O anúncio de Zuckerberg oferece uma oportunidade para nós, católicos, recuarmos e considerarmos como queremos pensar sobre o mundo que existe e o que está por vir. Como católicos, a nossa disposição fundamental em relação ao mundo físico é que ele é precioso e significativo.
A opinião é do jesuíta estadunidense Jim McDermott, graduado em Literatura pelas universidades Marquette e Harvard e em Antigo Testamento e Liturgia pela Weston Jesuit School of Theology. Ex-professor da Red Cloud Indian School, na Reserva Indígena de Pine Ridge e colunista da revista America, Pe. McDermott concluiu recentemente seu mestrado em Roteiro de Cinema pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).
O artigo foi publicado America, 02-11-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
Na semana passada, Mark Zuckerberg tentou distrair o mundo daquela que parece ser uma série interminável de revelações chocantes sobre o Facebook com o anúncio de que a empresa está se rebatizando como Meta. Sua maior prioridade se deslocará para o desenvolvimento de um universo virtual, o “metaverso”, dentro do qual supostamente seremos capazes de fazer tudo o que precisamos – comprar, trabalhar, se relacionar – e também tudo o que sempre quisemos. “Estamos no início do próximo capítulo da internet”, escreveu Zuckerberg em uma carta online. “E é o próximo capítulo da nossa empresa também.”
Em muitos aspectos, a mudança foi um gesto clássico de Zuckerberg, leve na assunção da responsabilidade pelos problemas da empresa e pesado na aposta de sempre. “Ah, você se incomoda com o modo como o Facebook usa os seus dados, aumenta o discurso de ódio e manipula todas as pessoas no sentido da hostilidade e da divisão? Legal! Agora vamos nos infiltrar em todos os outros aspectos da sua realidade também”.
Como se poderia supor, a internet não está engolindo nada disso. A conta dos restaurantes Wendy’s no Twitter brincou dizendo que estava mudando seu nome para “meat” [carne]. Usuários judeus ressaltaram que, em hebraico, “meta” significa morto, o que não é exatamente o melhor ponto de partida para um novo empreendimento – embora outro usuário tenha observado que isso significaria que “o metaverso é um universo de zumbis”, o que parece adequado. A deputada Alexandria Ocasio-Cortez sugeriu que o nome era uma abreviação de: “Somos um câncer para a democracia em processo de metástase em uma máquina de vigilância e de propaganda global para impulsionar os regimes autoritários e destruir a sociedade civil... em nome do lucro!”.
Mas, por mais que todos queiramos debochar de Zuckerberg e rezar para que os governos do mundo instituam uma regulamentação muito mais forte sobre os produtos e a empresa dele, a atração da sociedade global pelo virtual é inegável e também, em certo sentido, importante, como os últimos 18 meses demonstraram. Já estamos com um pé em uma espécie de metaverso. Isso não é inerentemente algo ruim e também não vai mudar.
De certa forma, o anúncio de Zuckerberg oferece uma oportunidade para nós, católicos, recuarmos e considerarmos como queremos pensar sobre o mundo que existe e o que está por vir. Zuckerberg pinta o seu metaverso com cores brilhantes: “Pense em quantas coisas físicas você tem hoje que poderiam ser apenas hologramas no futuro”, escreve ele em sua carta. “Nesse futuro, você será capaz de se teletransportar instantaneamente como um holograma para estar no escritório sem deslocamento, em um show com seus amigos ou na sala de estar de seus pais.” Em um vídeo, seu avatar viaja para uma estação espacial, onde ele joga cartas em gravidade zero com o avatar de quatro amigos.
Enquanto isso, o mundo real, aquele em que estamos vivos e respirando, torna-se mais ou menos apenas a área de preparação para as nossas vidas – ou o “carneverso” [meatverse], como Jason Rubin, executivo da Oculus, descreveu em uma carta de 2018 a um membro do conselho do Facebook, apresentando a ideia de um metaverso.
Se você fosse catalogar as heresias da Igreja Católica, aquela que a perseguiu por mais tempo e desde o início é a ideia de que o mundo físico é um lugar odioso de pecado e morte que deve ser rejeitado. Nessa versão do cristianismo, Jesus não foi um ser humano – não realmente – porque, como Deus, ele nunca se permitiria se macular com a carne pecaminosa e fedorenta.
Até hoje, o pensamento da Igreja sobre a sexualidade luta contra essas noções antigas. Quantos católicos ainda acreditam que o sexo se destina apenas à procriação – ou, pior, que o próprio prazer é de alguma forma ruim?
De fato, a doutrina da Encarnação ensina que Deus entrou no nosso mundo não como uma espécie de observador ou de um Deus em uma fantasia humana de Halloween, mas como um ser humano real, com todas as vulnerabilidades e os medos que todos nós conhecemos e experimentamos.
Alguns podem apresentar isso como o fato de Cristo “se rebaixar” ao nosso nível, mas, teologicamente, nós também acreditamos que isso significa que Deus vê a nossa humanidade e o nosso mundo como fundamentalmente bons, como loci de graça e revelação. Deus vem ao nosso encontro não “de cima, mas de dentro”, escreve Francisco na Laudato si’ (n. 236), “para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo.”
Nada disso significa que fazer todas as suas reuniões de trabalho no Zoom ou passar um fim de semana no Xbox Live seja um pecado (nesse caso, meu amigo, faça-me o favor de tomar aquela vitamina D). Mas significa que, como católicos, a nossa disposição fundamental em relação ao mundo físico é que ele é precioso e significativo.
Enquanto isso, a relação de Zuckerberg com o mundo físico parece mais com os dualistas de antigamente. “O metaverso não é nada novo (veja-se o Second Life/Sims/VRChat etc.)”, escreveu o jornalista de tecnologia Hussein Kesvani, de Londres, na semana passada. “O que parece muito sinistro nisso é que ele segue a mesma lógica de outras empresas de tecnologia: que não vale a pena salvar e proteger o mundo material.” Os comentários de Zuckerberg estão “pondo em prática plenamente a ideia de que os corpos são, em geral, descartáveis”.
Todos os dias da semana, a equipe da America se reúne às 10h da manhã para debater vários aspectos do nosso trabalho. Dadas as realidades da pandemia e da vida justa no século XXI, não podemos fazer tudo isso pessoalmente. Algumas pessoas estão no escritório, enquanto outras participam a partir de suas casas.
O nosso editor de produção, Robert Collins, SJ, embora seja o mais antigo entre nós, sempre tem as melhores contribuições quando se conecta conosco. Ultimamente, ele tem usado como pano de fundo da tela uma sala de aula animada, em que várias frutas e objetos escolares estão sentados ao seu redor. É uma fonte frequente de conversa e deleite.
Mas, depois de semanas vendo isso, eu comecei inconscientemente a acreditar que o Pe. Collins vive em algum tipo de ambiente espaçoso (não, eu não acho que ele vive em uma sala de aula animada, povoada por frutas antropomorfizadas. Ou, se acreditasse, seria apenas levemente. Eu gosto da maçã animada). Então, algumas semanas atrás, ele e eu fizemos uma videochamada, e eu descobri que a sua sala física real é muito simples – você sabe, assim como a de todo mundo.
E aí está o busílis do que Mark Zuckerberg está vendendo. Um metaverso oferece uma chance de superar obstáculos e de interagir de uma forma interessante, talvez para tornar a vida cotidiana mais divertida e onírica e, supostamente, muito mais amigável ao clima também (de onde obteremos a energia para alimentar todos esses hologramas? Quem se importa! Vamos viver em um videogame!).
No entanto, no fim das contas, independentemente de quais “patches” ou complementos os gurus da tecnologia do Vale do Silício possam oferecer (pelo preço baixo, muito baixo, da nossa privacidade e saúde mental), continuamos sendo, agora e para sempre, criaturas encarnadas vivendo em um mundo físico. E, ao invés de isso ser um motivo para enviar um emoji tridimensional de rosto triste por meio de uma coruja holográfica, nós, católicos, acreditamos que se trata de uma bênção.