São José: justo e pai

Reprodução da obra Sonho de São José, de autor desconhecido. O mosaico do século XIII está no Batistério de São João, em Florença. | Fonte: Wikimedia Commons

22 Junho 2021

 

"A centralidade de Deus e Jesus não remove as mediações humanas, nem a inteligência espiritual das devoções", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 20-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Ser pai significa introduzir o filho na experiência da vida, na realidade. Não segurá-lo, nem prendê-lo, nem subjugá-lo, mas torná-lo capaz de opções, de liberdade, de partir” (Francisco na Patris corde).

No ano dedicado a São José (8 de dezembro de 2020 - 8 de dezembro de 2021), reforça-se a atenção ao pai adotivo de Jesus em um contexto cultural em que a demanda sobre a paternidade se renova de maneira significativa.

O Papa escreve na carta apostólica Patris corde: “Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita a paternidade a seu respeito. Na sociedade atual, muitas vezes os filhos parecem ser órfãos de pai”.

A devoção a São José é bastante tardia tanto no Oriente como no Ocidente e a Igreja que "realocou" a figura de Maria em sentido dogmático e bíblico está ciente do que K. Barth escreveu em Esquisse d'une dogmatique (1947): “O homem Jesus não tem pai. Sua concepção não segue a lei comum. A sua existência começa com uma livre decisão de Deus. Ela decorre da liberdade que caracteriza a unidade entre Pai e Filhos pelo vínculo do Amor, isto é, com o Espírito Santo. É o lugar da liberdade de Deus, e é dessa liberdade de Deus que procede a existência do homem Jesus Cristo”.

Mas a centralidade de Deus e Jesus não remove as mediações humanas, nem a inteligência espiritual das devoções.

 

Reprodução da obra José e a Encarnação de Deus, de Beate Heinen (1991)

 

Pai, em que sentido?

150 anos após a proclamação por Pio IX de São José como patrono da Igreja Católica (8 de dezembro de 1870), a decisão do Papa Francisco de celebrar o ano de São José é confiada à carta apostólica, mas também a outras decisões relativas às indulgências e à introdução em todos os cânones eucarísticos da citação do santo ao lado da Virgem.

Nas litanias de São José são introduzidas novas invocações: Guardião do Redentor, Servo de Cristo, Ministro da Salvação, Amparo nas dificuldades, Patrono dos exilados, dos aflitos e dos pobres. Não são numerosas, mas mesmo assim significativas, as iniciativas comuns de 16 famílias religiosas inspiradas por São José a respeito da celebração do ano e das atividades pastorais dos bispos italianos, franceses e poloneses.

No Diretório sobre Piedade e Liturgia Popular (2002) está escrito: “Ao longo dos séculos, especialmente os recentes, a reflexão eclesial evidenciou as virtudes de São José, entre as quais se destacam: a fé, que nele se traduziu em adesão plena e corajosa, para o desígnio salvífico de Deus; a obediência diligente e silenciosa às manifestações da sua vontade; o amor e a fiel observância da lei, a piedade sincera, a fortaleza nas provações; o amor virginal a Maria, o exercício zeloso da paternidade, a ocultação cuidadosa e ativa” (n. 219).

Nesse contexto, pode-se citar um livro publicado como caderno da Nouvelle revue théologique que reúne cinco ensaios publicados na revista de 1953 a 2013, com o título de Saint Joseph. Théologie de la paternité (Paris, 2021). Os autores são: H. Rondet, X. Léon-Dufour, A. de Lamarzelle, P. Grelot, P. Piret. Retomo algumas considerações sobre a história da devoção e suas referências bíblicas.

 

A Escritura e os apócrifos

A Escritura traça com absoluta sobriedade a figura de José, mas o personagem é absolutamente real, de forma alguma fictício ou imaginário. Ele é um artesão conhecido, apontado por todos como o pai de Jesus. Os evangelhos apócrifos se aplicaram para enriquecer as escassas notas da Escritura.

Em particular, o Protoevangélio de Tiago que relata amplamente o casamento com Maria e que impõe aos séculos sucessivos a imagem de José como um homem idoso, viúvo e com outros filhos. Na tradição patrística, seu papel é secundário, mas sua virgindade é afirmada e, por sua função de provedor e educador, ele é candidato a protetor de toda a Igreja. Novos apócrifos aparecem (Evangelho da infância, História de José o carpinteiro, Evangelho da natividade) que enriquecem as lendas como o casamento que aconteceu aos 89 (faleceu depois aos 110), a presença dos filhos do primeiro casamento, o acompanhamento de anjos da alma de José em direção ao céu.

A devoção popular começa a se desenvolver no Oriente não antes do século IX e no Ocidente depois do décimo. Mesmo que mencionado por Hilário de Poitier, Ambrósio, Crisóstomo e Agostinho (de 300 a 500 d.C.), uma atenção específica se nota apenas a partir de São Bernardo e de pseudo Boaventura. Para Santo Tomás, a santidade de José está ligada ao seu papel no desígnio de Deus e na economia da salvação. Mais eficaz para a difusão da devoção, foi a arte, que, a partir do século XV, traduz em imagens os autores espirituais como Ludolfo (o cartuxo).

 

Devoção tardia

A piedade popular começou a vigorar a partir do século XV. Seus promotores São Bernardino de Siena, Vicente Ferrier, Pierre d'Ailly, Gerson (chanceler). Este último profere um famoso sermão no Concílio de Constança (1412).

