O amor não deve ser ofendido

01 Outubro 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 27º Domingo do Tempo Comum, 3 de outubro de 2021 (Mc 10,2-16). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

A parte mais longa do Evangelho deste domingo nos testemunha um debate entre Jesus e alguns fariseus, que o põem à prova, tentam-no, buscando surpreendê-lo no erro em relação à tradição dos pais, sobre o tema da possibilidade do divórcio.

Esse anúncio evangélico é exigente e claro: por um lado, nos escandaliza, sobretudo se conhecemos a fatigante realidade do evento nupcial; por outro, o mesmo trecho pode ser utilizado como um bastão, para julgar e condenar quem está em contradição com as palavras claras e plenas de parrhesía pronunciadas por Jesus.

Por isso, toda vez que tenho que pregar sobre esse texto, ponho-me de joelhos não só diante do Senhor, mas também diante dos cristãos e das cristãs que vivem o matrimônio, para lhes dizer que, certamente, releio as palavras de Jesus e as proclamo, mas sem julgar, sem ameaçar, sem a arrogância de quem se sente imune de culpas em relação a ele, lembrando aquilo que Jesus afirma em outro lugar: “Todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração” (Mt 5,28).

Quem lê essas palavras de Jesus não está do outro lado, em um espaço isento do pecado, mas, acima de tudo, deve se sentir solidário com aqueles que, na dura tarefa de viver e na ainda mais dura tarefa de viver em casal o evento matrimonial, caíram na contradição com a vontade do Senhor. Portanto, não posso deixar de oferecer aqui algumas simples intuições de meditação, eco da palavra de Deus contida nas Sagradas Escrituras.

No milênio do Antigo Testamento, a prática do divórcio era comum em todo o Oriente Médio e no mundo mediterrâneo. O divórcio era uma realidade normatizada pelo direito privado, que o previa apenas por iniciativa do marido. O casamento era um contrato, sequer escrito, e devemos reconhecer que, no Antigo Testamento, não há nenhuma lei sobre o matrimônio.

Na verdade, o trecho do Deuteronômio a que os fariseus certamente se referem (Dn 24,1-4) pertence à casuística e não à doutrina, porque focaliza um caso particular e, consequentemente, deve ser recebido com limites bem precisos. Naquele texto, afirma-se:

“Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente (‘erwat davar, literalmente: “nudeza de alguma coisa”), escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade (Dt 24,1; trad. Bíblia Pastoral).

Portanto, é contemplado o caso em que o homem encontra na esposa “algo de vergonhoso”, expressão bastante vaga que os rabinos interpretam de modos muito diversos; nesse caso, o marido tem a possibilidade de se divorciar.

Sob certas condições, portanto, o divórcio é permitido, e o seu procedimento está previsto, mas, a partir disso, não se pode concluir que, na Torá, na Lei de Moisés, haja uma doutrina sobre o casamento e uma disciplina precisa e concorde sobre ele.

Por outro lado, os profetas, os sábios e os próprio textos essênios não oferecem posições certas e claras que excluam o divórcio e proclamem que a Lei de Deus o veta. Apenas Malaquias testemunha uma palavra do Senhor, simples, mas radical: “Eu odeio o repúdio” (Ml 2,16).

Mas eis que Jesus é chamado pelos fariseus a se expressar precisamente sobre essa possibilidade: “É lícito que um marido repudie a sua esposa?”. Ele responde com uma pergunta: “O que Moisés vos ordenou?”. E eles lhe dizem: “Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedi-la [repudiá-la]”. É como se lhe dissessem: “Essa é a Torá!”.

Jesus, então, intervém de modo surpreendente: não entra na casuística religiosa a propósito da Lei; não se põe a especificar as condições necessárias para o repúdio, como faziam os dois grandes rabis do seu tempo, Hillel e Shammai; não fica do lado dos rigoristas nem na dos laxistas.

Nada disso: Jesus quer voltar à vontade do Legislador, de Deus. Desse modo, fornece-nos um princípio decisivo de discernimento ao ler e interpretar a Escritura: referir-se à intenção de Deus (e não a tradições humanas: cf. Mc 7,8.13!), que, através da sua palavra posta por escrito, quer nos revelar a sua vontade.

Esta, então, é a réplica de Jesus aos seus interlocutores: “Foi por causa da dureza do vosso coração (sklerokardía) que Moisés vos escreveu este mandamento. No entanto, desde o começo (be-reshit, en archê: Gn 1,1) da criação, Deus os fez homem e mulher (Gn 1,27). Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne (Gn 2,24). Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe!”.

Jesus volta ao desígnio do Criador, à criação do adam, o terrestre tirado da adamah, a terra (cf. Gn 2,7; 3,19), feito homem e mulher para que, juntos, os dois vivam na história, a história do amor, a história da vida, um diante do outro, rosto contra rosto, em uma responsabilidade recíproca, chamados no seu encontro a se tornarem uma só realidade, uma só carne.

Nesse encontro de amor, há o chamado a serem amantes como Deus ama, sendo ele amor (cf. 1Jo 4,8.16), de um amor duradouro, fiel, para sempre; nesse encontro, há a arte e a graça do dom gratuito um ao outro, começando pelo próprio corpo; há a aliança que faz com que o encontro seja história no tempo e, portanto, tenda ao “para sempre”, até à morte, para ir também além da morte.

Essa é a vontade de Deus ao criar o terrestre e ao colocá-lo no mundo como sua única imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27). É um mistério grande, mas tão grande que é difícil para os humanos frágeis, fracos e pecadores vivê-lo em plenitude.

Na verdade, sabemos quanta miséria se experimenta neste fatigante encontro, como é fácil a contradição, como essa obra-prima da arte do viver juntos no amor é factível, mas nunca plenamente e somente com a ajuda da graça, com a eficácia do Sopro santo do Senhor. No entanto, o anúncio de Jesus permanece, em toda a sua clareza: “O que Deus uniu, o homem não separe”.

Logo depois, essa palavra dura e exigente é explicada por Jesus aos seus discípulos, na casa em que a comunidade se encontrava. E é explicada com um acréscimo extraordinário para a cultura do tempo, visto que Jesus coloca no mesmo plano a responsabilidade do homem e a da mulher: “Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra, cometerá adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e casar com outro, cometerá adultério”.

Certamente, Moisés tentou humanizar a prática do divórcio, impondo que o marido seguisse uma via jurídica de respeito pela mulher. Mas Jesus, justamente olhando para a dureza de coração dos destinatários da Torá, ousa ir muito além, evidenciando a vontade, a intenção do Criador. Afinal, ele já havia feito isso várias vezes, revelando, por exemplo, a vontade de Deus sobre o sábado e sobre a sua observância (Mc 2,23-28): sempre Jesus se faz intérprete autêntico da Lei, não através de vias legalistas, não através de interpretações fundamentalistas, mas anunciando profeticamente a vontade de Deus a todos, em particular aos pecadores públicos e aos excluídos, sempre acolhidos por ele, perdoados, nunca condenados.

A partir do anúncio da indissolubilidade do matrimônio, Marcos, mudando de cena, passa depois para o tema da acolhida aos pequenos. “Crianças” (paidía) são levadas e apresentadas a Jesus para que ele as toque e, portanto, através do contato físico, comunique a elas forças benéficas de cura e de bênção.

Na cultura judaica da época, as crianças não tinham nenhuma importância, de fato, eram tratadas como excluídas, assim como as mulheres e os escravos. A relação com um rabi é uma relação importante que diz respeito aos adultos, aqueles que são capazes de conhecer e observar a Torá. Por isso, os discípulos intervêm repreendendo as crianças, mas Jesus se irrita, fica indignado e os repreende, porque as crianças, assim como os outros “excluídos” e “marginalizados”, têm o seu lugar no reino de Deus.

Precisamente as crianças e aqueles que são semelhantes a elas pela sua pequenez e por serem descartados e postos às margens são os primeiros beneficiários e destinatários do Reino. Não há aqui nenhuma referência hipotética a uma inocência das crianças, mas é evidenciada a sua condição de pobreza, de exclusão, de pequenez, que chama a atenção de Jesus. No máximo, ele sabe identificar nessas crianças uma exemplaridade na sua acolhida do dom do Reino: estupor, admiração, nenhum mérito enaltecido, mas a simplicidade de quem acolhe o dom dos dons.

E assim Jesus adverte quem, na sua comunidade, gostaria de impedir aos excluídos, aos pobres, aos últimos o acesso a ele. Ao invés disso, é precisamente a esses últimos que vai a sua ternura, a sua bênção, o seu abraço, para que não se sintam mais abandonados ou marginalizados.