29 Março 2022
É preciso fazer amadurecer uma linguagem diferente, na qual os fiéis, em todos os níveis, possam entender que, se quiserem fazer a guerra, não podem fazê-la sob a proteção de Deus: esse deveria ser o ABC da fé.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 27-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com singular pontualidade, apesar de toda a atenção, eis que ressurge a antiga questão: por mais que se trabalhe com cuidado sobre os textos sagrados, sobre a sua hermenêutica, sobre os limites entre uso e abuso do texto, quando as coisas se tornam dramáticas, e as vidas, precárias, a tentação da “cobertura sagrada da violência” torna-se novamente um caminho aberto, amplo, transitável e praticado com desenvoltura.
Não gostaria aqui de falar daqueles que, pelo ministério, seriam obrigados a distinguir acuradamente a palavra dos homens da palavra de Deus. Os ministros da Igreja são os menos justificados em usar o texto sagrado contra alguém, como bandeira de uma parte contra a outra. O cristianismo não se presta a essas instrumentalizações odiosas, que se tornam blasfêmias, mesmo que na boca dos mais altos escalões da hierarquia eclesial. Isso ocorreu e ocorre, mas agora não está no centro das atenções.
Aqui, eu gostaria de falar, em vez disso, do recurso que presidentes, ministros, generais ou parlamentares podem fazer do texto sagrado da Escritura ou da Tradição, e que, como demonstram as notícias das últimas semanas, parece ser utilizado sem contexto, com uma liberdade e um cinismo que qualquer exegese séria só pode contestar com absoluta clareza.
Mas isso ocorreu nas últimas semanas primeiro nas palavras do presidente da Federação Russa, que ousou citar o “dar a vida pelos amigos” pronunciado por Jesus em uma versão corrupta e mafiosa, como se fosse um acerto de contas entre facções adversas, entre amigos e inimigos.
Depois, ocorreu com o presidente dos Estados Unidos, que citou as palavras inaugurais do pontificado de João Paulo II sobre o “não tenham medo”, não para superar a guerra, não para superar as fronteiras, não para abrir as portas a Cristo, mas para incitar as tropas estadunidenses ao combate contra o inimigo.
É normal que, em guerra, cada lado demonize o inimigo. Mas se, para isso, chama Deus ao campo, os chefes das Igrejas e os fiéis têm o dever de não permitir que se confunda Deus com essas parcialidades.
Um ortodoxo e um católico que, como chefes de Estado, desfiguram, deturpam, ultrajam a palavra pela qual deveriam ser guiados e orientados é um problema não secundário também em 2022. Desse modo, é-lhes permitida a pior idolatria, a blasfêmia mais grave, a rebelião mais insidiosa: aquela que substitui a intenção do texto – que em ambos os casos não é parcial, mas universal, não fechada, mas aberta – pela sua leitura de parte, de separação, de oposição, de morte. Uma palavra de anúncio da vida para todos se torna palavra de ameaça de morte para os outros.
Aqui, como é evidente, cada fiel que cai nessa armadilha utilitarista se torna uma contratestemunha. E, se fizer isso como presidente de uma grande nação, o seu contratestemunho se torna escândalo e blasfêmia.
Os ortodoxos deveriam se rebelar contra essas palavras insolentes, e os católicos também deveriam fazer o mesmo. Ninguém, nem mesmo o homem mais poderoso da terra, pode se dar ao luxo de jogar a palavra de Deus na lama, de reduzi-la a suporte das suas próprias políticas de poder e de morte.
O Deus de Jesus Cristo reprova essas palavras, cospe-as, condena-as e subverte-as. Dar a vida pelos amigos e não ter medo dizem respeito à tarefa da paz, não à organização da guerra.
A inércia de uma tradição opaca e distorcida, que confundiu os níveis, as competências e as palavras, ainda é forte. O Concílio Vaticano II mudou muitos textos, mas ainda não mudou as cabeças. É preciso fazer amadurecer uma linguagem diferente, na qual o fiel ortodoxo e o católico, em todos os níveis, possam entender que, se quiserem fazer a guerra, não podem fazê-la sob a proteção de Deus: esse deveria ser o ABC da fé.
Ter presidentes russos e estadunidenses cristãmente analfabetos, e sem conselheiros seculares ou eclesiais suficientemente autorizados, absolutamente não é uma grande garantia em tempos tão conturbados.
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Presidentes cristãmente analfabetos. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU