02 Abril 2021
A recuperação da centralidade do único tríduo pascal, unidade de morte e de ressurreição, da vida de Cristo e da vida da Igreja, é o verdadeiro remédio para a tentação de “celebrar sozinho”: tríduo pascal e eucaristia, de fato, estão intimamente ligados e se alimentam mutuamente.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 01-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As resistências à reforma litúrgica, que nos últimos dias assumiram forma pública nos protestos de alguns cardeais nostálgicos contra as medidas da Secretaria de Estado sobre as “missas individuais”, são muito mais profundas e perigosas quando são consideradas em relação aos desenvolvimentos do Tríduo Pascal.
Uma breve consideração sobre as novidades que a Igreja Católica amadureceu nesse âmbito desde 1950 – portanto, bem antes do Concílio Vaticano II – deve nos guiar nestes dias de festa e orientar melhor o caminho eclesial. Tentemos recapitular em pontos o que aconteceu nesses 70 anos.
Na sequência histórica recente do Rito Romano, algumas verdades parecem ser evidentes, que muitas vezes esquecemos:
a) O rito romano na forma de 1962 (hoje chamado de “extraordinário”) e o da forma de 1969 (chamado de “ordinário”) têm todos, na sua raiz, uma reforma litúrgica anterior: quando consideramos este “tempo” da Semana Santa, descobrimos imediatamente que não se trata da contraposição entre uma suposta “liturgia de sempre” e uma “liturgia reformada”, mas de dois estágios progressivos de um complexo percurso de reforma. Afinal, todo esse âmbito, que vai do Domingo de Ramos ao Domingo de Páscoa, foi objeto de uma profunda revisão durante o papado de Pio XII e depois foi reexaminado e ulteriormente modificado após o Concílio Vaticano II. De certa forma, devemos admitir que ambas as formas – tanto a ordinária quanto a extraordinária – se situam decisiva e inequivocamente “além de Pio V”.
b) É evidente que a lógica da revisão da Semana Santa, em 1955, ainda não adquiriu – nem ritualmente, nem teologicamente – a consciência da centralidade do Tríduo: que é Tríduo sacro, não Tríduo Pascal. Permanece como pano de fundo a definição da encíclica Mediator Dei (1947), na qual se diz, no número 158: “Na Semana Santa, quando o mais amargo sofrimento de Cristo é posto diante de nós pela liturgia, a Igreja nos convida a subir o Calvário e a seguir a via crucis do Divino Redentor para carregar a cruz com ele, para reproduzir nos nossos corações o seu espírito de expiação e para morrer com ele”. Nesse texto, não há referência ao Tríduo, e a leitura da participação no rito é toda feita sobre o registro do actus animae.
c) Mesmo quando a referência ao Sacro Tríduo é explicitada, como na instituição do novo Ordo de 1955, ele parece simplesmente equiparado aos “últimos três dias da Quaresma” – ou seja, não constitui uma entidade diferente e autônoma em relação ao tempo quaresmal – e é composto pela Quinta-Feira Santa, pela Sexta-Feira Santa e pelo Sábado Santo. Começa na manhã da quinta-feira e termina com as vésperas do sábado, deixando de fora o domingo da Ressurreição.
d) No rito de 1969, enfim, chegamos a um aprofundamento ulterior, totalmente decisivo para nós, deste interessante e surpreendente percurso: o Tríduo muda de nome (não é mais definido como Sacro Tríduo, mas como Tríduo Pascal); a mudança de nome corresponde a uma mudança de “lógica ritual” e de “hermenêutica teológica”. A lógica ritual identifica o Tríduo como “entidade autônoma”, como “tempo em si mesmo” e faz com que ele comece na “Missa in cena domini” da noite de quinta-feira, para chegar às “Vésperas do Domingo de Páscoa”; isso envolve, no plano teológico, uma verdadeira “revolução”: o tríduo não diz mais respeito simplesmente à paixão ou ao sepultamento do Senhor, mas abrange também a paixão, a morte e a ressurreição. A continuidade da tradição passa aqui por uma forte descontinuidade. Ela é necessária para não perder o significado unitário da Páscoa, que é “passio” e “transitus”.
e) Mas há mais. Essa unidade de estrutura ritual e de hermenêutica teológica renovada relê o mistério pascal integrando a celebração eclesial ao próprio mistério. Cada dia do Tríduo é Páscoa. E a páscoa ritual e a páscoa histórica, o rito da ceia e a morte na cruz se cumprem na Páscoa eclesial: como dizia Agostinho, o transitus Christi se cumpre e se renova no transitus Christianorum. A comunidade celebrante, a partir desse ponto de vista, faz parte do mistério celebrado: o tríduo celebra a Páscoa de Cristo atualizada eclesialmente como perfeição da salvação e fim da criação.
Disso decorre que:
- o Ordo Missae de 1969 é uma obra-prima da reforma litúrgica, tanto como Missal quanto como Lecionário. A riqueza dos textos (bíblicos e eucológicos) e a teologia por eles mediada constituem uma grande riqueza para a Igreja pós-conciliar.
- As Normas gerais do ano litúrgico propõem uma nova centralidade da experiência iniciática do mistério pascal, que vai se realizar no novo Ordo da Iniciação Cristã de Adultos, outra obra-prima da reforma litúrgica.
- a terceira edição típica do Missal Romano de Paulo VI e o Lecionário são tesouros de inestimável valor. Junto com o rito de Iniciação Cristã de Adultos, representam o melhor da reforma litúrgica gerada pelo Concílio Vaticano II. Um dos desafios pastorais mais urgentes que aguarda pela Igreja contemporânea é de alcançar a ars celebrandi da forma ordinária no mesmo nível desses livros.
Acredito que aqueles que continuam convencidos de que a tradição “anterior” é mais alta, mais séria e mais piedosa poderiam facilmente se surpreender com esta reconstrução. Acredito que o próprio fim da Comissão Ecclesia Dei, com a sua supressão, se deve precisamente a esta incompreensão: tendo dado autorização para poder usar o rito anterior à reforma de Pio XII para o Tríduo, ela demonstrou estar totalmente fora do caminho comum eclesial, querendo negar tudo o que está “além de Pio V”.
O caminho de fidelidade, iniciado há 70 anos, havia descoberto os graves desvios que a compreensão do Tríduo havia sofrido desde a Idade Média, impondo, de fato, um “duplo tríduo”: um da paixão (quinta-sexta-sábado) e um da ressurreição (domingo-segunda-terça), da qual apenas o segundo era festivo. Essa deformação ainda nos diz respeito: tem uma inércia histórica que nos ameaça e da qual devemos ter cuidado pastoral, teológico e espiritual.
A recuperação da centralidade do único tríduo pascal, unidade de morte e de ressurreição, da vida de Cristo e da vida da Igreja, é o verdadeiro remédio para a tentação de “celebrar sozinho”: tríduo pascal e eucaristia, de fato, estão intimamente ligados e se alimentam mutuamente. Não se entende e não se vive a reforma do Ordo Missae se não se entra, de alma e corpo, na nova lógica do Tríduo Pascal, e vice-versa.
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Novo e velho tríduo: uma virada decisiva. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU