O que é substantivo ao se pensar esses 250 anos é perguntar o que fizemos aos ecossistemas onde a cidade está inserida, diz coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre.
A reportagem é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 26-03-2022.
A cidade de Porto Alegre completou 250 anos neste sábado, 26 de março. A data está sendo objeto de muitas celebrações e comemorações, mas pode servir também de inspiração para pensar o atual estado social e ambiental da capital do Rio Grande do Sul. E os problemas nesta área não são poucos. Na avaliação do geólogo Rualdo Menegat, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, a capital gaúcha é hoje uma cidade ambientalmente abandonada e encontra-se a mercê de um extrativismo predatório neocolonial.
Em entrevista ao Sul21, Rualdo Menegat fala sobre os 250 anos da cidade com esse olhar. Para ele, o que é substantivo ao se fazer uma perspectiva histórica de 250 anos é perguntar “o que fizemos aos ecossistemas onde nossa cidade está inserida e qual a dimensão atual de nossa Porto Alegre?”. Entre outros problemas, o geólogo alerta para os impactos da especulação imobiliária sobre a orla do Guaíba e outros territórios e para a crescente deterioração dos serviços ecossistêmicos, em especial aqueles oferecidos pela água.
“A contaminação do lago Guaíba está em seu limiar, principalmente nos pontos de captação de água no canal Navegantes. Além disso, Porto Alegre não tem um manancial de emergência, caso aconteça algum desastre industrial no Guaíba. Um hipotético colapso do abastecimento de água de Porto Alegre devido a uma contaminação do Guaíba, levaria ao colapso de toda a megacidade”.
Como você definiria, de um modo geral, a situação de Porto Alegre hoje como cidade, no momento em que ela completa 250 anos?
Porto Alegre é uma cidade com grandes desafios, potencialidades, ambientalmente abandonada e com diminuição de sua auto-estima. A cidade é um sistema complexo composto pela urbe – o aparato urbano construído – a civitas, a cidade, quer dizer, seu espírito, a cidadania, a sociedade civil, a civilidade e sua cultura. E, tudo isso, alojado e em interação com os ecossistemas onde se situa e dos quais é dependente. As cidades são organismos exageradamente consumistas e lineares. Retiram tudo do ambiente e nada devolvem a ele, exceto materiais rejeitados, que chamamos lixo, esgotos, fumaças e seus venenos.
O que é substantivo em uma perspectiva histórica de 250 anos é perguntarmo-nos o que fizemos aos ecossistemas onde nossa cidade está inserida e qual a dimensão atual de nossa Porto Alegre? Iniciemos pela segunda questão. Já estamos muito longe da Porto Alegre de nossos avós, a cidade dos bondes, do porto, dos passeios na Rua da Praia e na livraria Globo. Essa cidade dos anos 1950, então com seus 500 mil habitantes, ainda era uma mancha isolada no mapa. Hoje, quando olhamos Porto Alegre no Google Earth, vemos uma gigantesca mancha urbana contínua, que vai até Novo Hamburgo e Sapiranga, onde vivem cerca de 4,6 milhões de pessoas. Essa cidade gigante, é muito mais complexa do que aquela de nossos avós. Por isso, muitos problemas urbanos atuais derivam desse gigantismo que temos dificuldade de tomar consciência.
Poderia citar alguns exemplos de problemas derivados desse gigantismo?
Estar em Porto Alegre é estar na mesma urbe de São Leopoldo ou Gravataí, Canoas ou Alvorada, Sapucaia ou Novo Hamburgo, Guaíba ou Esteio, Viamão ou Cachoerinha. A mobilidade urbana é o sintoma mais claro da complexidade dessa gigantesca mancha urbana, que não está sendo cuidada em seu conjunto e pouco também em suas partes. Cada núcleo urbano metropolitano ficou refém de práticas anacrônicas e ineficientes de transporte coletivo. E, aqui, não há soluções locais nem pontuais. Se faz necessário um plano integrado. Porto Alegre ainda não tem seu sistema BRT.
Mas, a segunda questão é a mais preocupante. Os programas ambientais não só foram abandonados, mas também, a própria estrutura de gestão ambiental foi sendo sucateada. Há 15 anos, havia programas de gestão integrada do ambiente da região metropolitana.
Para citar um: o Programa Pró-Guaíba, onde todos municípios tinham metas para desenvolver sistemas de coleta de esgotos para despoluir o lago Guaíba. Esses programas foram desmontados e hoje, vemos um Guaíba agredido por todos os lados. Seja pela especulação imobiliária que ataca os últimos estoques ecológicos de suas margens, verdadeiros santuários. Seja pelo despejo continuado de esgoto doméstico sem tratamento ou acidentes previsíveis que lançam esgoto industrial. São areeiros que atuam como pontas-de-lança da construção civil que quer se desonerar dos impactos. E, de modo assustador, até a mineração de carvão, cuja proposta de abertura de uma mina a 16 km do centro da capital e a 22 km dos pontos de captação de água para o abastecimento parecia ser uma ameaça sem precedentes.
Essa proposta de minerar carvão na região metropolitana é um sintoma do quanto a cidade abandonou seus programas ambientais e encontra-se a mercê do extrativismo predatório neocolonial por todos os lados. Nesses últimos cinco anos, nenhum prefeito e tampouco a Câmara de Vereadores de Porto Alegre se colocou frontalmente contra esse verdadeiro crime contra a saúde dos ecossistemas, da cidade e da população que o projeto da Mina Guaíba representava. Por ora, o processo de licenciamento desse projeto foi anulado pela Justiça Federal e arquivado pela FEPAM.
O resultado desse brutal descaso reflete-se na perda crescente da qualidade da água que bebemos, um sintoma cada vez mais evidente. A contaminação do lago Guaíba está em seu limiar, principalmente nos pontos de captação de água no canal Navegantes. Além disso, Porto Alegre não tem um manancial de emergência, caso aconteça algum desastre industrial no Guaíba. Isso nos leva a colocar a qualidade da água e o lago por inteiro como a prioridade das prioridades. Estamos correndo um risco enorme.
Então vamos agora unir os pontos: as cidades gigantes são muito mais exigentes quanto a sua gestão, pois os riscos ambientais e urbanos também são crescentes. Um hipotético colapso do abastecimento de água de Porto Alegre devido a uma contaminação do Guaíba, levaria ao colapso de toda a megacidade. Temos exemplos muito claros disso. Na estiagem de 2014, a cidade de São Paulo ficou sem água. A cidade que não para, como era o refrão paulistano, teve que parar. A mortandade histórica de peixes no rio dos Sinos em 2006, como a de mandinhos no Guaíba e mais recentemente no Dilúvio, entre outras, mostra-nos o quanto estamos num limiar crítico em termos ambientais.
Mas não só a água. Houve o abandono do controle da qualidade do ar. Porto Alegre situa-se em uma região de terras baixas em que a bacia atmosférica metropolitana pode ficar estática, acumulando poluentes. Ou no inverno, quando ocorrem inversões térmicas, a neblina passa a armazenar as emissões. Cidades desse porte devem ter programas eficientes e inclusive alertas sobre a qualidade do ar. A frota de ônibus deveria utilizar combustíveis de baixa emissão de poluentes, como o chamado ‘diesel metropolitano’, e mesmo tração elétrica.
Em síntese, há uma deterioração crescente dos serviços ecossistêmicos, em especial aqueles oferecidos pela água. Nossos arroios tornaram-se valões e, alguns deles, não acumulam apenas resíduos sólidos e esgotos, mas também metais pesados. As nascentes não estão sendo protegidas e, com isso, todo o sistema fica comprometido.
Agora veja: em um contexto de mudanças climáticas, a ausência de programas ambientais também significa dificuldades para enfrentar os novos desafios. Se não fizemos o tema de casa elementar, como enfrentar as grandes mudanças em curso no presente século?
As mudanças climáticas nos cobram claros programas acerca dos possíveis impactos ambientais locais, dos quais vou comentar quatro, sendo três relacionados à água e um, ao vento. O lago Guaíba situa-se na continuidade da laguna dos Patos, a qual se conecta com o Oceano Atlântico. A possível mudança na elevação dos oceanos, estimada em 0,60 m até o final do século, ocasionará igual mudança no nível da laguna dos Patos e do Guaíba. Isso terá reflexos no sistema de drenagem urbana e no sistema de esgotamento da cidade. Além disso, chuvas mais intensas, como também são prognosticadas com as mudanças climáticas, tendem a aumentar problemas com inundações e alagamentos, que podem agravar-se em períodos de El Niño. Por fim, as estiagens também tendem a acentuar-se, o que leva a um aumento da concentração de poluentes na água do lago, diminuindo sua qualidade para consumo. Quanto ao vento, há a tendência da sua intensificação, como ocorreu em janeiro de 2012.
Além disso, a cidade deve ter metas de descarbonização e de incentivo a seus cinturões verdes para produção de alimentos. A complexidade de eventos recomenda que tenhamos as fontes de alimento saudável mais próximas.
Por fim, a civitas, a cidadania, está muito fragmentada devido ao bloqueio dos canais de participação. O Orçamento Participativo, uma marca do espírito porto-alegrense, está desativado e os conselhos setoriais, esvaziados e burocratizados. Não há eficiência na gestão ambiental sem a participação da cidadania. Não há como a cidade ser resiliente se a cidadania não pratica essa resiliência e não toma parte da sua projetação. A educação ambiental nas escolas municipais, que por vinte anos foi um exemplo internacional de como se deve fazer, foi sendo desmotivada e desestruturada. Parece que não só os serviços públicos estão no caminho da privatização crescente, mas também a própria democracia está sendo hackeada e emperrada. Quanto mais esmorece a democracia e a cidadania (civitas), mais a cidade fica à mercê das intempéries e de aproveitadores inescrupulosos.
Considerando suas características sociais, ambientais e geográficas, como é possível pensar uma Porto Alegre com melhor qualidade de vida e proteção ambiental?
A região de Porto Alegre situa-se em uma confluência de paisagens que se revela em termos de três grandes patrimônios naturais. O primeiro é o patrimônio hídrico, onde há a convergência de quatro rios – Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí – para o lago Guaíba, com um quilômetro cúbico de água doce, que nos conecta até o oceano. Somos uma cidade que se situa na interface entre o continente e a província costeira. O segundo patrimônio, é o encontro de paisagens do sul da América do Sul, com espécies que são provenientes desde a periferia da Amazônia, do Chaco, do Pampa e da Floresta Atlântica. Trata-se de um ecótono cujo mosaico vegetacional é complexo e único. O terceiro patrimônio, é representado pelos estoques naturais importantes, como o do Parque Estadual Delta do Jacuí, a Reserva do Lami e, mais a sul em Viamão, o Parque de Itapuã.
Esse conjunto vegetacional e geomorfológico se expressa de forma singular nas pontas e enseadas da margem do lago Guaíba. Todo município de Porto Alegre situa-se dentro da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, com áreas núcleo, de transição e amortização. Temos que ter a consciência de habitar nesse lugar. Na verdade, a margem do Guaíba deveria ser um fabuloso corredor ecológico desde a ponta sul do lago, em Itapuã, até o delta do Jacuí e dali seguindo pelos rios e interiorizando-se.
Há, portanto, urgência em se estabelecer uma rede de mobilidade ecológica em todo o território, que sirva de conscientização sobre a natureza desse espaço e também de cuidado. A ideia de que a cidade forçosamente danifica o ambiente deve ser abandonada. As cidades devem aprender a conviver com o cuidado dos ecossistemas se quiserem sobreviver e ser resilientes. Para tanto a cidade não pode bloquear essa mobilidade ecológica, sob risco de perda da biodiversidade e da fragmentação dos hábitats. O corredor ecológico da margem do Guaíba é, ainda importante, pois ele conecta também as manchas florestais e campestres dos morros, através das margens dos arroios.
Hoje, devemos ter uma perspectiva de que habitar um lugar não significa mais pavimentar ruas e avenidas e construir edifícios. As cidades devem modificar a ideia que são constituídas por uma placa de concreto e aço contínua. Precisamos de cidades adaptadas ao lugar, de sorte a não aumentarem os danos aos ecossistemas. Por exemplo, fala-se em cidades porosas, cujo solo urbano é apto para absorver grandes enxurradas. Também se fala em Reserva da Biosfera Urbana – Porto Alegre poderia ser uma área especial dentro da Reserva da Mata Atlântica. Mas isso não é um plano que possa ser feito em gabinetes, mas construído socialmente com a cidadania. A compostagem orgânica associadas com hortas são práticas cada vez mais desejadas, assim como parques agrários nos cinturões verdes periurbanos. As áreas rurais podem ser tanto de produção de alimentos quanto turísticas. Devemos favorecer e incentivar o turismo interno. O lago Guaíba, por exemplo, nos conecta com Guaíba, Barra do Ribeiro, e além, à Laguna dos Patos, onde há lugares belíssimos para se visitar. Não aproveitamos o potencial que está ao lado, o que incentivaria a economia circular, endógena a qual, por sua vez, favorece o cuidado ambiental. Precisamos incentivar os círculos virtuosos, rompendo com os procedimentos lineares de usar e botar fora.
A qualidade de vida não é um conceito abstrato. Podemos facilmente avaliá-la a partir da qualidade da água, do ar, dos alimentos, do acesso à cidade, seus parques, suas belezas. Isso constrói a identidade do lugar, o sentido de pertencimento e com ele o cuidado. Devemos ter cada vez mais consciência que habitamos um lugar impressionante do ponto de vista de sua paisagem e com muita potencialidade para o desenvolvimento sustentável com qualidade de vida para todos.
(Foto: Reprodução Atlas Ambiental de Porto Alegre)
Você coordenou a elaboração do Atlas Ambiental de Porto Alegre, lançado em 1998. Mais de 20 anos depois, o que esse Atlas pode nos dizer sobre o presente e o futuro da cidade?
O Atlas Ambiental de Porto Alegre é um dos maiores bens técnicos-científicos sobre um lugar, que foi produzido por cerca de 230 técnicos e pesquisadores da UFRGS, Prefeitura Municipal e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Foi um olhar da ciência para o lugar, no sentido de elaborar um documento completo que evidenciasse sua história natural, belezas, problemas e potencialidades.
Por conta disso, essa obra serviu de modelo para mais de 60 cidades mundo afora realizarem seus próprios atlas ambientais. Entre elas, grandes cidades sul-americanas, como Buenos Aires, São Paulo, Lima, Recife. Mas também europeias, como Barcelona e Viena, ou ainda, do Oriente Médio, como Dubai.
O Atlas é um poderoso instrumento de planejamento, informação e educação. Ele foi utilizado desde o seu lançamento para o desenvolvimento de um método de educação socioambiental na Rede Municipal de Educação. Esse método consiste na construção de Laboratórios de Inteligência do Ambiente Urbano (LIAU) nas escolas. Esses espaços são constituídos de materiais do Atlas, mas fundamentalmente por produtos resultantes da investigação da comunidade escolar. Há maquetes, litotecas, fototecas, mapotecas e histórias do bairro e sua gente que constituem um minimuseu do ambiente em que a escola se situa. A escola se coloca como um centro de saberes locais, pois os monitores do LIAU apresentam esse espaço para seus colegas e também para a comunidade. A escola como uma inteligência do lugar e não como uma repetidora de saberes foi uma inovação educacional inédita da Rede Municipal de Ensino, desenvolvida ao longo de 20 anos em parceria com o Instituto de Geociências da UFRGS.
Esse processo formou várias gerações de professores e alunos que passaram a olhar de forma diferente o lugar onde moram e estudam. Passaram a ter orgulho do lugar em que nasceram e vivem e aprenderam a representá-lo, cuidá-lo e a ter uma narrativa positiva sobre ele.
Sem a perspectiva de termos uma visão da totalidade sócio-urbana-ambiental não podemos ter um projeto de futuro nem um projeto de gestão. O Atlas é um instrumento que foi testado para proporcionar essa visão comum em termos de uma construção educacional, coletiva, com a cidadania. O futuro da urbe é aquele que a civitas, a cidadania decide. Os instrumentos democráticos e informados com base no conhecimento de um Atlas são fundamentais para isso. Nos últimos anos, as escolas foram fechando os LIAUs por conta de políticas obtusas e também se abandonaram os grandes projetos ambientais. Precisamos urgentemente reverter esse processo.
Muitas cidades têm seus símbolos naturais de modo claro, como o Pão de Açúcar do Rio de Janeiro, a cordilheira dos Andes que emoldura a cidade de Santiago, ou as praias de Salvador. O Atlas Ambiental revelou de modo integrado e histórico que Porto Alegre também se situa em um lugar maravilhoso, de confluência das paisagens do sul da América Meridional, dos relevos sul-rio-grandenses e das águas. Isso tudo está representado pelo seu maior bem ecológico, ambiental e histórico-cultural: o lago Guaíba. Ele é nossa origem e nosso destino. Tudo o que acontecer com ele, acontecerá conosco. Por isso a concertação social, participativa da civitas, da cidadania é o modo com o qual se pode construir um futuro melhor, ambiental e social. Do contrário, ficamos reduzidos à fragmentação e ao descaso.