23 Janeiro 2021
Encerram-se os quatro anos da presidência mais convulsiva e polêmica dos últimos tempos. Donald Trump sai da Casa Branca, mas deixa uma longa lista de decisões equivocadas: novos inimigos, aliados ressentidos, divisão, entre outros assuntos. O que Joe Biden pode fazer? O professor Amitav Acharya, da American University e autor do livro “The End of American World Order”, falou sobre os próximos difíceis anos para os Estados Unidos.
A entrevista é de Angélica Lagos C., publicada por El Espectador, 19-01-2021. A tradução é do Cepat.
Trump foi uma consequência e não a causa da atual crise da hegemonia dos Estados Unidos no mundo?
A ordem internacional liberal foi fundada sobre uma combinação de globalização, livre comércio e multilateralismo. A ascensão de Trump ao poder é uma consequência – não uma causa – da diminuição da ordem internacional liberal liderada pelos Estados Unidos, especialmente de sua incapacidade em abordar as preocupações dos eleitores nacionais deixados para trás pelo livre comércio.
Trump foi capaz de explorar a reação contra a globalização que já estava sendo gestada em algumas partes dos Estados Unidos, como o Meio-Oeste, que havia sofrido perdas de emprego e renda, na medida em que as fábricas e empresas se transferem para outras nações como a China, onde a produção era mais barata e eficiente.
Seus slogans “America First” e “Make America Great Again” tiveram uma profunda ressonância entre os eleitores rurais da classe média baixa branca (incluídos os supremacistas brancos), que não gostam do globalismo e possuem pouca compreensão dos benefícios das instituições multilaterais. Na medida em que a pandemia de Covid-19 golpeou, Trump condenou as cadeias de fornecimento globais, um motor chave da globalização, como uma ameaça para a autossuficiência nacional dos Estados Unidos em produtos médicos.
Trump pôde vender a seus eleitores de base a ideia de que os Estados Unidos haviam realizado um “acordo ruim” com instituições multilaterais como a Organização Mundial do Comércio, responsável em promover o comércio mundial, e a Organização Mundial da Saúde, que favorecia competidores como China à custa dos Estados Unidos.
Como prevenir novos fenômenos como Trump?
O populismo não desaparecerá da noite para o dia, já que tem raízes profundas, como a reação contra a globalização neoliberal. Mas a derrota de Trump nas eleições de 2020 desalentará os populistas. Além disso, os líderes autoritários já não podem contar com a tolerância estadunidense aos governantes autoritários, seja na Ásia (Filipinas), Oriente Médio (Turquia) ou na Europa (Hungria e Polônia).
Também não podem contar com o estímulo estadunidense às políticas populistas nas nações democráticas, como fez Trump quando estimulou Boris Johnson e o Brexit. Biden abrandaria os espíritos dos atuais líderes de Israel, Brasil, Filipinas, Coreia do Norte e Arábia Saudita.
Rússia e China se aproveitaram das políticas equivocadas de Trump?
Em certa medida, Rússia e China, assim como potências menores como Turquia e Coreia do Norte aproveitaram as políticas de Trump, especialmente seu enfoque geral de “America First”, que incluía uma política exterior unilateralista e transnacional, o desprezo por instituições multilaterais e a recusa em se envolver ou respeitar aos aliados tradicionais dos Estados Unidos, e uma postura antiglobalização.
Não só suas políticas, mas sua personalidade também causou uma grave erosão do prestígio e a credibilidade dos Estados Unidos em todo o mundo, o que só pode beneficiar aos competidores e adversários dos Estados Unidos.
Seu estilo de governo fez eco internacionalmente, inclusive naqueles que podiam se beneficiar dele, como corruptos, nepotistas, imorais, racistas, erráticos e ineficazes. Basta olhar o número de mortos dos Estados Unidos pela Covid-19, que é de 400.000. Um número tão alto não era inevitável, com as políticas e a gestão adequadas poderia ter sido muito menor.
Por último, mas não menos importante, a incitação de Trump à insurreição no Capitólio, no dia 6 de janeiro de 2021, fez com que os Estados Unidos pareçam instável e se zombou da democracia e o Estado de direito dos Estados Unidos.
Biden pode reverter parte desta perda de prestígio e influência estadunidenses. Já indicou o seu compromisso com a cooperação global e o multilateralismo e em reverter a postura anti-imigrante de Trump. Biden traz de volta um alto nível de decência pessoal à Casa Branca. Sua vice-presidente, Kamala Harris, assim como a escolha de quadros de alto nível para a sua gestão projeta a imagem de respeito pela diversidade e o multiculturalismo. Biden enfrenta grandes desafios econômicos e, caso consiga assegurar a restauração econômica, então roubará o fulgor de outras nações poderosas no mundo.
Rússia e China, assim como outras potências emergentes como o Brasil, Índia e África do Sul, enfrentam graves problemas econômicos e políticos próprios. Ao mudar seu governo com uma alteração ideológica tão dramática e fundamental, os Estados Unidos realmente têm uma vantagem sobre outras nações, ao menos a curto prazo.
Trump prejudicou as alianças fundamentais dos Estados Unidos. Como se recuperar desse legado?
O dano infligido por Trump não é irreversível. Sem exceção, os aliados estadunidenses acolheriam com beneplácito a renovada atenção dos Estados Unidos e o compromisso com eles. Sem dúvida, graças às afrontas de Trump, a União Europeia, liderada pela França e a Alemanha, falou de “soberania europeia”, incluindo uma maior autossuficiência na segurança. Tal discurso não desaparecerá, mas a atenção estará em se os Estados Unidos voltam a se comprometer com seus aliados europeus através da OTAN e a União Europeia.
A própria União Europeia enfrenta múltiplos desafios que sufocariam sua busca pela autossuficiência na segurança. Pode existir com o apoio estadunidenses. Os aliados indopacíficos dos Estados Unidos, especialmente o Japão, Coreia do Sul e Austrália, seguem dependendo em grande medida do guarda-chuva de segurança dos Estados Unidos e se sentiriam aliviados se, como é provável, a gestão Biden estabeleça uma relação mais positiva e respeitosa a eles.
A política exterior de Biden em matéria de segurança, frentes diplomáticas e políticas teria um enfoque consultivo aos aliados estadunidenses, especialmente quando e onde os seus interesses estiverem envolvidos.
Na frente multilateral, a política de Biden de voltar ao Acordo Climático de Paris e à Organização Mundial da Saúde seria universalmente bem acolhida. Organizações regionais como a ASEAN [Associação de Nações do Sudoeste Asiático] também esperam uma relação mais positiva com os Estados Unidos, após o desastre dos anos Trump.
O sistema multilateral enfrenta uma crise estrutural de longo prazo causada por dificuldades financeiras, assim como demandas por reformas para fazer com que as Nações Unidas sejam mais democráticas e responsáveis. Estes problemas vão além da capacidade de qualquer nação para serem resolvidos, mas ajuda ter nos Estados Unidos uma gestão compreensiva, comprometida com um grau de internacionalismo liberal. Trump rejeitou o globalismo em favor do patriotismo e o nacionalismo. Nenhum líder rejeitaria o patriotismo, mas líderes como Biden podem encontrar um modo de reconciliá-lo com o globalismo.
Qual será esse primeiro desafio de política exterior para Biden?
Depende muito de onde exploda a primeira crise, e isto não é possível prever. A gestão Biden se centrará na questão interna, antes de mais nada, especialmente na pandemia. Em termos de política exterior, penso que será a China, no modo de gerir a concorrência com uma China em ascensão e assertiva.
Também seria prioritário abordar as zonas de conflitos do Oriente Médio, como Síria, Afeganistão, Iraque e Irã. Mas, em geral, reabilitar a imagem e credibilidade dos Estados Unidos no âmbito global, revertendo o dano infligido por Trump, será uma das principais agendas de política exterior para a gestão Biden.
Os Estados Unidos não podem recuperar os anos dourados de sua hegemonia ou primazia. Também não podem recuperar a ordem internacional liberal. Mas se Biden conseguir conter a pandemia e estabilizar a economia estadunidense, ao mesmo tempo em que revitaliza o compromisso dos Estados Unidos com o mundo, através do respeito às normas internacionais e o reengajamento nas instituições globais, o país pode continuar sendo um ator muito respeitado e influente na ordem mundial.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Os Estados Unidos não podem recuperar os anos dourados de sua hegemonia”. Entrevista com Amitav Acharya - Instituto Humanitas Unisinos - IHU