12 Mai 2021
Uma Igreja sinodal significa processos eclesiais menos centrados no clero e mais abertos ao papel de liderança dos leigos, especialmente das mulheres. Mas a grande questão é quem e quais são as forças motrizes da sinodalidade. E a resposta é complexa.
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em La Croix International, 11-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A sinodalidade eclesial é algo muito antigo e, ao mesmo tempo, muito recente. Ela faz parte da tradição da Igreja.
Como diz o relatório da Comissão Teológica Internacional, intitulado “Sinodalidade na vida e missão da Igreja” (2018), na seção inicial, “‘Sínodo’ é palavra antiga e veneranda na Tradição da Igreja, cujo significado recorda os conteúdos mais profundos da Revelação”.
Mas a teologia da sinodalidade, que agora está na base do impulso do Papa Francisco por uma reforma sinodal da Igreja, é algo que se desenvolveu após o Concílio Vaticano II (1962-1965).
Os documentos finais do Vaticano II nunca usaram o termo “sinodalidade”, embora a eclesiologia do Concílio esteja aberta a essa perspectiva.
A moderna teologia da sinodalidade tem origem cronologicamente na teologia contemporânea da Igreja Católica e geograficamente nas sociedades da ordem liberal-democrática no hemisfério ocidental. Isso não é apenas uma coincidência.
Um fator-chave para o futuro da sinodalidade é a relação entre o cristianismo e as diferentes tradições sociais e políticas – e não apenas eclesiais ou teológicas – em todo o mundo, em uma comunidade tão global quanto a Igreja Católica hoje.
Em lugares como Alemanha, Austrália e Irlanda, é difícil de ignorar a conexão entre o surgimento da sinodalidade e os esforços da Igreja para reconstruir a sua credibilidade após a crise dos abusos sexuais.
Em segundo plano, existem diferentes modelos de sinodalidade em ação. Trata-se de modelos eclesiais, todos eles em profunda relação com tipos particulares de arranjo entre Igreja, Estado e sociedade.
O “Caminho Sinodal” na Alemanha reflete o papel particular do catolicismo como uma Igreja estabelecida que goza de disposições constitucionais particulares, mas também tem um precedente em uma experiência pós-conciliar muito importante na então República Federal da Alemanha (Ocidental): o Sínodo Nacional, o chamado “Sínodo de Wurzburg”, de 1971 a 1975.
Não há tanta memória eclesial institucional de um evento sinodal recente, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a assembleia eclesial nacional definidora é muito mais o Terceiro Concílio Plenário de Baltimore em 1884 do que as tentativas pós-Vaticano II.
A experiência da Igreja dos Estados Unidos dos anos 1970 desapareceu no ar, e o respeito pelos sínodos diminuiu.
Outra diferença em relação à Alemanha é a dificuldade que o catolicismo estadunidense está tendo em deixar para trás uma espécie de clericalismo ligado ao racismo e ao patriarcalismo, assim como o seu desafio em responder ao hiperindividualismo da vida estadunidense
“Muitos estadunidenses se separaram das instituições culturais, políticas e sociais da vida nacional”, disse o colunista David Brooks, do New York Times, em um artigo recente sobre a pandemia.
E é preciso notar que a Igreja Católica dos Estados Unidos não está isenta desse mesmo fenômeno de desconfiança.
As perspectivas de um sínodo na Itália encontram seu precedente histórico também na década de 1970. Elas podem ser datadas a partir da “conferência eclesial” sobre evangelização e promoção humana que a Conferência Episcopal Italiana (CEI) convocou em 1976 – dois anos antes de João Paulo II ser eleito papa.
O salto cronológico para trás até Paulo VI fica evidente até mesmo no argumento levantado pelos jesuítas italianos, que desempenharam um papel importante para ajudar os atuais membros da CEI a acolherem o convite do Papa Francisco feito ainda em 2015 para dar início a um processo sinodal nacional.
A América Latina oferece um exemplo diferente, especialmente por meio das assembleias continentais do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano) e, em particular, da assembleia realizada em 1968 em Medellín.
A Igreja Católica na Austrália atualmente está preparando o seu primeiro Concílio Plenário desde 1937. Ele deve ser visto no contexto do estilo de escuta eclesial do “Conselho de Verdade, Justiça e Cura”, dirigido por leigos, que os bispos australianos criaram para responder à “Comissão Real para a Resposta Institucional ao Abuso Sexual infantil” (2013-2017).
Mas esse Concílio Plenário também pode contar com uma cultura eclesial que fez um balanço da descolonização e da inculturação de forma mais profunda do que outras Igrejas do hemisfério anglo-ocidental.
Em termos cronológicos, na verdade, ele precedeu a “Comissão Real” e até mesmo a eleição do Papa Francisco. Ele não depende de um modelo legislativo/parlamentar. E é por isso que o arcebispo Mark Coleridge, presidente da Conferência Episcopal nacional e líder do Concílio Plenário, não está apoplético em relação às perspectivas do “Caminho Sinodal” da Alemanha.
O quadro é diferente quando tentamos entender os modelos eclesiais de fundo da Igreja Católica na Ásia, na África e no Oriente Médio.
É uma Igreja emergente. Mas, muitas vezes, é também uma Igreja que está sendo perseguida ou pressionada por causa da sua condição de minoria.
Às vezes, isso ocorre dentro de um sistema de secularidade autoritária. Outras vezes, está situado em uma convivência frágil com o surgimento de ideologias sectárias e nacionalistas baseadas na religião, como a versão ideológica particular do hinduísmo que está sendo empurrada sobre a Índia de Modi.
Como será a sinodalidade em um contexto em que o catolicismo desempenha um papel particular na questão do sistema de castas como a Índia, por exemplo?
Como ele será na China continental e em Hong Kong, onde o engajamento social e político torna os grupos religiosos, incluindo os católicos, um alvo da repressão governamental?
Ou na Indonésia, onde as relações entre a lei secular e o Islã são significativamente diversas em diferentes áreas desse país, a nação muçulmana mais populosa do mundo?
O que significa cruzar um modelo sinodal com as relações pós-coloniais entre Igreja e Estado em um continente como a África?
Ou no Oriente Médio, onde a Igreja se encontra em uma situação de fragmentação e fragilidade agravada pelas consequências de 30 anos de intervenções militares ocidentais?
Isso é importante para o futuro da sinodalidade.
A severa advertência do papa para evitar transformar os sínodos em parlamentos não deve ser interpretada como uma atitude defensiva por parte da instituição eclesiástica. Ao invés disso, deve ser vista como uma resposta realista à situação atual da Igreja global, onde o paralelo sinodalidade-parlamentarismo está repleto de problemas.
E não é um problema apenas das Igrejas do Sul global, se considerarmos a crise da democracia e da cultura democrática também entre os católicos nos Estados Unidos.
Uma Igreja sinodal significa processos eclesiais menos centrados no clero e mais abertos ao papel de liderança dos leigos, especialmente das mulheres. Mas a grande questão é quem e quais são as forças motrizes da sinodalidade. E a resposta é complexa.
Quais são as alianças sociais no centro da sinodalidade eclesial no século XXI? Que classes ou fragmentos de classe são aliados da Igreja ao se voltar para a sinodalidade?
Quais setores da Igreja ou atores específicos estão no centro do movimento sinodal? Quais organizações e redes?
Algo como o Comitê Central dos Católicos Alemães, que – junto com a Conferência Episcopal – está no centro do “Caminho Sinodal”, existe apenas na Alemanha.
Quais são os modelos dominantes nas cabeças das pessoas e de onde eles vêm? Como eles são moldados pelas alianças de classe? A classe proprietária, a classe gerencial profissional, a classe técnico-burocrática, a classe trabalhadora, os pobres?
Por exemplo, Francisco é um jesuíta, e a sua ideia de sinodalidade, com o discernimento no centro, reflete a sua formação e identidade jesuíta.
Ao mesmo tempo, se olharmos para a história da ordem religiosa do papa no século XVI, é evidente que as suas alianças de classe evoluíram das elites europeias no início do período moderno para a virada à mudança social no período pós-Vaticano II.
Não é um problema apenas para a Igreja global longe da Europa. No Velho Continente, as experiências sinodais na Alemanha, Itália e Irlanda estão no contexto de uma Igreja estabelecida. A Igreja ainda é um pilar desses países, mesmo no contexto da secularização.
Mas a sinodalidade é o início de uma transformação desse pilar para uma forma diferente de presença?
(Essa é uma das razões pelas quais as medidas puramente sociológicas usadas para entender a Igreja continuam sendo fundamentalmente protestantes e anglo-americanas e inadequadas para compreender o catolicismo global.)
A sinodalidade é uma forma de estabelecer conexões institucionais e eclesiais por outros meios. E isso é crucialmente importante em um momento de raiva e de distanciamento em relação às instituições, em uma época em que as instituições são automaticamente consideradas más.
Mas o futuro da sinodalidade depende também da capacidade de entender que a preparação, a celebração e a recepção de um sínodo para a Igreja Católica assume contornos diferentes.
Era diferente em uma Igreja imperial (como nos primeiros séculos até a Idade Média) do que em uma Igreja europeia ou colonial (como no início do período moderno e ao longo do período moderno).
E será diferente na Igreja global de hoje, em que a relação entre a ordem eclesial e as ordens social, política e econômica é feita de muitos modelos diferentes.
Francisco tem alertado repetidamente desde outubro de 2015 contra a tentação de ver os sínodos como parlamentos da Igreja.
No entanto, a Igreja atualmente parece um parlamento com muitas vozes. Não é simplesmente a projeção de ideias políticas sobre a Igreja.
Os homens e as mulheres contemporâneos são eles próprios, cada um deles, um parlamento com muitas vozes, como disse recentemente o teólogo beneditino alemão Elmar Salmann em um importante congresso sobre o futuro da teologia, organizado pelo Pontifício Instituto Teológico João Paulo II, em Roma.
Seria ingênuo separar o atual debate católica sobre a sinodalidade eclesial da sensibilidade do homo democraticus – homens e mulheres imersos na cultura dos direitos humanos, da dissidência comunicativa e, acima de tudo, do igualitarismo.
Mas isso está acontecendo em um contexto global em que a conexão entre a Igreja e a cultura da participação e da inclusão assume formas significativamente diferentes.
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Sinodalidade para quem? Alianças sociais e modelos institucionais no catolicismo global. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU