07 Novembro 2020
Enfrentar a pandemia do novo coronavírus tem sido um desafio para sacerdotes e sacerdotisas de ancestralidade africana. As casas de religiões amargam a ausência de políticas públicas e estão sendo impedidas de obter recursos oficiais para sobreviver, inclusive os da Lei Aldir Blanc. Embora sigam à risca as recomendações sanitárias da OMS, suspendendo as festas nos terreiros, as mães e pais de santo voltaram a fazer atendimentos presenciais.
A reportagem é de Vivianny Matos, publicada por Amazônia Real, 04-11-2020.
“Já que não temos nenhum amparo dos nossos governantes, somos obrigados a voltar aos atendimentos. Caso contrário, muitos de nós das periferias, vamos passar muita fome. Como ainda não está normalizada essa situação epidemiológica, estamos com muitas necessidades de trabalhar e está difícil”, conta a mãe de santo Mam’etu Muagile. A suspensão dos trabalhos tem agravado a crise financeira dos afrorreligiosos, algo que pode se tornar ainda pior, já que não há um sinal de melhora.
No último 21 de outubro, a prefeitura de Belém alertou para um possível surto de covid-19 na capital paraense. O próprio prefeito, Zenaldo Coutinho (PSDB), afirmou que existe um aumento de casos suspeitos do novo coronavírus. O temor é que até esses atendimentos personalizados dos afrorreligiosos sejam novamente prejudicados.
“Somos sempre invisibilizados pelo Estado. Como somos, na grande maioria, negros, pobres e mulheres, ficamos sempre no fim da fila. Durante o processo de flexibilização de algumas atividades, o gestor público decretou os procedimentos para funcionamento das Igrejas Católicas e protestantes e nós, povos de terreiros, nem sequer fomos citados. Percebe-se então que, para eles, nossa tradição pouco importa”, desabafa Babá Edson Catendê, babalorixá das Águas do Ketu e presidente da Associação dos Filhos e Amigos do Ile Iya Omi Ase Ofa Kare (Afaia).
Para Catendê, o racismo estrutural explica esse descaso do poder público para com os afrorreligiosos. Poucas redes solidárias, ligadas às instituições do terceiro setor, prestaram algum tipo de assistência aos terreiros durante a pandemia. O afrorreligioso Catendê ofereceu ajuda a cerca de 2 mil pessoas da região metropolitana de Belém e zonas quilombolas, com a distribuição de cestas básicas, máscaras e itens de higiene pessoal por meio do projeto “Axé Para Preservar”, realizado pela Afaia em parceira com o Fundo Brasil de Direitos Humanos. “Nossas pernas só puderam segurar durante abril, maio, junho e julho. Agora só estamos distribuindo os kits de limpeza e higiene, já que os produtos são fabricados de forma sustentável na própria associação, a partir da reutilização do óleo da fritura de alimentos”, lembra.
“O terreiro sempre foi e será um espaço de acolhimento para todas as pessoas independentemente da cor, da orientação sexual, do lugar de onde veio e o modo de expressar e o fazer de cada um”, diz o babalorixá. “O amor é muito importante, pois sabemos que muitas pessoas estão desanimadas com o desemprego, com a saudade de quem se foi. Estamos enfrentando um momento difícil e de grandes reflexões”, acrescenta Catendê.
Elizabeth Leite Pantoja – Mam’etu Muagile
(Foto: arquivo pessoal)
Matriarca do Rundembo N’Gunzu Wá Bamburusema, Mam’etu Muagile é quilombola de Catchuai Pará e conselheira nacional de cultura do Pará. Elizabeth Leite Pantoja, seu nome de registro, ativista e também conselheira estadual de igualdade racial dos movimentos afro e das mulheres, alerta que “não existe nenhum órgão governamental prestando assistência com um olhar específico para os povos das comunidades tradicionais de matriz africana”.
Desde o início da pandemia, as casas de N’gunzu (axé) dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana dos espaços sagrados de Rundembos, Ilês, Siaras, Tendas, Terreiros mansus, de Congas passaram a obedecer às regras determinadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). E mesmo agora, com a retomada dos atendimentos, os sacerdotes e as sacerdotisas mantêm o distanciamento necessário e a higienização requerida para evitar a contaminação. Os jovens têm ajudado com a orientação quanto ao uso das novas tecnologias digitais para a realização de atendimentos virtuais.
Em todo o Brasil, afroreligiosos lutam para que a Lei Aldir Blanc possa auxiliar o povo dos terreiros, uma vez que, como lembra Edson Catendê, são espaços de agregação popular onde a tradição e a cultura andam juntas. No Rio de Janeiro, os terreiros cadastrados para serem beneficiados com o recebimento do auxílio emergencial cultural, baseado nas definições da Lei Aldir Blanc, foram vetados pela Fundação Professor Carlos Augusto Bittencourt (Funcab). Quem fez a denúncia em uma rede social, no último dia 27 de outubro, foi o vice-presidente da Federação dos Cultos e das Religiões de Matriz Afro (Fecauber), Marconi Moraes de Vasconcelos.
Babá Edson Catendê (Foto: de Sibey Nunes)
“Nós temos lutado muito contra a intolerância, ódio religioso e racismo e estamos sempre defrontando estes inimigos dos direitos humanos. Mais uma vez fomos vítimas de discriminação institucional, pois alegando que não temos produção cultural os técnicos da Funcab vetaram todos os terreiros que foram cadastrados de serem beneficiados com o recurso de auxílio cultural (Aldir Blanc) 3 a 10 mil reais em três parcelas, onde todos os outros polos culturais inclusive a capoeira, que vem da mesma matriz cultural e em diversas pontuações até bebe da fonte rítmica e folclórica da nossa comunidade tradicional de terreiro”, escreveu Vasconcelos.
Ameaçados com a falta de recursos e de outros auxílios, os praticantes das religiões de matriz africana enfrentam ainda o desafio de preservar o distanciamento com os mais velhos. “Nossa religiosidade e tradição é sempre integrada. A maioria das lideranças são pessoas da melhor idade, nossas enciclopédias de saberes, nossas fontes de conhecimentos contínuos e dinâmicos. Temos que ter um cuidado especialíssimo com esses ancestrais vivos que são de suma importância para o nosso axé. Temos que cuidar e preservar a vida dessas pessoas.
Um outro desafio é trabalhar outras dinâmicas de convivência, já que somos um povo que adora o contato, o abraço, o beijo, o toque e a conversa. Trabalhar o auto-cuidado para evitar que a disseminação da Covid-19 nessas comunidades”, lembra Babá Catendê. Como liderança de terreiro e ativista do movimento social negro e afrorreligioso, Catendê alerta sobre a importância de manter o isolamento social e evitar festas públicas para garantir a sobrevivência dos povos de matriz africana.
Vovó Maria Preta Seringueira de Tepetecó – Preta Velha na Casa Solar da Cabocla Jacira (Foto: Ursula Bahia/Amazônia Real)
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Casas de religiões de matriz africana enfrentam a pandemia sem apoio de políticas públicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU