Lercaro, de Bolonha, antecipou um papado 50 anos antes de seu tempo

Cardeal Lercaro | Foto: Wikimedia Commons

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25 Agosto 2020

Recentemente, minha esposa e eu fizemos uma parada em Bolonha no caminho de volta a Roma, retornando das férias que havíamos feito nos Alpes italianos. Para quem conhece um pouco de história da Igreja, esta cidade lembra aquele que talvez é o seu mais famoso e polêmico arcebispo desde Giuliano della Rovere, no início do século XVI, quem, como Papa Júlio II, veio a ser o “Papa Guerreiro”, liderando pessoalmente os exércitos da Santa Liga na batalha do Cerco de Mirandola.

A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 21-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Bolonha Rossa” ou “Bolonha Vermelha”, chamada assim por causa de sua arquitetura de tijolos vermelhos, mas também por ser um reduto do Partido Comunista Italiano, foi a cidade do Cardeal Giacomo Lercaro, um dos heróis progressistas do Concílio Vaticano II e o principal patrono europeu das novas correntes progressistas que surgiam, à época, na América Latina.

Em certo sentido, Lercaro poderia ter sido o Papa Francisco meio século antes, já que fora um forte candidato ao papado no conclave de 1962, teoricamente obtendo cerca de 20 votos em seu auge, antes de dar lugar a Paulo VI.

Nascido em 1891, em uma família pobre de marinheiros que viviam numa pequena cidade perto de Gênova, Lercaro foi o oitavo de nove filhos, e dois de seus irmãos mais velhos também se tornaram padres. Foi capelão militar na Primeira Guerra Mundial e, mais tarde, virou o primeiro capelão do “apostolado do mar”, na Itália.

No tempo livre, Lercaro vagava pelos subúrbios empobrecidos de Gênova, vindo a conhecer um grupo de pessoas chamadas de “detentos vivos”, ou seja, os leprosos que viviam em um gueto, num dos subúrbios locais e que eram ignorados por praticamente todo mundo.

Em 1947, Lercaro é nomeado arcebispo de Ravena pelo Papa Pio XII. Em 1952, é transferido para Bolonha e feito cardeal por Pio XII no ano seguinte.

Em Bolonha, Lercaro rapidamente ficou conhecido como um tipo diferente de arcebispo. Entre outras coisas, o novo prelado trouxe consigo um grupo de alunos de famílias pobres que viviam e estudavam no palácio episcopal em Ravena e que agora foram para a nova residência em Bolonha.

No trabalho, havia cerca de setenta desses jovens desfavorecidos morando nas propriedades da Igreja, com os quais Lercaro almoçava quase diariamente. O programa acabou virando permanente na Villa San Giacomo, nos arredores da cidade.

O lema de Lercaro, que ele inscreveu no altar da Catedral de São Pedro, em Bolonha, era: “Se partilhamos o pão do céu, como não compartilhamos nosso pão aqui na terra?”.

No início, para seu novo rebanho em Bolonha ele parecia um falcão anticomunista, fazendo o possível para evitar ser fotografado com o prefeito comunista da cidade. Com o tempo, entretanto, Lercaro avançaria continuamente em direção à reconciliação com a esquerda política.

Durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), a maior parte do drama, conforme relatado na imprensa e nos grupos de fofocas eclesiásticas, centrava-se em um confronto entre reformadores e tradicionalistas, ou dito de forma mais direta: entre progressistas e conservadores. Enquadrados nesses termos, os progressistas desfrutavam de uma ampla maioria de pelo menos 2/3 dos bispos presentes no concílio.

No entanto, essa maioria progressista continha em si várias correntes, incluindo um contraste entre reformadores, cujos horizontes eram amplamente ad intra, preocupados com a liturgia, o ecumenismo, a divisão de poder entre Roma e as igrejas locais, o papel dos leigos, etc.; e aqueles cujo foco era mais ad extra, debatendo-se com o papel da Igreja no mundo em geral, especialmente quanto aos desafios na questão da injustiça e da pobreza.

Lercaro se colocava decididamente no segundo campo, apoiado por uma série de prelados latino-americanos, os quais, por sua vez, foram modelados pelas primeiras agitações daquilo que mais tarde viria a ser conhecido como a Teologia da Libertação. Mesmo sendo somente um membro da comissão litúrgica quando da abertura do Vaticano II, Lercaro surgiria como um dos delegados moderadores e um dos principais motores dos debates conciliares.

No final da primeira sessão do Vaticano II, Lercaro proferiu um famoso discurso delineando sua visão:

Com respeito a esta hora da humanidade, e este nível de desenvolvimento da consciência cristã (…) esta é a hora dos pobres, dos milhões de pobres que se encontram por toda a face da terra, esta é a hora do mistério da Igreja, mãe dos pobres, esta é a hora do Cristo, sobretudo no pobre”.

Em uma famosa homilia em Bolonha, Lercaro foi mais longe:

Pensem um pouco, se nas últimas décadas do século XIX, quando os apóstolos do socialismo levavam sua pregação nas nossas áreas rurais (...) se o clero tivesse entendido que nessa pregação no fundo havia uma sede de justiça anunciada por Jesus, as nossas populações teriam sofrido os desvios que sofreram? E teriam se colocado contra a Igreja e os padres por serem aliados dos ricos, dos capitalistas e dos exploradores? Hoje reconhecemos que o que se pedia então era justo, pedimos mais do que o que era exigido então”.

Não reconhecer os sinais dos tempos”, disse Lercaro, “é uma coisa ruim. Jesus repreendeu isso a seus contemporâneos e pedimos que ele não tenha que repreendê-lo a nós também”.

A queda eclesiástica de Lercaro veio em 1968, quando ele usou o primeiro Dia Internacional da Paz, instituído por Paulo VI, para denunciar explicitamente os bombardeios aéreos americanos no Vietnã do Norte.

A Igreja não pode ser neutra diante do mal, venha de onde vier”, afirmou Lercaro. “O seu caminho não é a neutralidade, mas a profecia”.

Na época, Paulo VI tentava intermediar as negociações de paz entre o governo do presidente americano Lyndon Johnson e os norte-vietnamitas, e o pontífice percebeu que não poderia se dar ao luxo de ter um de seus representantes mais graduados assumindo, aparentemente, um dos lados do confronto. Ele pediu a renúncia de Lercaro, e Lercaro se afastou um mês depois, dizendo: “O papa me disse para vir, e eu vim. Agora ele está me dizendo para sair, e eu estou saindo”.

Lercaro morreu em 1976 na mesma Villa San Giacomo que fundou para os pobres e jovens atribulados.

Obviamente Francisco reconhece Lercaro como uma espécie de precursor e alma gêmea. O diretor de um documentário laudatório, lançado em 2018, sobre Lercaro chamado “Segundo o Espírito” [1] é o leigo italiano Paolo Ruffini, atual diretor de comunicações de Francisco, e a escolha de Francisco para assumir a Arquidiocese de Bolonha, em 2015, foi Matteo Zuppi, hoje cardeal, membro da Comunidade de Sant’Egidio, progressista, e o qual segue a inspiração de seu lendário predecessor.

Em termos católicos, então, Bolonha é uma espécie de resposta à famosa pergunta de Langston Hughes: O que acontece com um sonho adiado?

Às vezes, pode murchar ou estourar…, mas às vezes também estabelece a base para um papado meio século antes de seu tempo.

 

Nota:

[1] O documentário Segundo o espírito (Direção: Lorenzo Stanzani, documentário, Itália, 2018 – 1h12min) foi exibido durante a realização do XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, no dia 21 de maio de 2018.

 

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