02 Setembro 2010
"A nossa era é uma nova era na história do mundo, na qual, graças à globalização e à crescente comunicação entre culturas e religiões, é vital que haja uma teologia católica das religiões bem desenvolvida. Panikkar foi um dos teólogos pioneiros e paradigmáticos dessa nova era."
A análise é de Joseph Prabhu, professor de filosofia e religião comparada da California State University, em Los Angeles, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 31-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O professor Raimon Panikkar, um dos maiores pensadores do século XX nas áreas de religião comparada, teologia e diálogo inter-religioso, morreu em sua casa em Tavertet, perto de Barcelona, na Espanha, no dia 26 de agosto. Ele tinha 91 anos.
Panikkar lecionou e viveu nos Estados Unidos de 1966 a 1987 e era conhecido por muitas gerações de estudantes aqui e em todo o mundo, tanto através de suas conferências quanto de seus muitos livros. O que eles ouviram e leram foram as reflexões surpreendentes de uma pessoa multidimensional, que era simultaneamente filósofo, teólogo, místico, padre e poeta.
Panikkar era filho de um indiano hindu e de uma católica espanhola, tendo nascido no dia 3 de novembro de 1918. Recebeu uma educação católica tradicional em uma escola jesuíta de Barcelona antes de iniciar seus estudos universitários em ciências naturais, filosofia e teologia, primeiro em Barcelona e depois em Madri. Pouco tempo depois, a Guerra Civil Espanhola estourou, e Panikkar aproveitou seu status de filho de um cidadão britânico para ir para a Universidade de Bonn, na Alemanha, para continuar seus estudos. Quando a Segunda Guerra Mundial começou em 1939, Panikkar retornou à Espanha e completou o primeiro de seus três doutorados, este em filosofia, pela Universidade de Madri, em 1946.
Aproximadamente em 1940, ele conheceu Escrivá de Balaguer, fundador da Opus Dei, com quem ele teve um relacionamento estreito. Foi com o impulso de Escrivá que ele se preparou para o sacerdócio católico e foi ordenado em 1946. Panikkar continuou associado ao Opus Dei por cerca de 20 anos, rompendo efetivamente com a organização apenas no começo dos anos 1960. Ele era lacônico acerca desse período de sua vida, dizendo apenas que não se arrependia. É claro, porém, quando se compara o Panikkar dos anos 1940 e do começo dos anos 1950 com o Panikkar posterior, mais conhecido no mundo como um dos pioneiros do diálogo inter-religioso, que ele percorreu um longo caminho de afastamento de suas raízes iniciais.
No final de 1954, quando já tinha 36 anos, Panikkar visitou a Índia, a terra de seu pai, pela primeira vez. Esse foi um divisor de águas, uma reorientação decisiva dos seus interesses e da sua teologia.
Ele entrou em um mundo radicalmente novo, religioso e culturalmente, da Europa católica de sua juventude. A transformação foi auxiliada por seus encontros e pela sua estreita amizade com três monges, que, como ele, estavam tentando viver e encarnar a vida cristã em uma forma indiana e predominantemente hindu e budista: Jules Monchanin (1895-1957), Henri Le Saux, também conhecido como Swami Abhishiktananda (1910-1973), e Bede Griffiths, monge beneditino inglês (1906-1993).
Todos os quatro, de diferentes maneiras, descobriram e apreciaram a riqueza e a sabedoria espiritual profunda das tradições indianas e tentaram viver e expressar suas principais convicções cristãs em formas hindus e budistas. Em certa medida, esse pertencimento múltiplo foi possível graças à sua aceitação da Advaita, a ideia indiana do não dualismo, de conexões profundas e muitas vezes escondidas entre as tradições, sem minimizar, de nenhum modo, as diferenças entre elas.
Uma das muitas frases marcantes de Panikkar ao olhar para sua jornada de vida afirma: "Eu deixei a Europa [pela Índia] cristão, descobri-me hindu e retornei budista, sem nunca ter deixado de ser cristão". Uma grande riqueza de significado jaz nessa afirmação. O cristianismo em sua evolução histórica começou como uma tradição judaica e depois se espalhou ao mundo greco-romano, adquirindo ao longo do caminho expressões culturais gregas e romanas que lhe deram uma certa forma e caráter.
Panikkar, tendo crescido e tendo se formado em um ambiente católico e neo-tomista tradicional, tinha um profundo conhecimento e respeito por essa tradição. Esse conhecimento o preparou para discussões com algumas das grandes mentes do catolicismo do século XX: Jean Daniélou, Yves Congar, Hans Urs von Balthazar e outros. Ele também foi convidado a participar do Sínodo de Roma e do Concílio Vaticano II. Mas Panikkar não confundiu ou misturou contingência histórica com verdade espiritual. No hinduísmo e no budismo, Panikkar encontrou outras linguagens, além do hebraico bíblico, da filosofia grega e do cristianismo latino, para expressar as convicções centrais (o kerigma) da tradição cristã.
Essa foi a tese principal de "O Cristo desconhecido do hinduísmo", que Panikkar apresentou originalmente como tese de doutoramento na Universidade Lateranense de Roma, em 1961, baseando-se na comparação textual estrita entre Tomás de Aquino e a interpretação do Sankara de uma escritura canônica hindu, o Brahma-Sutras. Cristo e seus ensinamentos não são, defende Panikkar, monopólio ou propriedade exclusiva do cristianismo visto como uma religião histórica. Pelo contrário, Cristo é o símbolo universal da unidade divino-humana, a face humana de Deus. O cristianismo se aproxima de Cristo de uma forma particular e única, informado pela sua própria história e evolução espiritual. Mas Cristo transcende amplamente o cristianismo. Panikkar chama o nome "Cristo" de o "Supernome", em consonância com o "nome acima de todo nome" de São Paulo (Fl 2, 9), porque é um nome que pode e deve assumir outros nomes, como Rama ou Krishna ou Ishvara.
Essa visão teológica foi crucial para Panikkar, porque ofereceu a base para o diálogo inter-religioso que ele e Abhishiktananda e Bede Griffiths defenderam e praticaram. Longe de diluir ou, de alguma forma, enfraquecer as crenças e práticas cristãs centrais, esse diálogo, além de promover o entendimento e a harmonia inter-religiosos, ofereceu um meio indispensável para o aprofundamento da fé cristã. Esse diálogo fornece uma visão e um ponto de entrada para outros nomes e manifestações não-cristãs de Cristo.
Isso foi particularmente importante para Panikkar, pois, juntamente com outros teólogos asiáticos, ele viu como o cristianismo histórico tentou, especialmente durante seus períodos coloniais, converter Cristo em um Deus imperial, com uma licença para conquistar e triunfar sobre os outros Deuses. Isso, para Panikkar, é o desafio do período pós-colonial, inaugurado no final do século XX e que continua em nosso presente e em nosso futuro.
Em suas palavras, "ao terceiro milênio cristão está reservada a tarefa de superar uma Cristologia tribal por um Cristofania que permita que os cristãos vejam a obra de Cristo em todos os lugares, sem assumir que eles têm uma melhor compreensão ou um monopólio desse Mistério, que lhes foi revelado de uma forma única".
É desnecessário dizer que tais ideias surpreendentes, cuidadosa e rigorosamente argumentadas e dramaticamente expressadas, chamaram a atenção dos pensadores religiosos e das instituições seculares de todo o mundo. Panikkar foi convidado a lecionar em Roma e depois em Harvard (1966-1971) e na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara (1971-1987). Ele era agora – como Leonard Swidler, cátedra de Pensamento Católico da Temple University, chamou-lhe – "o apóstolo do diálogo inter-religioso e do entendimento intercultural".
Conhecedor de uma dúzia de línguas ou mais e fluente em pelo menos seis, ele viajou incansavelmente ao redor do mundo, dando conferências, escrevendo, pregando e conduzindo retiros. Suas famosas celebrações de Páscoa em seus dias de Santa Barbara atraíam visitantes de todos os cantos do globo. Bem antes do amanhecer, eles subiam a montanha perto de sua casa em Montecito, meditavam em silêncio na escuridão assim que chegavam ao topo e, depois, saudavam o sol quando ele surgia no horizonte. Panikkar abençoava os elementos – ar, terra, água e fogo – e todas as formas de vida ao redor – vegetal, animal e humana – e depois celebrava a Missa e a Eucaristia. Era uma celebração "cosmoteândrica" profunda, com a afirmação, a reverência e a harmonização das dimensões da vida humana, cósmica e divina. A celebração, depois do ato formal, na casa de Panikkar se assemelhava, em alguns aspectos, à festa de Pentecostes, como descrita no Novo Testamento, em que os povos de muitas línguas se envolviam em animadas conversas.
No centro dessas celebrações, retiros e conferência, palestras, estavam o próprio Panikkar e sua personalidade impressionante. As pessoas que o ouviam ou se encontravam com ele não podiam deixar de se comover com esse homem fisicamente pequeno que tinha uma grande influência e que era capaz de combinar, em sua personalidade brilhante, a dignidade quieta de um sábio, a profundidade de um estudioso e de um contemplativo, e o calor e o charme de um amigo.
Não surpreendentemente, as universidades de todo o mundo, católicas e não católicas, convidavam-no para dar conferências. Apenas para mencionar alguns poucos exemplos dentre as centenas de palestras, ele foi convidado para ministrar a Conferência William Noble em Harvard, em 1973, a Conferência Thomas Merton na Universidade de Columbia, em 1982, e a Conferência Cardeal Bellarmino na Universidade de St. Louis, em 1991. O convite de maior prestígio, no entanto, veio da Universidade de Edimburgo, onde Panikkar ministrou as Conferências Gifford em 1989. Estas foram recentemente publicadas pela editora Orbis Books intituladas "The Rhythm of Being" [O ritmo do ser]. Panikkar, assim, se juntou ao seleto grupo de William James, Karl Barth, Albert Schweitzer, Reinhold Niebuhr, apenas para mencionar alguns dos mais famosos conferencistas Gifford. Ele foi, de fato, o primeiro indiano e o primeiro asiático convidado para dar essas conferências.
Alguns de outros livros mais conhecidos de Panikkar são "A experiência védica"; "O diálogo intrarreligioso"; "Mito, fé e hermenêutica"; "O silêncio de Deus"; "A experiência cosmoteândrica" e "A harmonia invisível". A editora Jaca Books, da Itália, está publicando suas obras reunidas ("Omnia Opera") em cerca de 30 volumes, e a editora Continuum Books, na Inglaterra e nos Estados Unidos, está planejando uma edição em inglês. Há também um site muito útil: www.raimonpanikkar.org.
A nossa era é uma nova era na história do mundo, na qual, graças à globalização e à crescente comunicação entre culturas e religiões, é vital que haja uma teologia católica das religiões bem desenvolvida. Panikkar foi um dos teólogos pioneiros e paradigmáticos dessa nova era. Ele nos deixou um legado rico e multifacetado, litúrgico e pastoral, teológico e sapiencial. Cabe a nós que o seguimos perceber, absorver e ampliar esse legado.
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Superar a cristologia tribal, o desafio proposto por Raimon Panikkar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU