23 Setembro 2020
“É como o movimento do gambito no xadrez, sabe? Você sacrifica um peão agora, mas para ganhar uma vantagem que você espera que lhe fará vencer depois. Nós, com o ambiente e as tecnologias, estamos fazendo a mesma coisa: estamos consumindo mais energia, mas o consumo de hoje pode ajudar a reduzir o impacto no futuro.”
A reportagem é de Davide Perillo, publicada em Eni.com, 21-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Luciano Floridi, professor titular de Filosofia e Ética da Informação da Universidade de Oxford, onde dirige o Digital Ethics Lab, é um dos mais perspicazes observadores da infosfera e da vida onlife, expressões cunhadas por ele e que, não por acaso, se tornaram de uso comum para descrever um mundo no qual digital e físico – online e life – estão cada vez mais unidos, fundidos, difíceis de distinguir e de separar.
O Teatro Parenti de Milão organizou um ciclo de três encontros, o último dos quais foi adiado devido ao confinamento. Os dois primeiros, em fevereiro, esgotaram: um teatro lotado para discutir sobre high-tech e filosofia. O próximo será sobre a utopia digital e sobre a relação entre o verde e o azul, que remete ao título do seu último livro, publicado pela editora Raffaello Cortina. Ou seja, o ambiente e a tecnologia, que têm um vínculo muito próximo e muito material entre si. Mesmo quando se fala de energia, se é verdade que as TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação) já absorvem mais de 10% do consumo global de energia e, até 2030, vão superar em muito esse valor (dados da Enerdata).
“O impacto é enorme”, confirma Floridi: “Até mesmo nestes meses de confinamento e de desaceleração. Pensemos no smart working: muitos dizem: ‘Bom, se ficarmos em casa, também fazemos bem ao ambiente’, mas não é bem verdade. Trabalhar de casa continua significando manter ligados a luz, o computador, o ar-condicionado, mandar trazer as compras...”. Consumos que se deslocam, ao invés de se reduzirem.
“Mas são as tecnologias digitais como tais que queimam muito. As transações de bitcoin, por exemplo, exigem uma quantidade de energia igual a 20% da demanda italiana ou igual ao total da República Tcheca. O machine learning e os algoritmos têm consumos alucinantes. Mas o lado bom é que todo esse uso de terabytes e terawatts deveria servir para melhorar a situação geral ao longo do tempo, se formos inteligentes.”
O gambito, então. Você o chama de risco calculado...
É claro. É da natureza do digital: permite fazer mais com menos. As vantagens, em longo prazo, compensam enormemente a desvantagem inicial, se o jogo for bem jogado. E a inteligência artificial, neste ponto, pode fazer muito. Há um universo inteiro de consumos desnecessários, desperdícios empresariais, comerciais, estruturais que está apenas esperando para ser derrubado.
Exemplos?
Vou dar dois. Um é de alguns anos atrás, mas é tão imponente que dá uma ideia. Quando o Google pegou os algoritmos do DeepMind, o famoso software que derrotou os mestres do xadrez e do Go, e os usou para otimizar seu consumo de eletricidade, ele teve um corte de mais de 30%. Impensável. O outro são os carros elétricos, sobre os quais há uma dialética muito interessante a se acompanhar.
Em que sentido?
Os defensores da primeira hora diziam: “Que bom, eles funcionam com eletricidade e, portanto, não poluem”. Depois, a dúvida começou a surgir: “Sim, mas a eletricidade depende de como você a produz: se você usa carvão...”. É verdade. Mas há um terceiro passo: você recarrega o carro elétrico quando quiser. Ou, melhor, em geral você faz isso à noite. Reduzir a curva de picos na demanda de energia, espalhando-a em outros horários, oferece vantagens enormes. Aqui em Oxford, em casa, eu já tenho os dois medidores: noturno e diurno. Se você tiver o cuidado de deslocar o consumo e fizer isso em uma escala de milhões de usuários, isso fará uma diferença extraordinária.
Isso em relação ao consumo. Mas e quem produz a energia? Como e quanto o digital ajuda?
Veja, para as empresas de energia, o dilema não é se focar nas fontes alternativas, mas sim quando e como fazê-lo. O futuro é esse. A questão é quão rapidamente ele está chegando e como lhe dar forma. Investir em pesquisa e desenvolvimento, e diversificar o portfólio, aos poucos, é claro, e sem fraturas, é inevitável. Não só para proteger o negócio, mas também para desempenhar plenamente o próprio papel social. Somente as grandes empresas têm em casa o know-how, o capital, o interesse e uma estratégia de longo prazo para fazer um trabalho assim. Você não encontra essas quatro coisas juntas em lugar nenhum. O Estado pode ter o capital e o interesse, talvez. Mas o know-how, não. E a clarividência, menos ainda. Acho que, em relação às famosas Big Oil, isso desloca o ponto de reflexão: de “elas têm que fazer isso para salvar a própria pele” para “peçamos a elas que façam isso porque são as únicas que podem conseguir”. É um desafio entusiasmante, em um espaço onde realmente há muito a ganhar.
Mas por que o casamento entre o verde e o azul seria o casamento do século, como você diz há muito tempo?
Porque a aliança traz benefícios a ambos. O verde precisa do azul para sobreviver. Precisamos de uma tecnologia que seja capaz de manter e de melhorar o padrão de vida de todo o mundo, sem destruir o ambiente. E o digital é a única modalidade que, justamente, permite fazer mais com menos: isso nunca tinha acontecido antes. Além disso, o verde faz bem para o azul. Hoje, muitos gestores ainda veem a sustentabilidade como um custo, mas é aí que está o negócio. O verde não é a cereja do bolo: é o bolo. É uma perspectiva a ser invertida. Mas é preciso uma mudança de mentalidade nada simples.
Aqui também: exemplos?
Pensemos no mundo dos resíduos urbanos: é um negócio enorme. Por necessidade, demanda, fundos. E pela ausência de grandes conglomerados. Investir na recuperação dos resíduos para produzir energia daria grandes margens. Além disso, são tecnologias que, uma vez desenvolvidas, podem ser exportadas e restituem competitividade. Se você tentar competir com a China, produzindo pregos ou lápis, você não se sustenta. Mas, nesses temas [como os resíduos], você pode, e como! É claro, você precisa entender o tamanho do desafio.
E, provavelmente, também precisa estar disposto a mudar a estrutura, a organização...
Agora é preciso pensar em termos de arquipélagos, em vez de monólitos. As grandes empresas do futuro estão destinadas a ter ao seu redor uma pequena galáxia de startups, microempresas, iniciativas, escolas de formação... A Eni [Ente Nazionale Idrocarburi], por exemplo, é muito ativa na formação e no investimento em projetos. Pois bem, imagine uma empresa assim que se coloque estruturalmente na perspectiva de dizer: “Eu financio 10 startups porque se uma só desenvolver uma tecnologia que funcione, eu pago os custos e ainda ganho dinheiro”.
Nos últimos tempos, insiste-se muito nos problemas, evidentes, criados pela brecha digital entre quem tem meios e instrumentos digitais e quem não tem. Mas não há o risco de que essa fratura também acentue uma brecha ecológica? Quem fica para trás nas tecnologias fica muito atrás na proteção do ambiente...
Mais do que um risco, é uma certeza. Basta olhar para os relatórios sobre a saúde dos países que continuam recorrendo principalmente ao carvão. O custo incorrido em termos de ecologia e de sofrimento humano, estando do lado errado da brecha, é extraordinário. Mas, nesse aspecto, há um ponto importante a se considerar. Se, em geral, a brecha tecnológica é uma batalha entre vencedores e perdedores, abre-se a possibilidade de uma situação ganha-ganha em relação à sustentabilidade. Se você lucra com uma tecnologia nova que explora a reciclagem, é verdade que outra pessoa não lucrará mais, porque ficou para trás: mas é igualmente verdade que essa pessoa também ganhará dinheiro, porque, com a reciclagem, estamos todos melhor. Comparado com o passado, é outra novidade. Existe a possibilidade de não pensar mais apenas em termos de guerra de mercado, mas de uma vitória comum. Essa também é uma revolução.
Você diz que a infosfera precisa de um ambientalismo sintético digital. O que isso significa exatamente?
No marco antigo, no qual a sustentabilidade era apenas um custo, o ambientalismo sempre foi visto como um peso: o partido dos sacrifícios, do não, do retorno ao passado... Houve um ambientalismo desse tipo, é inegável, e ele também tinha as suas razões. Eu proponho um diferente, de segunda geração: um ambientalismo 2.0, capaz de entender que a tecnologia digital trabalha a favor do ambiente. Ele pode fazer essa síntese entre infosfera e biosfera. E pode ajudar a abrir uma perspectiva nova: a de uma economia circular rica.
Em que sentido “nova” e “rica”?
A economia foi circular durante quase toda a história da humanidade. Muitas vezes, custamos a encontrar vestígios do passado, porque não se jogava nada fora no passado. Quando criança, eu pensava: “Mas onde foram parar todas as espadas das legiões romanas? Por que tão poucas foram encontradas nas escavações?”. Depois, eu entendi: quando uma quebrava, eles a fundiam e faziam outra coisa com ela. Mas foi assim com qualquer objeto, durante séculos: o ser humano sempre viveu de uma economia circular pobre. Foi apenas no último trecho da nossa história, há alguns poucos séculos, que passamos para uma economia linear rica: você compra, consome, joga fora. Pois bem, agora podemos fazer a terceira passagem: recuperar a circularidade, mantendo a riqueza.
Voltemos à necessidade de uma visão geral de longo prazo. Em “Il verde e il blu” [O verde e o azul], você fala exatamente sobre isto: sugere algumas ideias ingênuas para melhorar a política. O que é preciso para ajudar nesse impulso rumo a uma sustentabilidade diferente?
Três coisas: formação, investimento e confiança. A formação, acima de tudo. Se continuarmos jogando para baixo, especialmente na Itália, nunca poderemos implementar estes discursos. As soft skills vão muito bem, sem dúvida. Mas também temos uma grande necessidade de pessoas que saibam matemática, estatística, ciência da computação, bioquímica... Os fundamentos, em suma. Além disso, precisamente, confiança. É um fator decisivo.
Por quê?
É indispensável para coagular a sociedade, para projetar algo comum. E eu falo de confiança em nós próprios, entre nós e nas instituições. Se você não tem confiança em si mesmo, não vai a lugar nenhum. Mas você também tem que confiar no outro, pelo menos como ponto de partida: “Diga-me, você quer tentar?”. Eu confio. Depois, talvez, posso mudar de ideia, mas a primeira atitude não pode ser de fechamento. É muito importante, porque também nos permite nos responsabilizarmos, fazermos crescer. Como é importante recuperar a confiança nas instituições. Ou, melhor, nas organizações: não só o Estado e a administração pública, mas também a empresa, o mundo produtivo. Sem aquele momento inicial de confiança e de comprometimento, você não consegue nada: você não consegue trabalhar junto.
E o investimento? Eu acho que você não está falando apenas de capital...
Não: temos que investir no futuro. Eu sempre digo que o futuro paga, mas não vota. Paga as coisas que não queremos fazer ou que fizemos mal: dívidas, as escolhas míopes. As gerações futuras pagarão por todas elas. Só que elas não votam, não têm voz. Dar voz a esse futuro, regenerar de algum modo a esperança, é mais do que uma necessidade, é uma obrigação. Caso contrário, corremos realmente o risco de esgotar a reserva de energia mais importante que temos.
Qual?
A vontade de fazer. Eu vejo isso quando ando por aí, converso, encontro as pessoas. Há fome e sede de uma positividade construtiva sobre o futuro, sobre o que fazer e onde pôr as mãos. Tem muita gente que diz: “Eu estou dentro”. Pense apenas no nosso país [Itália]: temos cerca de sete milhões de pessoas engajadas no voluntariado. Mais de um em cada 10 italianos. A energia para fazer bem, todos juntos, existe. Mas é preciso utilizá-la, não desperdiçá-la.
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O xadrez da inovação tecnológica e da sustentabilidade. Entrevista com Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU