11 Fevereiro 2021
O poder dos Estados está nu. A sua pretensão de totalidade foi ridicularizada pela pandemia, mesmo que isso seja confirmado pelo fato de as decisões a esse respeito ainda estarem nas mãos dos governos individuais. O Papa Francisco abordou essa situação no discurso do dia 8 de fevereiro aos membros do corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé (183 Estados, 88 com sede diplomática em Roma), concentrando a interpretação do ano de 2020 nas consequências da Covid-19.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 10-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“As repercussões da pandemia são verdadeiramente globais, tanto porque ela envolve de fato toda a humanidade e os países do mundo, quanto porque ela incide sobre múltiplos aspectos da nossa vida, contribuindo para agravar crises fortemente inter-relacionadas, como a climática, a alimentar, a econômica e a migratória”.
A lista torna-se sistemática: crise sanitária, ambiental, econômico-social, política, antropológica. Em um discurso aos governos, a questão pandêmica se entrelaça com assonâncias e dissonâncias das várias potências políticas em relação à obra da Santa Sé. Assim também o reconhecimento de alguns pontos mundiais indicados como particularmente graves. Vou mencioná-las antes de abordar a ilustração das crises individuais.
No que diz respeito à Rússia e aos EUA, há um apreço pela extensão do Tratado de Redução de Armas Estratégicas – New-Start, mas eles não devem ter gostado do pedido pelo fim da corrida armamentista (nuclear, química e convencional) e, no que diz respeito à Rússia, a menção às guerras do Cáucaso (Armênia-Azerbaijão), sem ignorar a da Ucrânia e da Geórgia. De um modo geral, fica muito evidente a renovada (não total) sintonia com o novo governo estadunidense de J. Biden.
Em relação à União Europeia, existem dois destaques positivos. O primeiro diz respeito à sua capacidade de reagir em conjunto perante a crise econômica, mediante o plano Next Generation UE (750 milhões de euros de investimentos em inovação industrial, habitacional, ecológica e digital). O segundo, mais nuançado devido às resistências de algumas nações como a Polônia e a Hungria, refere-se ao esperado novo pacto sobre as migrações. Dirige-se à Europa e ao conjunto do Ocidente a constatação de que, “sob o pretexto de garantir supostos direitos subjetivos, um número crescente de legislações do mundo parece se afastar do dever imprescindível de tutelar a vida humana em todas as suas fases”.
Há maiores consonâncias com as Nações Unidas. São citados o tratado sobre a proibição de armas nucleares, o compromisso da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e a próxima conferência das Nações Unidas sobre o clima (COP-26, Glasgow). Um consenso que se estende de forma mais geral a todo o sistema multilateral de relações entre os Estados. Também é previsível a citação positiva sobre o Acordo China-Santa Sé sobre a nomeação de bispos, renovado em 2020. Tema discutido e acordo duramente criticado pelo governo Trump.
Resta a distância em relação à crescente desconfiança da Europa e dos EUA em relação à China. Em discurso no dia 4 de fevereiro passado, Biden destacou a firmeza em relação a ela, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, confirmou várias vezes que o país asiático é “um parceiro de negócios, um concorrente econômico e um rival sistêmico”.
Mas ambos reconhecem a legitimidade e talvez a oportunidade da abertura da Santa Sé que, por sua vez, certamente não está disposta a não ver as violações aos direitos humanos em Hong Kong, contra os tibetanos e os uigures. Além disso, as palavras críticas explícitas sobre a reviravolta militar em Mianmar são uma denúncia indireta à incapacidade da China de moderar a pretensão dos militares locais fortemente ligados a ela.
Os pontos candentes dos confrontos de guerra, das tensões e dos desastres naturais são reconhecidos sobretudo na África: Burkina Faso, Mali, Níger, Sudão, Sudão do Sul, Moçambique, Sahel, República Centro-Africana, Líbia. Há um aceno às situações mais graves na América Latina e na península coreana na Ásia. Mais forte é a invocação à paz para o Oriente Médio, em particular para a Síria, Iêmen, Israel-Palestina.
Neste ano, a atenção está no Líbano, que “corre o risco de perder a sua identidade”, indo ao encontro do “fracasso do país, com a possível consequência de perigosos desvios fundamentalistas”. E o terrorismo fundamentalista é indicado como uma “grave chaga deste nosso tempo”.
A lista das crises começa com a sanitária, que impacta dimensões fundamentais da vida: a doença e a morte. O Papa Francisco enfatiza o “acesso universal aos cuidados básicos de saúde”, retirando os cuidados de saúde da lógica do lucro. A distribuição justa de vacinas anti-Covid deve ser acompanhada por comportamentos pessoais responsáveis.
A crise ambiental é o sinal da doença da terra. “Certamente existem profundas diferenças entre a crise sanitária provocada pela pandemia e a crise ecológica causada por uma indiscriminada exploração dos recursos naturais. Esta última tem uma dimensão muito mais complexa e permanente, e requer soluções compartilhadas de longo prazo. Na realidade, os impactos, por exemplo, das mudanças climáticas, sejam eles diretos, como os eventos atmosféricos extremos, como inundações e secas, ou indiretos, como a desnutrição ou as doenças respiratórias, são muitas vezes repletos de consequências que persistem por muito tempo”.
A crise econômica e social é consequência de uma “economia baseada na exploração e no descarte tanto das pessoas, quanto dos recursos naturais”. “É preciso uma espécie de ‘nova revolução copernicana’ que recoloque a economia a serviço do ser humano e não vice-versa”.
As atuais dificuldades afetam os mais pobres, aqueles que trabalham em setores informais, sem nenhum seguro e cobertura, e aqueles que são vítimas das diversas emergências humanitárias, em particular os prófugos, os refugiados e os migrantes.
Não menos grave é a crise política e democrática. “Manter vivas as realidades democráticas é um desafio deste momento histórico, que interessa de perto a todos os Estados; sejam eles pequenos ou grandes, economicamente avançados ou em desenvolvimento”. “O desenvolvimento de uma consciência democrática exige que se superem os personalismos e prevaleça o respeito ao Estado de direito. O direito, de fato, é o pressuposto indispensável para o exercício de todo o poder e deve ser garantido pelos órgãos responsáveis independentemente dos interesses políticos dominantes”.
Mas a crise mais grave é a crise antropológica, a crise das relações humanas. Apesar da contribuição positiva das novas tecnologias, os longos meses de isolamento e confinamento estão produzindo uma “catástrofe educacional”. Pelo bem das futuras gerações, é preciso uma “renovada temporada de compromisso educativo que envolva todos os componentes da sociedade”. A começar pela família.
Breve mas intensa é a referência às consequências do vírus sobre as liberdades pessoais, incluindo também a da fé, com os limites impostos às atividades de culto, de educação e de caridade. Se as limitações são compreensíveis em relação à saúde de todos, “não se deve ignorar que a dimensão religiosa constitui um aspecto fundamental da personalidade humana e da sociedade, que não pode ser obliterado”.
“Não se pode considerar a dimensão espiritual e moral da pessoa como secundária à saúde física.” “A liberdade de culto, além disso, não é um corolário da liberdade de reunião, mas deriva essencialmente do direito à liberdade religiosa, que é o primeiro e fundamental direito humano.” Só assim se entende como “fraternidade e esperança (são) remédios de que o mundo precisa hoje, assim como as vacinas”.
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Francisco: o vírus e o poder nu dos Estados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU