"A centralidade de Deus e Jesus não remove as mediações humanas, nem a inteligência espiritual das devoções", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 20-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Ser pai significa introduzir o filho na experiência da vida, na realidade. Não segurá-lo, nem prendê-lo, nem subjugá-lo, mas torná-lo capaz de opções, de liberdade, de partir” (Francisco na Patris corde).
No ano dedicado a São José (8 de dezembro de 2020 - 8 de dezembro de 2021), reforça-se a atenção ao pai adotivo de Jesus em um contexto cultural em que a demanda sobre a paternidade se renova de maneira significativa.
O Papa escreve na carta apostólica Patris corde: “Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita a paternidade a seu respeito. Na sociedade atual, muitas vezes os filhos parecem ser órfãos de pai”.
A devoção a São José é bastante tardia tanto no Oriente como no Ocidente e a Igreja que "realocou" a figura de Maria em sentido dogmático e bíblico está ciente do que K. Barth escreveu em Esquisse d'une dogmatique (1947): “O homem Jesus não tem pai. Sua concepção não segue a lei comum. A sua existência começa com uma livre decisão de Deus. Ela decorre da liberdade que caracteriza a unidade entre Pai e Filhos pelo vínculo do Amor, isto é, com o Espírito Santo. É o lugar da liberdade de Deus, e é dessa liberdade de Deus que procede a existência do homem Jesus Cristo”.
Mas a centralidade de Deus e Jesus não remove as mediações humanas, nem a inteligência espiritual das devoções.
Reprodução da obra José e a Encarnação de Deus, de Beate Heinen (1991)
150 anos após a proclamação por Pio IX de São José como patrono da Igreja Católica (8 de dezembro de 1870), a decisão do Papa Francisco de celebrar o ano de São José é confiada à carta apostólica, mas também a outras decisões relativas às indulgências e à introdução em todos os cânones eucarísticos da citação do santo ao lado da Virgem.
Nas litanias de São José são introduzidas novas invocações: Guardião do Redentor, Servo de Cristo, Ministro da Salvação, Amparo nas dificuldades, Patrono dos exilados, dos aflitos e dos pobres. Não são numerosas, mas mesmo assim significativas, as iniciativas comuns de 16 famílias religiosas inspiradas por São José a respeito da celebração do ano e das atividades pastorais dos bispos italianos, franceses e poloneses.
No Diretório sobre Piedade e Liturgia Popular (2002) está escrito: “Ao longo dos séculos, especialmente os recentes, a reflexão eclesial evidenciou as virtudes de São José, entre as quais se destacam: a fé, que nele se traduziu em adesão plena e corajosa, para o desígnio salvífico de Deus; a obediência diligente e silenciosa às manifestações da sua vontade; o amor e a fiel observância da lei, a piedade sincera, a fortaleza nas provações; o amor virginal a Maria, o exercício zeloso da paternidade, a ocultação cuidadosa e ativa” (n. 219).
Nesse contexto, pode-se citar um livro publicado como caderno da Nouvelle revue théologique que reúne cinco ensaios publicados na revista de 1953 a 2013, com o título de Saint Joseph. Théologie de la paternité (Paris, 2021). Os autores são: H. Rondet, X. Léon-Dufour, A. de Lamarzelle, P. Grelot, P. Piret. Retomo algumas considerações sobre a história da devoção e suas referências bíblicas.
A Escritura traça com absoluta sobriedade a figura de José, mas o personagem é absolutamente real, de forma alguma fictício ou imaginário. Ele é um artesão conhecido, apontado por todos como o pai de Jesus. Os evangelhos apócrifos se aplicaram para enriquecer as escassas notas da Escritura.
Em particular, o Protoevangélio de Tiago que relata amplamente o casamento com Maria e que impõe aos séculos sucessivos a imagem de José como um homem idoso, viúvo e com outros filhos. Na tradição patrística, seu papel é secundário, mas sua virgindade é afirmada e, por sua função de provedor e educador, ele é candidato a protetor de toda a Igreja. Novos apócrifos aparecem (Evangelho da infância, História de José o carpinteiro, Evangelho da natividade) que enriquecem as lendas como o casamento que aconteceu aos 89 (faleceu depois aos 110), a presença dos filhos do primeiro casamento, o acompanhamento de anjos da alma de José em direção ao céu.
A devoção popular começa a se desenvolver no Oriente não antes do século IX e no Ocidente depois do décimo. Mesmo que mencionado por Hilário de Poitier, Ambrósio, Crisóstomo e Agostinho (de 300 a 500 d.C.), uma atenção específica se nota apenas a partir de São Bernardo e de pseudo Boaventura. Para Santo Tomás, a santidade de José está ligada ao seu papel no desígnio de Deus e na economia da salvação. Mais eficaz para a difusão da devoção, foi a arte, que, a partir do século XV, traduz em imagens os autores espirituais como Ludolfo (o cartuxo).
A piedade popular começou a vigorar a partir do século XV. Seus promotores São Bernardino de Siena, Vicente Ferrier, Pierre d'Ailly, Gerson (chanceler). Este último profere um famoso sermão no Concílio de Constança (1412).
Mas é a polêmica antirreforma que desenvolve os primeiros tratados, entre os quais Isidoro Isolani (Suma dos dons de São José). Entre os jesuítas pode-se lembrar os padres Coton, Binet, Barry e, principalmente, Moralés que discute as opiniões teológicas sobre vários temas relativos a José. De Santa Teresa a Pedro d'Alcantara, de Francisco de Sales a Olier e a Vicente de Paoli, o culto a São José entra com força nos livros espirituais. Os famosos panegíricos de Bossuet também devem ser mencionados.
Uma mudança não menos importante é introduzida pelo Renascimento que, com seu espírito crítico, aborda a questão da idade de José no momento do casamento e as representações consolidadas, como o burro que acompanha a fuga para o Egito. O sucesso artístico mais eficaz da renovação pode ser constatado nas pinturas de La Tour:
Gerson havia pedido a instituição de uma festa litúrgica para São José, e isso acontece com Sisto IV em 1481, fixando-a no dia 19 de março. Inocêncio VIII a eleva de papel e com Gregório XV torna-se uma festa de preceito. Em 1714, Clemente XI compõe um novo ofício. Há muito esquecido, São José é desde então celebrado na Igreja universal. Mas a introdução tardia na liturgia levantou muitas perguntas quanto à sua presença no cânone eucarístico, nas litanias e no lugar a ser colocado (antes ou depois dos mártires, antes ou depois do Batista).
Prospero Lambertini (Bento XIV) é quem coloca teologicamente José. Exclui que nele haja santificação in utero matris, mas reconhece o seu papel no desígnio de Deus e mostra a sua dignidade que o coloca antes dos confessores, dos mártires e dos apóstolos. Em 8 de dezembro de 1870, a sagrada Congregação para os Ritos proclama solenemente São José, padroeiro da Igreja universal.
Comentando Mt 1,18-25 (José assume a paternidade legal de Jesus) Xavier Leon-Dufour escreve:
“José se mostra justo não porque observa a lei que autoriza o divórcio em caso de adultério, nem porque se mostra benevolente, nem por causa da justiça devida a uma inocente, mas (sua resistência) é motivada por não querer se passar pelo pai do infante divino.
Se ele teme tomar Maria como esposa, não é por um motivo profano; é porque ele, como diz expressamente Eusébio, reconhece uma economia superior àquela do casamento que ele perseguia. O Senhor modificou o seu desígnio sobre ele: torna-o digno de garantir o futuro do seu eleito. José se retira, cuidando, na delicadeza de sua justiça para com Deus, de não 'divulgar' o mistério divino de Maria. É inútil procurar como cumprir seu propósito; são detalhes supérfluos para o evangelista.
Este justo é colocado pelos eventos acima do plano legal ... (o texto) mostra que José não é apenas um modelo de virtude, mas é o homem que desempenha um papel indispensável na economia da salvação”.
Pierre Grelot, comentando Jo 6,42-43 ("Não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos? Como, pois, diz ele: Desci do céu?” João 6,42) Escreve:
“Para Jesus a relação com José e Maria foi essencial para ele se tornar um homem adulto. Quando se reflete teologicamente sobre a encarnação do filho de Deus, frequentemente se esquece que ele não foi, humanamente falando, um adulto desde o início: cresceu em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e diante dos homens.
Crescimento moral, crescimento físico, crescimento espiritual: as três coisas juntas, observa Lucas. Não é necessário reconhecer um argumento contrário na comunicação das perfeições divinas a Jesus - na linguagem teológica é chamada de "comunicação dos idiomas" - para imaginar Jesus como um adulto que, desde o nascimento, teria desfrutado da perfeição universal em todas os âmbitos da vida psicológica. Não teria sido homem senão na aparência, como já afirmavam os docetas”.
Agnés de Lamarzelle lê em paralelo Gênesis 1 e 2 com Mt 1,18-25. Assim como a história da criação experimenta uma interrupção no momento do aparecimento do homem, a genealogia de Jesus enfrenta um deslocamento no momento em que garante a descendência davídica de Cristo, passando do gênero da genealogia àquele do anúncio.
Como garantir a linhagem davídica de Jesus, visto que a concepção diz respeito apenas a Maria? Como conciliar a falta de intervenção masculina com o pertencimento legal à linhagem davídica? José sabe que não é o pai biológico. Sua justiça consiste em ficar no seu lugar.
“Todo orientado para o cumprimento da vontade de Deus, aceita não compreender o mistério que o toca de perto. Ele age de acordo com o que sabe, decidindo repudiá-la em segredo. Ele não é o pai e não pode desempenhar esse papel para o menino. Separa-se da promessa, sem atrair o opróbrio sobre Maria, de quem sabe que jamais desagradaria a Deus”.
O seu ser justo ameaça impedir o desígnio de Deus. Diante de uma situação humanamente insolúvel, o Anjo intervém para chamar José ao duplo papel: levar Maria para casa e dar o nome ao menino, enraizando Jesus na linhagem davídica. Ele renuncia à paternidade física para participar do mistério da encarnação redentora, deixando todo o espaço para Deus. Só Maria será a mãe segundo a carne, mas cabe a José lançar uma ponte entre os dois testamentos, ancorando o Salvador na linhagem davídica.
O torpor místico do qual José acorda lembra o torpor de Adão no momento do nascimento de Eva. José “chamado à extraordinária missão de ser pai do Filho do Pai, permite a Emanuel (se inserir na linhagem de David e) e estar conosco: com a sua noiva, com o povo que o aguardava, com todos os homens que o aceitam. estar com Ele. A começar pelo leitor que entra nesse ‘nós’ que o chama a viver a aliança”.