No Dia Mundial do Livro, o escritor comenta o desafio de escrever e editar em um país que não lê.
A entrevista é de Walmaro Paz, publicada por Brasil de Fato, 24-04-2022.
Rafael Guimaraens começou como jornalista transitando por várias redações, entre elas a do lendário Coojornal, virou assessor de imprensa e descobriu-se escritor para, em nova autodescoberta, tornar-se editor, ao lado de sua companheira Clô Barcellos. É a dobradinha que, pilotando a editora Libretos, há mais de 20 anos escava, esmiuça e mapeia a história política, social e cultural de Porto Alegre.
Nesta jornada, todos nós ficamos sabendo mais sobre a enchente que arrasou a cidade em 1941, a efervescência local do movimento estudantil sob a ditadura, o levante dos gaúchos contra o fracassado golpe militar urdido pelos militares contra João Goulart em 1961, a trajetória dos teatros de Arena e de Equipe, a epopeia de quatro anarquistas que assaltaram uma casa de câmbio em 1911 deixando a provinciana capital em polvorosa e muitos outros episódios, instituições e personagens.
Para marcar o Dia Mundial do Livro, 23 de abril, o Brasil de Fato RS conversa com Rafael Guimaraens. Na pauta, o duplo ofício de escritor e editor, o baixo índice de leitura nacional, a ascensão dos e-books, a extinção das políticas de apoio ao livro, a privatização acelerada dos espaços públicos de Porto Alegre, o apagamento seletivo da memória da cidade e os ataques à Cultura no país.
Que papel tem o livro na sua vida?
Cresci num quarto com uma estante de livros que ocupava toda a parede, que pertenceram ao meu avô, o poeta Eduardo Guimaraens, e ao meu pai, jornalista e intelectual. Com tantos livros, aprendi a ler sozinho, aos quatro anos. Desde então, houve época em que eu lia muito e outras em que eu lia menos, por falta de tempo. Trabalhei como jornalista, mas só comecei a escrever livros depois dos 40 anos. Hoje, estou sempre envolvido em projetos literários. Termino um livro e já tenho outro em mente, e isso tem sido a minha vida.
Na história da humanidade, o livro teve o papel de guardar a memória e contar as histórias dos que os escreviam, mas o acesso era restrito porque se tratavam de manuscritos. Com o advento da imprensa houve uma democratização da leitura?
O livro é um fabricante de memória, assim como os jornais. A questão da efetiva democratização da informação, nos dois casos, é mais complicada. Os livros ainda são restritos e os jornais, no caso do Brasil, são vinculados a grupos com interesses econômicos e políticos bastante específicos. Muitas vezes, misturam a informação jornalística, que é de interesse público, com os interesses do proprietário. Talvez por isso estejam perdendo leitores para as redes sociais, o que é preocupante. Vemos os tais influencers, muitos sem qualquer preparo, produzindo para milhões de pessoas conteúdos irrelevantes, que muitas vezes reforçam preconceitos, ou atuam na área da fofoca e do culto a celebridades fabricadas pelos escritórios de gestão de imagem.
Como define a tarefa de editar livros em um país que não lê?
Um desafio enorme. Estamos sempre atentos ao segundo “L”, o da Leitura, ou seja, o acesso ao livro como direito de cidadania. Participamos de feira, realizamos doações a bibliotecas comunitárias, promovemos ações de contação de histórias e, para cada livro lançado, realizamos eventos abertos sobre o tema tratado. Também procuramos manter uma política de preços mais acessíveis, mesmo que isso signifique diminuição da nossa margem. E, como editora, nos envolvemos em ações promovidas por entidades da área e frentes parlamentares em defesa do livro.
De acordo com a publicação Retratos da Leitura no Brasil, 52% (ou 100,1 milhões de pessoas) dos brasileiros, dedica-se à leitura, sendo a bíblia e jornais os mais lidos. A que se deve esse percentual aquém do ideal?
É baixíssimo. Por exemplo, os franceses leem 21 livros por ano, cinco vezes mais do que os brasileiros. No Brasil, 44% da população não lê e 30% nunca comprou um livro na vida. E o pior: o país vem perdendo leitores a cada nova pesquisa.
O estímulo à leitura só pode ser feito através de políticas consistentes de acesso, redução do preço de capa, estímulo a programas de leitura nas escolas e comunidades, incentivo a bibliotecas, promoção de eventos. Essa é uma tarefa da sociedade e do poder público, que, obviamente, não será assumida pelo atual Governo. Não vamos esquecer as palavras do atual mandatário a respeito dos livros didáticos: “Um montão de amontoado de muita coisa escrita”.
A pesquisa aponta também Porto Alegre como a 14ª capital no quesito leitura, mesmo abrigando a maior feira a céu aberto da América Latina. A que se atribui isso?
É um dos efeitos do processo de apagamento da memória do período áureo que a cidade vivenciou durante a década de 1990 e início dos anos 2000, quando Porto Alegre chamava a atenção do mundo por soluções democráticas originais que combinavam participação popular com maior qualidade de vida, com ênfase na Cultura.
Para os interesses econômicos que passaram a mandar na cidade, era necessário desmobilizar a cidadania, através de um lento e proposital esvaziamento dos processos de participação popular, o sucateamento dos órgãos de defesa do meio ambiente e a extinção de políticas culturais de apoio aos artistas e democratização da Cultura – cito, como exemplo o fim do Fumproarte (Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural).
Fico com a impressão de que a cidade foi anestesiada por uma sucessão de ações desmobilizadoras das administrações seguintes, que, embora de partidos diferentes, seguiram e seguem a mesma política. Parece que a cidade perdeu sua alma. Aquela cidadania viva, atuante e participativa tornou-se desanimada e conformista. Evidentemente que há bolsões de resistência, especialmente pelo trabalho dos artistas, dos lutadores sociais, e a transformação da cidade, na minha opinião, passará por eles.
"Quando ouço alguém falar em cultura, puxo o meu revólver". A frase atribuída tanto a Himmler quanto a Goebbels, ministros de Hitler, ganhou uma atualização inesperada com a decisão da Secretaria da Cultura de Bolsonaro de recomendar o uso da Lei Rouanet para incentivar a adoção de armas pela população como acaba de ser denunciado. Qual a sua opinião enquanto escritor e editor?
“Abaixo a inteligência, viva la muerte!”, diziam os fascistas espanhóis. Essa proposta é uma caricatura bizarra e indecente deste governo, a Cultura instrumentalizada não para o prazer e o esclarecimento da cidadania, mas para estimular a indústria da morte. Estamos vendo coisas que nem a mente mais fértil e tresloucada poderia imaginar. Me parece que na reta final, Bolsonaro toma medidas ou faz acenos para, mesmo que não ganhe a eleição – e não ganhará -, consolidar o bolsonarismo como força política. Este será seu único e indesejável legado para a História do Brasil.
Como foi ser escritor nesses dois anos de pandemia?
Meus livros têm o perfil de construção da memória. Assim, no meu caso, além da revolta, como cidadão, por assistir, impotente, ao extermínio de milhares de cidadãos pela covid somada à irresponsabilidade criminosa do governo, a pandemia dificultou o acesso aos locais de pesquisa.
Qual o papel do livro em sua vida? Fale também sobre a sua parceria com a Clô Barcellos na editora Libretos.
A Libretos foi criada há pouco mais de 20 anos e se mantém no mercado como uma editora reconhecida por seu catálogo de obras relevantes. Ao longo deste tempo, busca se aperfeiçoar, principalmente por iniciativa da Clô, que está sempre ligada nas questões do mercado editorial. Não editamos todos os livros que gostaríamos, mas todos os que editamos nos orgulham. A Clô dirige a Libretos e é responsável pelo design de quase todos os livros que publicamos neste período – e já são mais de duzentos. Além disso, me garante todas as condições para que eu possa trabalhar com tranquilidade.
Neste século, com as novas mídias, o papel do livro continua o mesmo?
O papel do livro é o mesmo: uma fonte de prazer que provoca a reflexão e estimula a imaginação de forma mais completa do que outras formas de expressão artística. Em relação às outras mídias, bem, e-book é livro. Em outro formato, mas é livro. Sua evolução, de início, foi mais lenta do que o anunciado, mas cresceu muito durante a pandemia. Hoje, vende-se um e-book a cada 42 livros no Brasil, mas três anos atrás a relação era um e-book para cada 95 livros físicos vendidos.
Os leitores jovens, em geral, estão aderindo ao livro digital, portanto é natural que essa relação se torne equilibrada. Além disso, o livro físico enfrenta um momento delicado. Os custos gráficos aumentam em patamares superiores à inflação. No caso do papel, estão vinculados ao dólar – e essa é uma vantagem dos digitais. O preço de capa do livro físico não consegue acompanhar os custos, pois as vendas diminuiriam. Tivemos um momento grandioso em 2005, com a Lei do Livro que desonerou o IOF (12%) da cadeia produtiva do livro e provocou um aumento excepcional no número de obras editadas e nas vendas de livros. Essa iniciativa do Governo Lula era complementada com uma série de iniciativas de estímulo à cadeia dos três “L”s (livro-economia, leitura-direito de cidadania, literatura-estímulo aos escritores).
Em relação a outras mídias de entretenimento, há uma relação desigual. Por exemplo, a mensalidade de uma assinatura de streaming, em muitos casos, é a metade do preço de um livro. Em outros países com mais tradição, o livro sobrevive com vigor. No Brasil, sem uma ação governamental mais consistente, o problema do livro irá se agravar.
Seus livros trazem como ambiente a cidade de Porto Alegre. A cidade está passando por transformações, com a orla sendo renovada, a Redenção ganhando um espaço gourmet, o centro cultural do Gasômetro abandonado, o anúncio da demolição do anfiteatro Por do Sol, o encaminhamento das privatizações do DMAE e da Carris. Como vê este momento em que os projetos da cidade em andamento são aqueles que envolvem a iniciativa privada?
Porto Alegre, na minha opinião e na de muita gente, está sendo descaracterizada de forma abrupta e acelerada. A paisagem da cidade vem sendo violentada por uma enxurrada de torres e espigões que põem abaixo o casario tradicional da cidade e sequestram da população as paisagens mais nobres, deixando os graves problemas da cidade à sua sombra.
Aos exemplos mencionados na pergunta, acrescento a situação do Cais do Porto, a área mais importante da cidade do ponto de vista histórico, fechado há mais de dez anos, com seus armazéns abandonados pelo descaso e sendo corroídos pela ferrugem. Este é o resultado de uma privatização irresponsável na qual o poder público cedeu a área, não se sabe em troca de quê, para a instalação de torres e de um shopping center no local. O projeto fracassou e a carta de concessão do cais tornou-se uma espécie de moeda, passando de mão em mão para grupos cada vez mais desqualificados e sem compromisso com o patrimônio histórico. A prometida revitalização transformou o Cais em escombros. O governo estadual foi obrigado a retomar a área, a contragosto, mas não adotou nenhuma iniciativa no sentido de recuperá-la. O Cais Embarcadero, instalado entre o Cais e a Usina é uma espécie de maquiagem para esconder a colossal incompetência para enfrentar o problema.
Qual a cidade do mundo que permitiria que seu cartão postal, um de seus espaços mais importantes, fosse tratado desta forma? O movimento Cais Cultural Já é uma iniciativa importante no sentido forçar a abertura os portões e destinar a área para atividades artísticas e da economia solidária, o que, na minha opinião, é uma solução natural e inteligente.
O Brasil tem uma história de proibição e da impressão e da manutenção do analfabetismo como política de governo durante a maior parte de sua história. O que representa isso na indústria do livro?
Manter o povo na ignorância é o recurso mais óbvio utilizado pelos dominadores. Hoje, não se proíbe a impressão, mas se extingue políticas de apoio ao livro, como, por exemplo, o fim ou a redução das compras de livros pelo governo, que garantiam o acesso dos leitores e devem fôlego às editoras. Aliás, a extinção do Ministério da Cultura – ou sua transformação em secretaria no âmbito do Ministério do Turismo - demonstra o enorme receio dos governos déspotas em relação à potência da Cultura como ferramenta para o esclarecimento das massas.
O que está lendo no momento?
Estou lendo Quatorze camelos para o Ceará, do jornalista Delmo Moreira, e recomendo com muito entusiasmo.