26 Novembro 2019
"Esse caminho de construção do 'Reino em e com a Amazônia' faz a esperança, mas também produz temor pelo que isso poderia implicar. Há uma sensação de plenitude interna e um inusitado gozo por abraçar uma genuína liberdade frente ao que isso pode produzir", reflete Maurício López Oropeza, secretário executivo da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM, membro do Conselho Pré-Sinodal e auditor do Sínodo Pan-Amazônico, em seu primeiro artigo da série Itinerário interior de um navegante em travessia pelas águas movidas do rio Sinodal Amazônico, composta por reflexões sobre a experiência sinodal. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Poder literalmente dizer a Deus que o amamos,
não só com todo o nosso corpo, com todo o nosso coração,
com toda a nossa alma,
mas também com todo o Universo em vias de unificação,
Eis uma oração que só se pode fazer
no seio do Espaço-Tempo”
Pierre Teilhard de Chardin, em "O Fenômeno Humano".
Antes da Assembleia do Sínodo da Amazônia, carregado de profundas claridades em minha cabeça, porém cheio de intensas incertezas em meu coração, a força de Deus me deu no silêncio de meus Exercícios Espirituais (julho de 2019) a moção ou chamado desde o profundo a empreender uma “Navegação de 40 dias pela Boa Nova de Deus para o Sínodo Amazônico”. Esse percurso foi uma absoluta graça pessoal (e tem sido muito esperançoso saber que foi também para muitas pessoas em tantos e diversos lugares) mediante o qual pude buscar e encontrar a serenidade, o discernimento e a coragem necessários para escutar a voz mais importante, a do Deus vivo e presente nos rostos concretos da Amazônia, e levá-la à Assembleia Sinodal. Essa voz falou a todos nós participantes do Sínodo, ao menos aos que tinham um coração livre e aberto, para descobri-lo nas imprescindíveis vozes dos povos, comunidades e missionários que se encarnam dia a dia na Amazônia, e desde as quais, pessoalmente, pude encontrar o sentido em meio a tanto movimento. Dessa voz de Deus me veio a coragem para me sustentar frente às águas tão agitadas como as do processo Sinodal. Essas águas desde as quais o próprio Jesus nos chama a não ter medo e a confiar n'Ele, como fez com seus seguidores mais próximos no meio da tempestade.
Hoje, algumas semanas depois da Assembleia do Sínodo Pan-Amazônico, a pergunta que mais forte ressoa dentro de mim e persegue meu ser não é “o que seguir agora e como teremos de abordá-lo?”, mas sim, “se já não sou o mesmo de um par de meses atrás quando a Assembleia começava, e tampouco sou quem fui dois anos atrás quando começamos esse processo de preparação, escuta e de rota compartilhada, quem sou eu hoje?". Por meio da navegação, me faço consciente sobre como esse processo me transformou por dentro e de forma definitiva e indubitavelmente.
E, no mesmo sentido dos "40 dias navegando pelo rio" em preparação rumo ao Sínodo, hoje quero compartilhar uma série de reflexões que também querem ser intuições de uma rota pessoal rumo à Páscoa, isto é, para um certo modo de vida nova e que são, sobretudo, isto: movimentos internos (carregados de uma mistura impossível de dúvidas e certezas) à luz da experiência pessoal e minha vivência sinodal comunitária. Eles buscam, por um lado, tirar-me de dentro disso que queima no interior e que não sei onde colocar ou como acomodar, e por outro, dar conta do vivido, não a partir das tantas leituras sapienciais, estruturais, morais ou programáticas que estão abundando sobre o Sínodo hoje em dia, mas sim pelas ininterruptas sacudidas internas que experimentei nessa experiência inédita. Uma experiência inédita para a Igreja, por seu modo, tom, composição, preparação e frutos, porém evidentemente inédita para mim e tantos mais que adentramos nessas águas, sabendo suficientemente bem de onde vínhamos, porém desconhecendo o ponto de chegada, ou se inclusive, chegaríamos a vê-lo.
Essa é uma experiência bonita, que faz nos sentirmos totalmente limitados, indefesos e pequenos, portanto nos recorda nossa profunda fragilidade como criaturas que põem suas vidas como meios. Porém também, na bonita lógica de Deus, é uma experiência que nos faz saber parte de um plano maior, do qual somos partículas imprescindíveis, que fazem parte da rota para a Cristogênese e do definitivo, ainda que imperceptível e incomensurável, a ascensão da consciência para uma unidade maior. Por isso, a frase do grande Teilhard de Chardin, ao início desse artigo, e de cada uma das reflexões dessa série.
Em agosto de 2017, antes inclusive de que o Papa anunciasse e convocasse oficialmente o Sínodo Amazônico (o fez em outubro deste mesmo 2017), já na Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM tínhamos muitos elementos para imaginar que o papa Francisco faria tal anúncio, e ainda que não tínhamos certeza alguma sobre quando e com que tema exato, o coração e todo nosso interior começava a imaginar, sonhar e perfilar o que esse anúncio poderia significar.
Estávamos na expectativa, nesse gozo de saber que algo novo estava a caminho e teríamos o privilégio e responsabilidade de ser parte disso. Nesse agosto de 2017, em meus Exercícios Espirituais começavam a se mover já muitas fibras, e os impulsos internos iam também perfilando tudo em mim para esperar esse chamado. Aqui compartilho as primeiras intuições nesse sentido:
Frente às maravilhas da Amazônia e de seus povos, e o caminho andado como REPAM, reconheço que somos pequenas gotas d'água que resultam do milagroso ciclo vital da condensação de elementos livres que se integram pouco a pouco, superando distâncias e diferenças de origem e dimensão, porém que de maneira misteriosa em sua existência física podemos abraçar e atestar desde a lógica do Deus criador que produz essa possibilidade de síntese que também nos representa, já que somos também como ínfimas gotas d'água nesse caminho a serviço da Amazônia. Se há de acontecer um Sínodo Pan-Amazônico, pedimos intensamente que sejamos como essas águas dispersas que sob tua lógica vão se integrando pouco a pouco para fazer sentido de nossa limitada e pequena existência com a qual possamos tecer a parte que nos toca no gesto do advento de uma humanidade nova: o Reino.
Senhor, que no permanente e incomensurável mistério do movimento de Tua presença em tudo criado nessa Amazônia, faz com que a convergência seja possível. Uma convergência do diverso que dê como resultado a avassaladora força libertadora, descomunal e imparável de um rio de vida que somente podemos compreender ao tirarmos as sandálias ante à terra e águas sagradas da Amazônia que relatam tua presença e beleza. Ali, no Cristo presente nos rostos concretos, em sua diversidade cultural, em sua espiritualidade, e no permanente processo de evolução que reflete um caminho de libertação nesse kairós do Reino, que vai se gestando em tudo e em todos, sem que nada, nem ninguém possa o parar. Deus é o amor descomunal que liberta e transcende tudo.
Esse caminho de construção do Reino "em e com a Amazônia" faz a esperança, mas também produz temor pelo que isso poderia implicar. Há uma sensação de plenitude interna e um inusitado gozo por abraçar uma genuína liberdade frente ao que isso pode produzir. Junto com isso deve morrer esse meu desejo de ser afirmado por outros, pois isso me ata e me impossibilita de ir mais além de mim. Que a força da Parrésia nos encha da tua convicção profética, e nisso peço a Graça de querer, desejar e pedir, ainda que com medo e temor, ela nos coloque em tuas mãos nesse serviço. Que saiba colocar-me nos braços e sob o amparo de tantos e tantas mártires da Amazônia, os conhecidos e os desconhecidos; para que os imitemos, não desde a perspectiva do martírio por si mesmo, porque isso é uma graça, porém sim, na profunda e fervente experiência de entrega sem negociar os próprios termos. Colocarmo-nos de verdade à intempérie pelo teu projeto, e sermos provados até as mais inesperadas consequências. E ainda que trema a minha mão somente de escrevê-lo o peço com firme convicção de desejar estar à altura do Teu chamado.
A REPAM é ponte e lugar de encontro, quer ser fiel ao seu processo eclesial de entrega generosa e resposta em comunhão “parrésica” ante os sinais dos tempos, e há de ser capaz de responder aos graves, sistemáticos e impunes sinais de morte violenta e cotidiana que se produzem pela avareza sobre esse belo, contraditório e frágil lugar que mostra Deus através de toda a Amazônia e seus povos.
Se o Sínodo esperado ocorrer, que seja uma verdadeira ocasião para estar do lado daqueles que sempre foram excluídos e postergados, seja um momento de opção ao projeto do reino, à luz do Concílio Vaticano II e suas reformas ainda pendentes, e ao lado do papa Francisco e seu itinerário de alegria, reforma e conversão. Que possamos experimentá-lo como um verdadeiro "sentir com a Igreja", e ao mesmo tempo que todos nós reconhecemos como seres de passagem por esse caminho. Nós somos meio, o Sínodo tem que ser um meio. O único objetivo é a vida plena do território e de seus povos; o objetivo final é o Reino da maneira que Jesus nos ensinou.
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Reflexões e lutas internas depois do Sínodo Pan-Amazônico. Artigo de Maurício López - Instituto Humanitas Unisinos - IHU