Mas é a polêmica antirreforma que desenvolve os primeiros tratados, entre os quais Isidoro Isolani (Suma dos dons de São José). Entre os jesuítas pode-se lembrar os padres Coton, Binet, Barry e, principalmente, Moralés que discute as opiniões teológicas sobre vários temas relativos a José. De Santa Teresa a Pedro d'Alcantara, de Francisco de Sales a Olier e a Vicente de Paoli, o culto a São José entra com força nos livros espirituais. Os famosos panegíricos de Bossuet também devem ser mencionados.

Uma mudança não menos importante é introduzida pelo Renascimento que, com seu espírito crítico, aborda a questão da idade de José no momento do casamento e as representações consolidadas, como o burro que acompanha a fuga para o Egito. O sucesso artístico mais eficaz da renovação pode ser constatado nas pinturas de La Tour:

Gerson havia pedido a instituição de uma festa litúrgica para São José, e isso acontece com Sisto IV em 1481, fixando-a no dia 19 de março. Inocêncio VIII a eleva de papel e com Gregório XV torna-se uma festa de preceito. Em 1714, Clemente XI compõe um novo ofício. Há muito esquecido, São José é desde então celebrado na Igreja universal. Mas a introdução tardia na liturgia levantou muitas perguntas quanto à sua presença no cânone eucarístico, nas litanias e no lugar a ser colocado (antes ou depois dos mártires, antes ou depois do Batista).

Prospero Lambertini (Bento XIV) é quem coloca teologicamente José. Exclui que nele haja santificação in utero matris, mas reconhece o seu papel no desígnio de Deus e mostra a sua dignidade que o coloca antes dos confessores, dos mártires e dos apóstolos. Em 8 de dezembro de 1870, a sagrada Congregação para os Ritos proclama solenemente São José, padroeiro da Igreja universal.

 

Economia de Deus

Comentando Mt 1,18-25 (José assume a paternidade legal de Jesus) Xavier Leon-Dufour escreve:

José se mostra justo não porque observa a lei que autoriza o divórcio em caso de adultério, nem porque se mostra benevolente, nem por causa da justiça devida a uma inocente, mas (sua resistência) é motivada por não querer se passar pelo pai do infante divino.

Se ele teme tomar Maria como esposa, não é por um motivo profano; é porque ele, como diz expressamente Eusébio, reconhece uma economia superior àquela do casamento que ele perseguia. O Senhor modificou o seu desígnio sobre ele: torna-o digno de garantir o futuro do seu eleito. José se retira, cuidando, na delicadeza de sua justiça para com Deus, de não 'divulgar' o mistério divino de Maria. É inútil procurar como cumprir seu propósito; são detalhes supérfluos para o evangelista.

Este justo é colocado pelos eventos acima do plano legal ... (o texto) mostra que José não é apenas um modelo de virtude, mas é o homem que desempenha um papel indispensável na economia da salvação”.

 

Pierre Grelot, comentando Jo 6,42-43 ("Não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos? Como, pois, diz ele: Desci do céu?” João 6,42) Escreve:

Para Jesus a relação com José e Maria foi essencial para ele se tornar um homem adulto. Quando se reflete teologicamente sobre a encarnação do filho de Deus, frequentemente se esquece que ele não foi, humanamente falando, um adulto desde o início: cresceu em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e diante dos homens.

Crescimento moral, crescimento físico, crescimento espiritual: as três coisas juntas, observa Lucas. Não é necessário reconhecer um argumento contrário na comunicação das perfeições divinas a Jesus - na linguagem teológica é chamada de "comunicação dos idiomas" - para imaginar Jesus como um adulto que, desde o nascimento, teria desfrutado da perfeição universal em todas os âmbitos da vida psicológica. Não teria sido homem senão na aparência, como já afirmavam os docetas”.

 

O deslocamento

Agnés de Lamarzelle lê em paralelo Gênesis 1 e 2 com Mt 1,18-25. Assim como a história da criação experimenta uma interrupção no momento do aparecimento do homem, a genealogia de Jesus enfrenta um deslocamento no momento em que garante a descendência davídica de Cristo, passando do gênero da genealogia àquele do anúncio.

Como garantir a linhagem davídica de Jesus, visto que a concepção diz respeito apenas a Maria? Como conciliar a falta de intervenção masculina com o pertencimento legal à linhagem davídica? José sabe que não é o pai biológico. Sua justiça consiste em ficar no seu lugar.

“Todo orientado para o cumprimento da vontade de Deus, aceita não compreender o mistério que o toca de perto. Ele age de acordo com o que sabe, decidindo repudiá-la em segredo. Ele não é o pai e não pode desempenhar esse papel para o menino. Separa-se da promessa, sem atrair o opróbrio sobre Maria, de quem sabe que jamais desagradaria a Deus”.

O seu ser justo ameaça impedir o desígnio de Deus. Diante de uma situação humanamente insolúvel, o Anjo intervém para chamar José ao duplo papel: levar Maria para casa e dar o nome ao menino, enraizando Jesus na linhagem davídica. Ele renuncia à paternidade física para participar do mistério da encarnação redentora, deixando todo o espaço para Deus. Só Maria será a mãe segundo a carne, mas cabe a José lançar uma ponte entre os dois testamentos, ancorando o Salvador na linhagem davídica.

O torpor místico do qual José acorda lembra o torpor de Adão no momento do nascimento de Eva. José “chamado à extraordinária missão de ser pai do Filho do Pai, permite a Emanuel (se inserir na linhagem de David e) e estar conosco: com a sua noiva, com o povo que o aguardava, com todos os homens que o aceitam. estar com Ele. A começar pelo leitor que entra nesse ‘nós’ que o chama a viver a aliança”.

 

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