrônomo e astrônomo, nos mais altos níveis da burocracia imperial, Xu Guangqi esteve ao lado de Matteo Ricci e foi a ponte entre o Ocidente e o Oriente no anúncio do Evangelho fundamentado na amizade".
A análise é do historiador italiano Agostino Giovagnoli, professor da Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, e diretor do Departamento de Ciências Históricas da mesma instituição. O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 27-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Paolo Xu Guangqi é uma figura histórica muito famosa na China, mas pouco na Itália: aqui, se ignora que ele foi o mais importante discípulo de Matteo Ricci, enquanto lá é muitas vezes recordado sem vinculá-lo ao missionário de Macerata.
Mas Xu Guangqi – o “doutor Paulus”, como era chamado pelos cristãos chineses do século XVII – teve um papel importante na cúpula do Império chinês, porque fundamentou na fé cristã e na cultura ocidental – que ele conheceu por meio dos missionários jesuítas – uma grande obra a serviço do seu país.
Em suma, ele foi verdadeiramente uma “ponte” entre o Oriente e o Ocidente, uma daquelas raras figuras de passeurs que permitem que homens e mulheres de civilizações diferentes se compreendam reciprocamente.
Agora, porém, também na Itália é possível saber mais sobre essa figura – que precisamente nestes dias foi lembrada na China com diversas iniciativas – graças aos trabalhos de Elisa Giunipero, que leciona História do Cristianismo na Universidade Católica do Sagrado Coração, em Milão. Um livro organizado por ela foi dedicado a Xu, intitulado “Un cristiano alla corte dei Ming” [Um cristão na corte dos Ming] (Ed. Guerini, 2013), que reúne vários artigos sobre a obra e a biografia dessa importante figura.
Mais recentemente, Giunipero publicou “Xu Guangqi e gli studi celesti” [Xu Guangqi e os estudos celestes] (Ed. Guerini, 2020), que reúne a tradução do italiano de uma série de escritos desse literato ou de autores cristãos próximos a ele.
“O fio condutor dessa coletânea gira em torno do conceito de Tian xue, ‘estudos celestes’, cujo objeto de estudo é precisamente o Céu, entendido no seu sentido mais amplo. ‘Tian’, Céu, segundo a versão elaborada na China pelos jesuítas e pelos seus interlocutores chineses, incluía de fato o Criador e a sua criação, o universo” (p. 10).
Como se sabe, a missão dos jesuítas na China do século XVII constitui um dos capítulos mais importantes de toda a história das missões católicas no mundo. No mesmo período, foi fundada a Congregação de Propaganda Fide – em 2022, celebra-se o seu 400º aniversário – cuja Instrução de 1659 advertia os missionários de que não havia nada “mais absurdo do que transplantar a França, a Espanha, a Itália ou qualquer outro país da Europa na China [...] Não é isso que deveis introduzir, mas a fé, que não rejeita nem fere os ritos e os costumes de nenhum povo, desde que não sejam maus, mas quer salvaguardá-los e consolidá-los”.
Matteo Ricci e os seus companheiros praticaram esse espírito, escolhendo a amizade e o diálogo para desenvolver um encontro humano autêntico e levar o anúncio do Evangelho. Por isso, eles se esforçaram para mostrar a plena sintonia entre os pressupostos da fé cristã e a cultura da China do seu tempo, publicando também muitas obras em chinês (aliás, sem a complacência com o sinocentrismo que lhes foi atribuída).
Mas, como disse Bento XVI em 2010, “a admiração pelo Pe. Ricci não deve [...] nos fazer esquecer o papel e a influência dos seus interlocutores chineses [...]. Destes, o primeiro e mais famoso é Xu Guangqi, natural de Xangai, literato e cientista, matemático, astrônomo, estudioso de agricultura, chegou aos mais altos níveis da burocracia imperial, um homem íntegro, de grande fé e vida cristã, dedicado ao serviço do seu país e que ocupa um lugar de destaque na história da cultura chinesa”.
Xu Guangqi ajudou Matteo Ricci a escrever e a traduzir várias obras ao chinês, favoreceu a compreensão da obra realizada pelos missionários europeus e os protegeu durante a perseguição de Nanquim em 1616. Mostrou, acima de tudo, que o seu ensinamento cristão ia ao encontro de exigências profundas da China do seu tempo, gravemente enfraquecida pela instabilidade econômica, pela decadência moral e por duros confrontos políticos: a crise profunda logo levaria ao fim da dinastia Ming em 1644, após a agressão vinda do Norte, e ao advento ao poder da dinastia Qing.
Entre o fim do século XVI e o início do século XVII, os espíritos mais responsáveis da alta administração imperial denunciaram uma crise moral cada vez mais profunda, e Xu Guangqi considerou que o ensino dos jesuítas era uma resposta válida a essa crise.
Nesse sentido, é iluminador o posfácio de Xu, publicado em “Xu Guangqi e os estudos celestes”, a uma obra de Matteo Ricci, as “Vinte e cinco sentenças”, que fez muito sucesso porque mostrava a plena sintonia entre a moral estoica revisitada em chave cristã e uma moral tradicional chinesa, de inspiração confucionista, cada vez menos praticada. Xu amadureceu a convicção de que o cristianismo “podia complementar o confucionismo e substituir o budismo”.
Como escreve Elisa Giunipero, essa frase, que depois ficou muito famosa, conecta-se à aguda percepção que Xu tinha da “fase histórica de crise e ao mesmo tempo de busca e abertura a novas perspectivas” pela qual o Império chinês passava naquele momento. Por causa dessa crise, Xu acreditava que o cristianismo favoreceria uma profunda renovação espiritual, que revigoraria o tecido moral da sociedade chinesa e permitiria aqueles sucessos “práticos” muito necessários naquele momento histórico.
Sob essa ótica, o cristianismo deixava de ser uma religião estrangeira e um “corpo estranho” no que diz respeito à história chinesa, como o próprio Xu sublinha ao comentar a descoberta da estela de Xi’an, obra dos monges siríacos que evangelizaram a China entre os séculos VI e VII.
Em suma, Xu Guangqi teve um papel de destaque no encontro intercultural entre o Ocidente e a China no século XVII, mas, como se sabe, tais encontros nunca são apenas eventos culturais. Quando homens e mulheres de culturas diferentes estabelecem relações profundas entre si, laços sólidos também se desenvolvem entre as sociedades a que pertencem.
Esses encontros também são importantes para a paz no mundo. Por isso, as são particularmente atuais hoje as figuras de Matteo Ricci e de Xu Guangqi, inseparáveis uma da outra, e cuja causa de canonização conjunta se deseja há muito tempo.