22 Abril 2020
"Aqueles que têm tudo de sobra atravessam a tempestade com menos sacrifícios do que os pobres, para os quais a epidemia é apenas um elemento a mais da dor em que já vivem", escreve Juan Arias, jornalista, em artigo publicado por El País, 21-04-2020.
Já se escreveu muito sobre como a tragédia do coronavírus nos iguala a todos porque quando golpeia não conhece classes nem ideologias. Mata ricos e pobres. Isso é, no entanto, uma meia-verdade, porque, como sempre na história, aqueles que têm tudo de sobra atravessam a tempestade com menos sacrifícios do que os pobres, para os quais a epidemia é apenas um elemento a mais da dor em que já vivem.
Pode parecer, mas não é uma blasfêmia dizer que os pobres sofrem menos do que os ricos nestas tragédias porque estão acostumados a conviver com a dor, a frustração e a morte.
Talvez por isso, os que mais se opõem ao confinamento que pode salvar muitas vidas são aqueles para quem não faltará nada durante a quarentena, nem mesmo um bom hospital caso o bicho chegue a pegá-los, como afirmou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Não vimos, de fato, multidões de pobres saírem às ruas para protestar contra o isolamento, apesar de serem eles os mais martirizados por essa medida, pois ela os impede até de sair para ganhar o pão para sua família. Os pobres não têm cadernetas de poupança, e sim dívidas, e a epidemia os deixa mais desprotegidos do que ninguém.
Estão sendo, paradoxalmente, os mais ricos que estão forçando as manifestações contra o isolamento —que, segundo a ciência, é em todo o mundo o único antídoto até hoje para salvar vidas. Sim, o vírus não é classista, mas as tremendas desigualdades da nossa sociedade cruel continuam vivas e até se agigantam durante a epidemia.
Para os mais ricos, os da Casa Grande, o que interessa é que a máquina da produção seja posta em marcha o quanto antes para que a Bolsa volte a subir.
Talvez seja por isso que personagens políticos como o presidente Jair Bolsonaro se revelem desprovidos de sentimentos humanos elementares de compaixão pelos que mais sofrem as consequências da epidemia, e cheguem a negá-la.
Isso explica por que esses pequenos aprendizes de tiranos não se preocupam com aqueles que mais vão morrer com o vírus. Sabemos que são os idosos e os que já sofrem de alguma doença crônica. E essas vítimas são as que menos interessam a todos que veem o mundo sob o prisma do mero lucro ou do mero interesse político. Para eles, idosos e doentes são improdutivos em nossa sociedade do consumo e da vertigem da produtividade a qualquer preço.
Os psicólogos e psiquiatras estão apontando as consequências negativas que terá, para nosso cérebro, a crise mundial que afeta a humanidade inteira. E é aterrador. É um rio de angústias profundas que nossa psique está acumulando, e ainda não sabemos quais serão suas consequências finais.
Mas, dentro de tanta dor, angústia e morte, há um aspecto esquecido que poderia nos ajudar a resgatar um sentimento perdido em nossa sociedade, infectada pelo ódio político e social. Refiro-me a um certo despertar do mundo das emoções, as mais positivas, as que nos curam das psicoses e pareciam adormecidas em uma sociedade contagiada por ódios e discriminações.
É como se o mundo do dinheiro frio e até o do tédio daqueles que têm a mesa farta tivesse se apoderado de um mundo que já é incapaz de emoções humanas profundas.
No entanto, a emoção nos redime de nossos pessimismos estéreis, nos aproxima, nos faz descobrir algo que acreditávamos ter perdido para sempre imersos, como estamos, na sociedade do egoísmo e da inveja. As emoções são o oxigênio da nossa vida interior.
A epidemia, com suas dores, está nos devolvendo, por exemplo, o gosto pela emoção gerada pela solidariedade e pela empatia com os demais, que nos parecem mais próximos e iguais do que nunca.
É verdade que as sequelas psiquiátricas provocadas pelo desespero da separação física podem aumentar durante a crise, como se vê pelo aumento da violência doméstica em algumas famílias. Mas também é possível que o confinamento forçado sirva para que muitos casais e famílias valorizem e reconquistem a intimidade perdida e a alegria de estar juntos.
São essas emoções que o isolamento desperta repentinamente em nós, fazendo com que nos sintamos mais amigos e receptivos à dor e à alegria alheias.
Cenas como a de idosos até de cem anos que saem dos hospitais curados do vírus, sob aplausos de médicos e enfermeiros, eram inéditas até ontem.
Não podemos esquecer, nem mesmo nestes momentos trágicos, que a perda das emoções cria mundos paralelos de ódio e incompreensão da dor e da pobreza alheias.
As emoções, em vez disso, afastam os demônios da vingança. A emoção positiva está mais disposta ao perdão do que ao castigo e nos prepara melhor para compreender a dor e a solidão dos outros.
Quem é incapaz de abrigar emoções diferentes das criadas pela violência e pela morte nunca entenderá o que a ternura e o abraço significam.
O que os nazistas, que arrastavam mães com seus filhos para os crematórios nos campos de concentração, sabiam sobre emoções como a compaixão pelos outros?
Os incapazes de emoções são os mais próximos dos psicopatas que matam com a maior frieza do mundo. Onde estava a emoção nos interrogatórios policiais sob tortura ou nos pelotões de fuzilamento das ditaduras?
Se o coronavírus nos servir para despertar os melhores sentimentos de emoção diante da felicidade alheia, sentimentos que a luta política envenenada aniquilou, a pandemia não terá sido inútil.
Nada seria mais positivo para nosso mundo amargurado e cada vez mais injusto e com maior capacidade de segregação que nascesse um rio de emoções reprimidas capaz de nos redimir de tantos ódios acumulados.
Só aqueles que têm a alma seca de emoções não conseguem entender certas correntes de emoções positivas que só apreciamos quando as perdemos.
É por isso que todos os ditadores ou aspirantes são sempre os mais alérgicos às emoções que salvam e unem a humanidade na busca de uma felicidade que não precisaria matar nem humilhar para se sentir em paz com os outros.
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O coronavírus dos ricos e o coronavírus dos pobres. Artigo de Juan Arias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU