10 Julho 2021
Assim como a maioria das pessoas normais, o Papa Francisco planejava se submeter secretamente a uma grande cirurgia intestinal em um domingo à noite de julho em um hospital de Roma. E, assim como a maioria das pessoas normais, ele não contou isso a ninguém, exceto ao seu médico privado e ao seu motorista.
O comentário é de Robert Mickens, publicado em La Croix International, 09-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Sala de Imprensa da Santa Sé insistiu que a cirurgia invasiva à qual o paciente de 84 anos foi submetido no dia 4 de julho no Hospital Gemelli foi previamente combinada.
Mas a notícia chegou como uma surpresa completa para quase todos, incluindo para as pessoas no Vaticano – da equipe de limpeza aos cardeais do mais alto escalão da Cúria Romana. Ninguém tinha ouvido falar nada sobre isso.
Os assessores do papa (mesmo aqueles que assim se autodenominam) disseram que Francisco decidiu manter isso em segredo porque não queria que ninguém fizesse barulho por causa dele e não queria criar um circo midiático. E porque ele queria proteger a sua privacidade.
Exatamente como a maioria das pessoas normais.
Mas aqui está o problema. O papa – o bispo de Roma, o Sumo Pontífice da Igreja universal – não é como a maioria das pessoas normais.
Não importa o quanto ele tente ser. E, certamente, nenhum papa se esforçou mais para parecer normal do que este.
Lembremos que este é o papa que voltou ao hotel para padres no centro de Roma, onde ele se hospedou nos dias que antecederam o conclave de março de 2013, a fim de pagar pessoalmente a sua conta.
E é o papa que fez o seu motorista levá-lo a uma ótica perto da Escadaria Espanhola em uma tarde de quinta-feira de setembro de 2015 para comprar um novo par de óculos.
É também o mesmo papa que fez visitas-surpresa a hospitais, prisões, cozinhas populares e outros lugares em todas as sextas-feiras durante o Ano da Misericórdia (de dezembro de 2015 a novembro de 2016).
E é o mesmo papa que, em uma tarde de sábado de fevereiro passado, foi levado de carro ao centro de Roma para visitar uma judia de 89 anos que sobreviveu ao campo de extermínio nazista de Auschwitz.
Francisco fez outras viagens “não anunciadas” a vários lugares ao longo do seu pontificado também, incluindo visitas pessoais a clérigos no mesmo Hospital Gemelli, onde ele está atualmente se recuperando.
E, em cada uma dessas saídas-surpresa, as pessoas faziam um estardalhaço por causa da presença dele, e a mídia divulgava a história.
Seja qual for o motivo de todo o sigilo no último fim de semana, isso não ajudou a minimizar a questão em nada. Pelo contrário, apenas levantou mais questões.
Quem marca uma cirurgia para um fim de tarde? E em um domingo à noite?
Certamente não uma pessoa normal. E nem mesmo VIPs. Ninguém faz isso, porque a maioria dos estudos indica que as operações cirúrgicas à noite – por vários motivos – são mais arriscadas do que as realizadas durante a primeira parte do dia.
As pessoas sempre tentam agendar uma operação bem antes da hora do almoço.
Parece crível que a cirurgia de Francisco foi, de fato, planejada. Mas talvez não para um domingo à noite.
E se a operação tivesse sido marcada para outro dia, mas talvez o papa estivesse sentindo mais dor e desconforto depois do almoço no domingo, de modo que seus médicos decidiram interná-lo imediatamente?
O Vaticano contaria isso?
Perdoem o ceticismo, mas a Santa Sé e seu departamento de comunicação não têm um histórico confiável no que diz respeito à questão da transparência, especialmente em torno da saúde do Romano Pontífice.
É compreensível que Francisco queira proteger seu direito à privacidade. Mas ele está bem ciente de que renunciou a grande parte desse direito no dia em que aceitou os resultados da votação na Capela Sistina.
Certos biógrafos do papa jesuíta e intérpretes do seu pensamento insistem que nenhum papa é mais aberto sobre os seus problemas de saúde do que Francisco. Outros afirmam que ele é extremamente reservado sobre esses assuntos.
Qual dessas versões é a verdadeira? O proverbial católico “e-e” não pode ser facilmente aplicado aqui.
É claro, existem algumas razões sérias e até bem fundamentadas para invocar a privacidade do papa para justificar até o mais leve sigilo sobre o seu estado de saúde.
Francisco tem inimigos entre os cardeais e outras lideranças influentes da Igreja, como todos sabemos. Eles se sentiriam encorajados em seus esforços para impedir o seu programa de reforma eclesial e de mudança radical se se divulgasse que a sua saúde está piorando.
O papa argentino, que antes evitava a imprensa como uma peste, conquistou amplamente a mídia internacional que é designada a noticiá-lo. Os repórteres se tornaram amigos dele e tendem a ficar do seu lado na luta atualmente em curso pela direção futura da Igreja.
Parece que a maior parte da imprensa vaticana detesta criticar Francisco por qualquer coisa, talvez por medo de que eles deem munição a seus inimigos – tanto aqueles que atacam o papa abertamente (como o arcebispo Carlo Maria Viganò) quanto aqueles que sorriem na frente do papa para depois apunhalá-lo pelas costas (o nome deles é Legião).
A Sala de Imprensa da Santa Sé disse que o papa foi submetido a um procedimento cirúrgico de três horas. Mas é difícil saber quanto tempo ele realmente ficou na sala de cirurgia e quanto tempo ele ficou sob anestesia geral.
Provavelmente foram quatro ou quatro horas e meia.
Na sua idade (ele completará 85 anos daqui a cinco meses) e com a sua saúde geral (ele está acima do peso e sofre de ciática), os detalhes específicos são importantes.
Eles podem indicar a rapidez ou a lentidão com que ele consegue se recuperar a ponto de retomar o ritmo e a agenda que ele estava seguindo antes da operação.
Também existe a possibilidade muito real de que ele não consiga retornar à sua forma anterior.
A cirurgia invasiva (ser aberto por um bisturi e ter a metade do cólon removido) não pode deixar de ter um grande impacto em um homem da idade e com a condição física de Francisco. Não era um mero passeio pelo parque.
No entanto, muitos jornalistas trataram isso como se o papa simplesmente fosse arrancar um dente! Alguns disseram que ele já está discutindo planos de viagem à Coreia do Norte!
Ninguém parou para pensar que Francisco poderia nem mesmo conseguir viajar para Budapeste no dia 12 de setembro (daqui a apenas dois meses) e depois continuar com a visita de três dias a quatro cidades na vizinha Eslováquia.
Muitos jornalistas já haviam decidido, poucas horas depois da cirurgia, que o papa provavelmente voltaria à sua residência no Vaticano em alguns dias. Do jeito que está, ele ficará no hospital pelo menos até segunda-feira – trata-se de oito dias.
João Paulo II, que tinha apenas 72 anos quando teve um tumor do tamanho de uma laranja removido do seu abdômen em julho de 1992, teve que ficar internado no Hospital Gemelli por duas semanas.
E depois ele continuou a convalescer nas montanhas dos Alpes italianos e na residência papal de verão em Castel Gandolfo.
No mês de outubro seguinte, pouco menos de três meses após a sua hospitalização, o papa polonês viajou a Santo Domingo para a sua 56ª viagem internacional.
Era um itinerário extremamente reduzido em comparação com a agenda exaustiva e turbulenta que ele mantinha em suas viagens anteriores ao exterior.
João Paulo II viveu mais 13 anos, mas a operação de 1992 no Hospital Gemelli marcou uma virada na sua saúde e no seu pontificado.
Os eventos destes dias no mesmo centro médico em Roma provavelmente farão o mesmo com o Papa Francisco.
Neste ponto, é difícil prever exatamente o que isso significará. Mas uma coisa é certa – o papa não é um super-homem.
Não, neste caso, ele é, de fato, muito parecido com a maioria das pessoas normais.
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Cirurgia papal em um domingo à noite: tentativa de minimizar a gravidade do estado de saúde de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU