14 Mai 2020
Manaus tem se tornado um dos focos principais do coronavírus no Brasil, sendo manchete de jornais no mundo todo. Tudo isso tem se agravado com a crítica situação que vivem os hospitais, que não conseguem atender a demanda, provocando que muitas pessoas morram nas suas casas, em muitos dos casos sem atendimento médico. O número oficial de casos confirmados em Manaus, até 13 de maio, é de 8.630, com 757 falecidos, mesmo que o número de sepultamentos desde o início da pandemia, pode levar a pensar em que já seriam mais de 2.500 falecidos na capital amazonense em decorrência do coronavírus.
Maria do Socorro dos Santos Silva (Foto: Arquivo Pessoal)
Maria do Socorro dos Santos Silva é técnica de enfermagem desde há seis anos, num dos hospitais de Manaus que estão recebendo pacientes de covid-19. Ela é religiosa da congregação das Missionárias de Jesus Crucificado, e ela diz estar vivendo nas últimas semanas com “um sentimento de impotência, de insegurança, de incapacidade”, diante da falta de preparação para enfrentar “esse vírus tão violento que surgiu do nada”.
Mas a religiosa, que vê seu trabalho como algo ligado a sua vocação, continua firme no seu trabalho, afirmando que “eu encontro força na oração, na certeza que eu tenho de que Deus está comigo e confia na minha missão”, algo que também experimenta “na solidariedade da oração de tantas pessoas que rezam por nós”, nas mensagens de ânimo, algo que nem só ela, como suas colegas de trabalho, que também tem se tornado a única presença na vida dessas pessoas que ficam isoladas, tentam levar para os pacientes e seus familiares, que na distância esperam pela melhora dos doentes.
O papa Francisco, que já falou dos profissionais da saúde como os santos da porta do lado, representa na vida da religiosa “uma força que vem de alguém que valoriza o ato de cuidar”. Esse cuidado nem sempre está sendo fácil, provocando momentos de angústia, naqueles momentos em que tudo o que poderia ter sido feito como enfermeira já tinha sido feito. De tudo o que ela está vivendo fica “com esse espírito da solidariedade, da ajuda mútua, esse estar juntos”, afirmando que “vamos passar por tudo isso e vamos sair pessoas melhores, pessoas mais agradecidas, mais solidárias, mais irmãs, com mais esperança, com mais presença de Deus na sua vida, sentindo Deus na vida do outro, sendo esse instrumento de Deus na vida do outro”.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
Como religiosa que trabalha na área da saúde, como está enfrentando este momento em que a saúde, diante da pandemia do coronavírus, tem se tornado um bem essencial na vida das pessoas?
Como religiosa e, ao mesmo tempo, como técnica de enfermagem, está sendo para mim uma sensação de que a saúde, não somente aqui no Amazonas, mas a saúde no mundo, de forma geral, gera um sentimento de impotência, onde a própria enfermagem chora por perder pacientes para esse vírus tão violento que surgiu do nada, praticamente, e nós da área da saúde, nós não estávamos preparados para essa realidade, pegou todos nós de surpresa. Com essa falta de preparação, a gente acaba com um sentimento de insegurança, de incapacidade.
Diante disso, enquanto religiosa, também como alguém que trabalha na área da saúde, a gente chora de tristeza, por perder pacientes, que a gente tenta ajudar o máximo que pode, mas não somos capazes de chegar a dar o que é preciso para as pessoas sobreviver. A gente chora também vendo amigos e parceiros de trabalho adoecer e nada poder fazer. É um momento que requer de nós muita fé, muita segurança em Deus, mas inquieta a nós, nesse sentido de incapacidade.
A gente vê que o governo não tem preparo para nos preparar para essa realidade. Logo no início, a gente sofreu a questão da falta de material adequado para nossa segurança e para a segurança dos pacientes. A gente tem um medo muito grande, é um medo assustador, e a gente não sabe onde isso vai parar. Surge o desespero, parece que, dentro do hospital, a gente está enxugando gelo, porque tudo o que a gente tenta fazer, parece que esse vírus é bem mais forte. O desespero é capaz de tomar conta de todos nós da área da saúde, é um desespero de lágrimas, de saudade, de medo, de insegurança. Ainda vem um desespero maior quando a gente vê na sociedade que boa parte da população não se preocupa de se proteger, nem de proteger os demais. Aí vem esse sentimento de incapacidade.
Diante dessa realidade que você está relatando, onde você encontra a força para cada dia voltar de novo ao trabalho e continuar atendendo os doentes?
Ao retornar para casa, a gente chega com sentimento de incapacidade, mas no outro dia, a gente sabe que tem que retornar, tem que voltar para o hospital. Eu encontro força na oração, na certeza que eu tenho de que Deus está comigo e confia na minha missão. A outra força, na qual eu me sustento é na solidariedade da oração de tantas pessoas que rezam por nós. Recebo muitas mensagens, muitas ligações, dizendo: você não está só, nós estamos contigo, tenha fé em Deus. Isso é que nos sustenta, saber que nós não estamos sós.
Maria do Socorro dos Santos Silva (Foto: Arquivo Pessoal)
Essa fortaleza é que nós levamos para dentro do hospital, para os pacientes e para as famílias dos pacientes. Essa certeza de que Deus está conosco e Ele se manifesta através da solidariedade dos amigos, das pessoas das comunidades que rezam, da minha própria congregação que também é uma presença forte neste momento, que me diz, você não está só, estamos com você. Aí é onde eu encontro força cada dia, eu digo para Deus, eu estou aqui, que eu seja instrumento dentro daquela realidade. A gente chora, mas se refaz nessa confiança em Deus.
Onde e como descobrir a presença de Deus no hospital, diante da situação que vocês estão enfrentando?
Eu sinto essa presença de Deus dentro dessa realidade no acolhimento dos pacientes, chegar no paciente, ver que ele está, como a gente diz no hospital, relaxando para conseguir respirar, está com muita dor, e você sabe que já deu a medicação, que não pode fazer nada referente à enfermagem, e aí você encontra Deus nesse paciente, dizendo que ele seja forte, que nós estamos com ele, que ele não está sozinho, e a família, que está ao lado, se torna essa presença de fortaleza para esse paciente.
Eu encontro Deus na medida em que percebo que eles se apoiam em nós, quando a gente começa dizer, tenha fé em Deus, que isso vai passar, Deus está contigo, e aí, eles dizem, eu acredito. Quando eles procuram pela gente, pela enfermeira que foi conversar com eles, e dizem, na hora em que você veio aqui e começou falar aquelas coisas, eu comecei respirar melhor. Só o apoio, a presença, é algo de Deus para eles, eles acolhem, se sentem melhor. E o retorno deles, no carinho, na procura, no agradecimento, no aperto de nossa mão quando a gente já fez tudo o que podia fazer com os remédios, e diz que vamos esperar em Deus, e eles dizem, eu acredito. Eu encontro Deus nos pacientes, no momento em que eles são agradecidos pela nossa presença, por apertar nossa mão como uma forma de gratidão deles em relação a nós.
Diante da pandemia, os familiares não podem ficar acompanhando os pacientes. Vocês têm se tornado, além de profissionais da saúde, uma presença amiga, familiar, para esses pacientes?
Com certeza, porque não podem ter acompanhantes para não correr o risco de contaminar mais um da família. Aí a gente se torna amigo, irmã, a pessoa mais próxima, que precisa dar mais atenção a essas pessoas. Embora a gente precisa se proteger também, não podemos ficar diretamente com eles, por conta da proteção, mas aí a gente tenta ser essa presença de família, de amiga, de pessoa que sabe que a outra pessoa está precisando dos cuidados e não tem ninguém para cuidar. A atenção de levar água para esse paciente, que as vezes fica o dia todo sem beber água, dando essa atenção para hidratar esse paciente, ver como é que ele está, porque eles ficam isolados.
Aí requer mais atenção de nós. Se a gente já dava antes, com essa pandemia requer mais atenção, e as famílias ficam também querendo saber como é que está o paciente. A gente, além de dar essa atenção para ele, a gente tem que dar esse apoio para a família, falar como é que ele está, como passou o dia. Isso não cabe a nós da enfermagem, cabe ao médico, mas as vezes, por estar mais próximo, a gente acaba tomando.
O papa Francisco, neste 12 de maio, em que é comemorado o dia do enfermeiro, ele dizia que é mais do que uma profissão, é uma vocação, uma dedicação, que neste tempo de pandemia, deram exemplo de heroísmo e alguns deram a vida. Ele também tem chamado vocês de santos da porta do lado. O que significa para você como religiosa, essa força que o papa Francisco está dando para vocês?
Para mim particularmente é uma força que vem de alguém que valoriza a enfermagem, valoriza o ato de cuidar, de se colocar no lugar do outro, de perceber o quanto essas pessoas da enfermagem estão lutando, sempre lutaram em favor da vida, do cuidar da vida dos pacientes, e muitas vezes não ser valorizado. Essa pandemia também traz um pouco o reconhecimento da linha da enfermagem, de nós enquanto profissionais da saúde. O papa Francisco é uma pessoa que reconhece isso.
Maria do Socorro dos Santos Silva (Foto: Arquivo Pessoal)
A enfermagem é uma arte de cuidado, de um cuidar incondicionalmente, um cuidado de alguém que você nunca nem viu. Mas você cuida da mesma forma que se você estivesse cuidando de alguém que você já conhece, já faz parte da sua família, nós somos chamadas a cuidar. Quando o Papa fala essa coisas, isso é que estamos colocando nossa vida para cuidar de outras vidas. Eu acredito que seja nessa forma que ele nos reconhece, mas estamos doando nossas vidas para cuidar de outras vidas que precisam de cuidados.
Qual tem sido o momento mais marcante para você nas últimas semanas diante da situação que está vivendo em decorrência da covid-19?
Uma sensação marcante para mim foi quando no nosso setor, três pacientes vieram parando, que a gente chama rebaixar. Aí, quando a gente solicitou ajuda da equipe médica para reanimação, o médico falou que já estava tudo lotado, e de fato estava muito cheio, não tinha mais vaga. E aí, o médico não poderia ir mais no setor porque ele estava atendendo um outro paciente que estava sendo entubado. Foi um momento muito marcante para mim, para nossa equipe. O que estava em nosso alcance como enfermagem já tinha sido feito, aí vem a presença de Deus, se divide a equipe e fica lá tentando agilizar o paciente, posições melhores para respirar, conversar com ele para ir se acalmando, porque nesse momento se agita.
Para mim foi um momento muito sofrido porque eram três ao mesmo tempo, e nós estávamos quatro técnicos de enfermagem e uma enfermeira, tentando se dividir e sem saber o que fazer na hora, porque o que estava ao nosso alcance tinha sido feito. Depois, a gente, conversando enquanto equipe, comentou essa sensação mesmo de impotência nesse momento. Para mim foi o momento mais marcante, que graças a Deus nenhum veio a óbito nessa noite.
O que você está aprendendo de cara ao futuro diante da situação que estamos vivendo? O que pode tirar de positivo para sua vida de uma situação negativa como é a pandemia?
Fico com esse espírito da solidariedade, da ajuda mútua, esse estar juntos, essa solidariedade das comunidades, de pessoas que você nem conhece, doando coisas para proteger quem está na linha de frente. Eu acredito que vamos passar por tudo isso e vamos sair pessoas melhores, pessoas mais agradecidas, mais solidárias, mais irmãs, com mais esperança, com mais presença de Deus na sua vida, sentindo Deus na vida do outro, sendo esse instrumento de Deus na vida do outro.
Eu creio que tudo nesta vida se renova, então tudo recomeça, tudo renasce, tudo tem avanço. Crer no bem dessa força maior que nos move, que é Deus, que traz a paz, que traz a felicidade, diante de tudo isso que nos leva a não perder a esperança, de estar sempre a favor da vida, a favor do bem maior, a favor de todos.
Mesmo diante de situações como as que acaba de relatar, você pensa que vale a pena, inclusive como religiosa, trabalhar na área da saúde?
Acredito que vale a pena. Para mim, a minha profissão, ela está ligada a minha vocação, a minha vida consagrada, de alguém que consagrou sua vida ao serviço do povo e do Reino, a minha missão de cuidar dessa vida enquanto profissional da saúde. Também está ligado com o carisma da minha congregação que é ir em busca dos mais necessitados. Para mim me preenche cada vez mais, me deixa ainda mais convicção do meu chamado e da minha vocação, dentro da minha profissão como técnica de enfermagem dentro do hospital.
Eu só quero agradecer a Deus esse chamado que Ele me fez de estar ao serviço da vida, no sentido de cuidar, de agradecer, de respeitar. Também agradecer a minha congregação por me confiar esse serviço, e as pessoas que são solidárias comigo a través da oração, das conversas, das ajudas que a gente precisa, esse apoio que recebemos a cada manhã, a cada dia que nos encoraja, nos deixa mais entusiasmadas a assumir essa missão de estar na frente em meio a essa pandemia que estamos vivenciando.
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“Eu encontro força na certeza que eu tenho de que Deus está comigo e confia na minha missão”, afirma religiosa que combate a covid-19 em Manaus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU