15 Dezembro 2021
Coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti tem toda uma vida dedicada aos pobres e excluídos. Durante a pandemia, capitaneou doações para levar comida, agasalhos, máscaras e álcool gel para aqueles que não tinham casa para que pudessem cumprir o isolamento, tornando-se presas fáceis para o novo coronavírus. No Brasil, junto com o avanço do vírus, veio também uma epidemia de desemprego e pobreza, agravada pela postura negacionista do governo Bolsonaro.
A reportagem é de Tiago Pereira, publicada por RBA, 11-12-2021.
Além dos mais de 600 mil mortos, as ruas e praças das grandes e médias cidades do país receberam levas de homens e mulheres, idosos e crianças, que perderam seus lares. Contudo, em vez de exercitar a compaixão, conforme os ensinamentos cristãos, o aumento das famílias em situação de rua fez aflorar outra patologia social: a aporofobia, palavra que define o ódio e a aversão aos pobres.
O conceito foi cunhado pela filósofa espanhola Adélia Cortina há mais de 20 anos, a partir da junção dos termos gregos, Á-poros (pobre) e fobéo (aversão). Em 2017, o neologismo foi escolhido como a palavra do ano pela Fundación del Español Urgente (Fundéu), e incorporado aos dicionários da língua espanhola.
Adélia é autora do livro Aporofobia, a Aversão ao Pobre: um Desafio Para a Democracia (Contracorrente). Aludindo ao conceito de xenofobia (ódio ao estrangeiro), a filósofa diz que é a pobreza que causa a verdadeira aversão. Como exemplo, ela cita que, salvo casos isolados, artistas e jogadores de futebol não são alvos preferenciais do ódio xenófobo – porque não são pobres.
A educação, a redução das desigualdades sociais, com regimes democráticos que leve a sério a busca pela igualdade, além da promoção de uma “hospitalidade cosmopolita”, são os caminhos para erradicar esse mal, segundo ela.
Padre Júlio relata que foi justamente a partir do livro da filósofa espanhola que tomou contato com o termo. Contudo, trata-se de um sentido que ele conhece muito bem há décadas. “A importância de nominar esse fenômeno é de refletir sobre ele. De localizá-lo, de percebê-lo em nós, nas cidades, no cotidiano da vida”, afirma o religioso. “Essa aversão, contudo, não é nova. Mas tem se acirrado, na medida em que a população de rua aumenta. Como o número de pessoas em situação de rua tem aumentado, a rejeição aumenta também”, acrescenta.
De acordo com o filósofo e teólogo Roberto Rohregger, mestre em Bioética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), a aporofobia não emerge apenas em períodos de crise econômica aguda. Para ele, essa espécie de “patologia social” está relacionada “a um capitalismo selvagem, que impõe um conceito de meritocracia que ignora os profundos problemas da estrutura social injusta da nossa sociedade”. Nesse sentido, observa, os pobres são encarados como os “perdedores”, os “sem valor”, em função da valorização “do ter, do consumismo, da exposição pessoal nas redes sociais”.
Rohregger destaca que muitas igrejas mantêm a compreensão dos valores do Evangelho, como a fraternidade e a solidariedade, com projetos sociais e presença em locais onde o Estado não chega. Por outro lado, o avanço da chamada “Teoria da Prosperidade” entre algumas denominações cristãs tem contribuído para afrouxar esses valores morais, que deveriam servir como anteparo à aporofobia.
A “Teoria da Prosperidade”, ele explica, acabou incorporando valores do capitalismo, “atrelando sucesso financeiro como demonstração de espiritualidade”. “Esta compreensão acaba contribuindo para o preconceito para com o desvalido, ignorando novamente o problema estrutural da sociedade, onde as possibilidades reduzidas de desenvolvimento por parte daqueles que historicamente são impedidos de acesso as condições básicas para o sustendo da vida, como trabalho e educação”, afirmou. Esta concepção equivocada da realidade, segundo ele, não permite o desenvolvimento da solidariedade e amor ao próximo.
Padre Júlio também comenta que o impulso pela solidariedade e a aversão aos pobres vivem em permanente tensão na sociedade. “É sempre conflitante. Há pessoas que são solidárias. Mas também, às vezes, há aqueles que são solidários com aqueles que estão bem longe. Com aquele que está perto, não”.
“A solidariedade e a rejeição, elas convivem, de diferentes maneiras. É difícil de medir. Há solidariedade, mas também há essa agressividade, essa hostilidade. E principalmente a indiferença em relação ao empobrecidos”, acrescenta.
Em vez de acolhimento e políticas públicas que garantam dignidade, as populações em situação de rua, por vezes, são recebidas com grades, lanças e pedras. Tudo isso para evitar que se alojem sob viadutos ou nas fachadas de bancos e outros estabelecimentos comerciais. Padre Júlio se engajou também nessa luta material e simbólica.
No início do ano, munido de uma marreta, ele quebrou paralelepípedos que a prefeitura de São Paulo havia instalado sob um viaduto na zona leste da capital. Com as próprias mãos, pôs abaixo mais um exemplo daquilo que é chamado de “arquitetura higienista”. Alguns dias depois, ativistas espalharam flores pelo local.
Além da enorme visibilidade, e costumeiras críticas dos mais radicais e insensíveis, a ação rendeu frutos. Padre Júlio deu nome a um projeto de lei, em tramitação no Congresso Nacional, que proíbe o emprego de técnicas de construção hostil nas cidades, ou que utilizem de equipamentos físicos para afastar e restringir o uso de espaços públicos principalmente por pessoas em situação de rua. De autoria do deputado federal Joseildo Ramos (PT-BA), o PL 488/2021 foi aprovado pela Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara, no final do mês passado. Ainda precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) antes de ir a plenário.
Ao mesmo tempo, padre Júlio tem desencadeado uma campanha, em suas redes sociais, contra o avanço da aporofobia. Além de combater a arquitetura hostil, ele também denuncia campanhas que tentam convencer os que podem para que não façam doações aos mais necessitados. Como se a possibilidade de receber esmolas, alimentos e roupas fossem a causa do aumento do número de famílias que vivem nas ruas. De acordo com o religioso, é preciso passar da “hostilidade” à “hospitalidade”.
O pastor do povo de rua não poupa críticas nem quando até a própria Igreja Católica instala grades para manter distantes os indesejados. Caso da Catedral Francopolitana Nossa Senhora da Imaculada Conceição, em Franca, no interior de São Paulo, recentemente cercada para proteger o local de supostos “vândalos”.
Nesse sentido, as primeiras denúncias acabaram produzindo o efeito pretendido. A Diocese de Santo André, no Grande ABC paulista, anunciou na última quinta-feira (9) que, até o fim do mês, vai retirar pedras que foram colocadas na calçada da igreja da Paróquia Sant’Anna, de Ribeirão Pires. A publicação do padre Júlio no Instagram, que expôs os paralelepípedos conta com mais de 1.400 comentários com críticas à atitude da paróquia.
Dias antes, menos de 48 horas após denúncia do religioso, uma agência da Caixa, em Porto Alegre, retirou pedras que haviam sido concretadas na calçada. Em Passos, interior de Minas Gerais, a prefeitura também mandou reabrir o portão de um coreto que havia sido soldado.
Assim, padre Júlio pôde comemorar os primeiros resultados da campanha virtual. “É positivo, na medida em que houve uma pressão, de alguma forma. Uma pressão sobre a imagem pública e o conceito que esses grupos têm de si mesmos”, comenta. Por outro lado, ele lamenta que bancos privados, além de lojas e outros empreendimentos, ainda não tenham se sensibilizado. “Tenho cobrado o Bradesco, o Santander. Mas acho que eles estão mais preocupados com o lucro deles”.
A respeito do post sobre uma das escadas da Catedral de Campinas . https://t.co/smbCWEZOod
— JULIO LANCELLOTTI (@pejulio) December 13, 2021
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Padre Júlio vai às ruas contra a ‘aporofobia’: a aversão aos pobres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU