O que se vive hoje nas universidades brasileiras pode ser classificado como “uma marcha a ré para antes do século XVII, um boicote direto às Luzes do século XVIII”, diz o filósofo Roberto Romano à IHU On-Line ao resumir o atual estado das universidades no país, que atuam sem autonomia e reproduzem a lógica de operação do Executivo.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o professor da Unicamp afirma que o programa Future-se não traz novidades para as universidades. “A ‘novidade’ é velha”: sempre o programa de privatizar o mais possível nos campos da pesquisa e do ensino levando as universidades públicas a buscar financiamentos que definam o seu espectro de investigação, pedagogia etc. Com a privatização claríssima no Future-se, ocorre um golpe mortal na autonomia universitária. Os seus planos, doravante, não serão definidos interna corporis ou pelo governo. Eles serão fornecidos pelo mercado de ações. É o fim de toda pesquisa livre”, lamenta. Ele adverte ainda que “a receita para as boas gestões universitárias, se desligada do espírito acadêmico, gera apenas burocracia, repressão intelectual contra os pesquisadores”.
Na avaliação de Romano, “as universidades confessionais e comunitárias serão conduzidas, como as públicas, ao plano do mercado e dos serviços pagos. Elas serão produtoras de dividendos para acionistas e não geradoras de ideias, como era o caso das PUCs, Metodistas, presbiterianas no passado recente”. E adverte: “Engana-se quem, nas universidades comunitárias, imagina que elas poderão resistir ao mercado onipotente”.
Roberto Romano (Foto: Ricardo Machado | IHU)
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
IHU On-Line - Pode nos contar sobre a história das universidades: qual sua origem, por que, como e para que elas foram criadas?
Roberto Romano - Algumas das primeiras universidades, como a de Bolonha, surgiram para ajudar corporações nas tarefas ligadas à contabilização, direitos, formas de relacionamento entre autoridades, dos bispos ao papa, dele aos municípios. A universidade de Bolonha teve autonomia desde o início porque servia a corporação dos advogados, sempre em luta contra os vários poderes que restaram do feudalismo anterior à centralização monárquica. Gradativamente elas incorporam, além do estudo teológico, a medicina. Disciplinas como a filosofia eram próximas das questões enfrentadas pela fé cristã frente a seus adversários muçulmanos. Instaladas nas urbes, as universidades atraíam grande quantidade de pessoas pobres que, a exemplo de seus pais, fugiam do guante feudal. Ao chegar nas cidades aquelas pessoas se instalavam nas periferias onde, com os não admitidos nas corporações (estas eram fechadas aos antigos participantes ou parentes), formavam massas temidas pelos burgueses e aristocratas. Como os restos de feudalismo existiam pela Europa inteira, os candidatos aos poucos empregos urbanos e à universidade vinham de toda parte. A experiência das viagens se integrou assim, desde o início na vida universitária. As universidades eram praticamente as únicas corporações abertas a todos. Estudantes e mestres se reuniam para o estudo, a discussão, o exame de autores conhecidos. Havia uma prática de emergente democracia na escolha dos dirigentes. Os reitores recebiam mandatos de seis meses ou pouco mais. Como a maior parte dos estudantes vinha do campo e nele, diziam os citadinos, seria possível discutir se os camponeses (como as mulheres) eram seres humanos perfeitos, surge a prática do trote: “os bichos”, ao passar pelos trotes, deles saíam como pessoas. Jacques Le Goff [1] (18 Ensaios sobre a Idade Média) tem preciosas achegas sobre os costumes acadêmicos da universidade nascente.
Com o crescimento do aparato burocrático e centralizador da Igreja e das monarquias, as universidades passam a fornecer técnicos de governo (a expressão é de I. Kant [2], no Conflito das Faculdades) aos bispos, papas, reis. Recebem muita atenção os advogados e contadores, médicos e formados no direito canônico e romano. Além, claro, dos teólogos que sustentam as teses conflitantes no interior da Igreja e nas lutas clericais contra os reis. Gradativamente as despesas de manutenção institucional são assumidas pela Igreja e pelos monarcas. Tal dispêndio exige da universidade uma diminuição da liberdade na pesquisa, nos debates, na administração dos campi. Se estabelece uma concorrência entre reis, papas e demais poderes para arrebanhar em determinados centros universitários o maior número de professores famosos, alunos talentosos etc. Muita correspondência foi empregada por mandatários para conduzir aqueles cérebros às universidades de seu país. O rei da Inglaterra, por exemplo, escreveu aos professores na França oferecendo liberdades, salários, condição estável, respeito. No mesmo passo em que os Estados definiam suas fronteiras e funções, as universidades diminuem o número de seus aderentes vindos de todos os cantos. Mesmo assim, ainda no século VXII, época de ouro da Raison d’état, a procura de talentos vindos de toda a Europa é intensa. Surgem universidades em quase todas as terras e, com elas, a necessidade de “mão de obra” adequada. É assim que podemos recordar o convite do Palatino a Spinoza [3], para ensinar em Heidelberg. O governante garante que o filósofo terá toda liberdade de pesquisa e ensino, desde que não toque em problemas eclesiásticos. A resposta de Spinoza é célebre: “ignoro limites para minha capacidade de filosofar”.
A transformação das universidades em fábricas de técnicos de governo foi rápida. Le Goff lembra que o reitor Gerson já define um programa de proteção da propriedade privada e apoio ao poder secular ou religioso. Pouco importam a legitimidade e o direito, disse Gerson, “desde que os donos das galinhas durmam sossegados”. E temos a trilha que conduziu ao papel mais triste da universidade: o de instrumento de repressão ao pensamento livre. As faculdades, sobretudo a de Teologia, se transformam, ainda na escrita de Le Goff, na “corporação dos queimadores de livros”. À espera, claro, de que os autores dos livros fossem queimados. Praticamente toda a inteligência europeia dos séculos XVII e XVIII produziu obras essenciais para a ciência e as humanidades fora dos campi. Nomes como Leibniz [4], Pascal [5], Descartes [6], Spinoza, e tantos outros, ou foram perseguidos ou ignorados pela universidade. Mesmo intelectuais que exerceram cargos políticos importantes, como Francis Bacon [7], perderam a luta contra o conservadorismo teórico e de costumes existente em Oxford e Cambridge. E assim chegamos às fortíssimas críticas das Luzes ao ensino universitário. Claro, desde longa data os humanistas europeus castigavam o pedantismo, o dogmatismo, a cegueira acadêmica. Quando lemos as invectivas de Rabelais contra a Sorbonne, sentimos o clima de intolerância e reacionarismo da corporação antes aberta a todos, agora um castelo de privilegiados pelos reis ou papas ou burguesia rica. É em tal clima que surgem textos satíricos e lúcidos como os de Kant (sobretudo o já citado Conflito das Faculdades), os escritos dos Enciclopedistas, em particular o Plano de Uma Universidade para a Rússia, de Diderot [8].
Naquele texto o pensador imagina a universidade como instituição onde a maioria dos saberes seriam cultivados. É conhecida a sua tese: se a tarefa de elaborar um plano de estudos coubesse a especialistas, eles jamais chegariam a um ensino universal. Assim, o teólogo faria tudo convergir para o plano religioso, o matemático faria o mesmo, levando tudo às matemáticas, o direito etc. Ele propõe um sistema que englobaria, segundo graus de complexidade, todos os saberes e técnicas praticadas socialmente. Como Descartes, Diderot só escrevia sobre as técnicas unindo o saber científico de seu tempo e as técnicas empregadas pelos artesãos. Recusando toda hierarquia entre os saberes (as “Faculdades Superiores de Teologia, Direito, Medicina e abaixo as demais disciplinas) ele abriu o campo para um espraiamento horizontal do conhecimento, quase copiando o plano de estudos para restaurar as ciências proposto por Francis Bacon. O mais relevante, do ponto de vista político e social, é ter ele proposto que a universidade não deveria ser privilégio dos ricos, nobres, clérigos. Ela deveria acolher, sem custos, os pobres. “Segundo as probabilidades”, dizia ele, “é mais fácil encontrar mais gênios em choupanas do que em castelos”.
Como vemos, o que é vivido hoje no Brasil representa uma marcha a ré para antes do século XVII, um boicote direto às Luzes do século XVIII. No século XIX as universidades exercem um papel contraditório: elas formavam burocratas civis e religiosos e ao mesmo tempo pensadores que modificaram a cultura. É assim que tivemos planos de universidade escritos por Fichte [9], Hegel [10], Schelling [11], Humboldt [12]. Este último insistiu na divisão drástica: o ensino era para ser feito nas universidades, a pesquisa nos institutos especializados. Desde então temos um desconforto no interior dos campi: a exigência de manter ao mesmo tempo o ensino, a pesquisa e a extensão nem sempre trouxe bons resultados. Mas ainda resta o ideal próximo ao de Bacon e Diderot: a universidade como ponto de encontro de todos os saberes praticados pela humanidade. E com preferência dedicada aos mais pobres, com ingresso gratuito.
IHU On-Line - Pode nos contar um pouco sobre a história das universidades brasileiras: como, em que contexto e com quais projetos surgiram as universidades públicas no país?
Roberto Romano - Não tivemos universidades no período colonial e também não as possuíamos após a Independência. Existiram centros de ensino superior na Igreja (a cargo de eclesiásticos especializados em teologia e direito canônico) e leigos (Faculdades de Direito, Medicina). Boa parte da elite brasileira estudava na Europa, em Portugal e demais países como a França, a Alemanha etc. Parece anedota, mas a Universidade do Brasil foi instaurada para conceder um título acadêmico ao rei da Bélgica que visitaria o país. No debate sobre as possíveis universidades se enfrentaram a Igreja e os líderes positivistas e liberais. Os segundos eram contra a Universidade porque temiam a primeira. Eles consideravam perigoso colocar o ensino superior nas mãos de uma instituição eclesiástica “atrasada”, não própria ao mundo moderno. Assim, os positivistas foram opostos à criação de universidades e favoráveis ao ensino científico e técnico. As tensões se prolongaram, em outros patamares, durante a ditadura Vargas. Defensores do ensino laico se defrontaram com os que lutavam pelas teses eclesiásticas. Podemos dizer que algumas figuras foram icônicas no período: Alceu Amoroso Lima [13], católico que operou durante muito tempo no Ministério da Educação definindo os curricula, sobretudo no campo das humanidades, e Gustavo Capanema [14] e seus aliados, que tentaram outras vias diferentes da religiosa para os campi. As Pontifícias Universidades Católicas foram instauradas no mesmo movimento da pastoral mais ampla, que na época definia o Brasil como “país de missão”.
A primeira universidade efetivamente laica surge com a USP, na luta entre o Estado de São Paulo, vencido na Revolução Constitucionalista contra o poder central. O lema da USP (“A ciência vence”) era um recado sutil aos donos do mando federativo: com a ciência seria possível atingir os alvos dos insurgentes de 32. A missão francesa ajudou a formar o plano de pesquisas e de ensino na USP, o que deu a ela um caráter clássico e ao mesmo tempo contemporâneo. Uma rede de institutos isolados no Estado de São Paulo mudou a face das cidades e regiões paulistas, ajudando a aprimorar procedimentos industriais, agrícolas e científicos. Com a implantação da Unesp, tais institutos formam um plano coerente, o que veio ajudar ainda mais o desenvolvimento econômico e social do interior paulista. A Unicamp veio encerrar o ciclo de saberes e intervenção na vida mais ampla do interior. Juntas, as três universidades paulistas trazem riquezas ao país, em troca de um financiamento do Estado que se baseia em parcela do ICMS. Patentes em grande quantidade evidenciam o quanto as três instituições são estratégicas em termos regionais, nacionais, internacionais.
A Universidade de Brasília, resultado de um plano de país independente e soberano, moderna em todos os sentidos, foi duramente atingida pela ditadura implantada em 1964. Aliás, as universidades paulistas também sofreram com a repressão definida no regime autoritário. As Universidades federais se mantiveram em número estável até o governo de Luiz Inácio da Silva, quando vários campi foram implantados em todas as regiões.
Há um aspecto perverso nas relações entre as universidades públicas e os níveis inferiores de ensino. Até 1965 o padrão do ensino médio brasileiro era dos mais elevados da América do Sul. Mas ele não era aberto para grandes massas. Com a ditadura, as escolas oficiais de ensino médio passaram a receber contingentes sempre maiores de alunos, o que impossibilitou manter o nível elevado do ensino anterior. Ao mesmo tempo, as universidades públicas continuaram com seu público restrito a determinadas classes sociais, mais próximas da classe média abastada. Assim, as escolas de ensino médio oficiais não ofereciam uma formação própria para fazer seus egressos serem aprovados nos vestibulares. Criou-se então a primeira rede nacional de ensino privado, cujos lucros foram imensos para seus proprietários. Trata-se dos “cursinhos para o vestibular”. A sua propaganda especial era a que colocava em cartazes, no rádio e na TV, os que conseguiram entrar para as públicas, tendo cursado as escolas especializadas em vestibular. Caras, tais instituições privadas serviam como gargalo de entrada aos campi oficiais. Gradativamente aquelas escolas passaram a formar “universidades” que passaram a acolher estudantes com menores recursos. A qualidade do ensino e a carreira docente naqueles centros constituem fatos lastimáveis.
Nos governos Luiz Inácio e Dilma, como continuidade do governo FHC, surgem programas de financiamento de estudos em escolas privadas de ensino superior. Embora tenham ajudado muitos estudantes a obter uma qualificação superior, tais programas ajudaram de fato a solidificar financeiramente os proprietários das “universidades” privadas. Empresas como a Kroton passaram a oferecer ações na bolsa, comprar escolas, enfim, definiram um padrão capitalista e rentista para o suposto ensino superior. No mesmo passo as universidades públicas iniciam programas de cotas para estudantes advindos do ensino médio oficial, pobres, negros, indígenas. Quando tais programas estavam apresentando seus primeiros frutos houve o golpe contra o governo Dilma. A partir daí se inicia o desmonte das universidades públicas, os ataques às políticas de cotas, o desmantelamento grave do incentivo à pesquisa. O Brain Drain se acelera e sua rapidez permite prever um esvaziamento dos laboratórios brasileiros. Como se pode notar, o horizonte para as universidades oficiais brasileiras não é róseo. Pelo contrário, a ameaça da sua privatização é a cada instante mais patente. Um clima de caça às bruxas se instalou com o governo Bolsonaro e pode-se dizer que a política governamental de hoje se enquadra perfeitamente no termo cunhado por Platão, milênios atrás: temos um poder misólogo, inimigo da pesquisa e do ensino públicos. As escolas “superiores” de ensino privado, nacionais ou estrangeiras, vão bem, obrigado!
IHU On-Line - Qual sua avaliação do programa recém-lançado pelo MEC, o Future-se? Que novidade ele traz às universidades públicas em relação ao modo como elas já atuam hoje?
Roberto Romano - A “novidade” é velha: sempre o programa de privatizar o mais possível nos campos da pesquisa e do ensino levando as universidades públicas a buscar financiamentos que definam o seu espectro de investigação, pedagogia etc. Com a privatização claríssima no Future-se, ocorre um golpe mortal na autonomia universitária. Os seus planos, doravante, não serão definidos interna corporis ou pelo governo. Eles serão fornecidos pelo mercado de ações. É o fim de toda pesquisa livre.
IHU On-Line - Como o programa possivelmente vai impactar as universidades privadas, especialmente aquelas com fins públicos, como as confessionais e comunitárias?
Roberto Romano - As universidades confessionais e comunitárias serão conduzidas, como as públicas, ao plano do mercado e dos serviços pagos. Elas serão produtoras de dividendos para acionistas e não geradoras de ideias, como era o caso das PUCs, Metodistas, presbiterianas no passado recente. Engana-se quem, nas universidades comunitárias, imagina que elas poderão resistir ao mercado onipotente.
IHU On-Line - Numa entrevista que o senhor concedeu a Caros Amigos em 1999, fez referência à seguinte frase: “as universidades de hoje estão se transformando no seguinte: a pessoa mais importante é o gerente de recursos, e os professores todos são globetrotters que vão vender o logotipo pelo mundo afora”. Qual é o peso que as universidades têm dado à gestão e ao seu quadro de professores e qual é a atualidade desta declaração hoje, 20 anos depois?
Roberto Romano - Infelizmente, tal ideia que retirei de Bill Readings (The University in Ruins) é uma profecia que se cumpriu. A receita para as boas gestões universitárias, se desligada do espírito acadêmico, gera apenas burocracia, repressão intelectual contra os pesquisadores. Aliás, nada que não tenha sido anunciado por Max Weber [15] no importante texto intitulado Ciência como Vocação (Wissenschaft als Beruf, 1922). Um discurso weberiano a ser lido e meditado com afinco.
IHU On-Line - Os defensores das universidades mencionam a necessidade de elas assegurarem a sua autonomia, mas há anos o senhor critica a falta de autonomia das universidades. Por que as universidades não são autônomas, na sua avaliação? O que caracterizaria uma universidade autônoma?
Roberto Romano - A Constituição de 88 é um documento heteróclito em termos lógicos e doutrinários. Nela se apresentam formas jurídicas diferentes e não raro conflitantes, como a que defende o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito. No primeiro caso, temos a defesa absoluta da propriedade. No segundo, a tese de que a propriedade deve atentar para o fim social. Esta é apenas uma das inúmeras divergências subliminares, acomodadas num texto aparentemente coeso. Some-se as emendas que desfiguram até mesmo o escrito inicial, e podemos dizer que a Constituição do Brasil tem manipuladores que a adaptam aos mais diversos interesses. A justiça, sobretudo no STF, suposto “defensor da Constituição”, apenas piora o cenário. Mas uma noção que definiu a Carta Magna, sobretudo para prevenir males trazidos pelos regimes ditatoriais do século XX (Vargas e o poder de 1964), colocou como pilar a doutrina da autonomia. Este ponto é sempre relativo, pois estamos no Brasil, pátria do centralismo. Autonomia dos entes federados, das instituições (o Ministério Público se beneficiou muito e infelizmente tem usado sua autonomia como instrumento de poder e de intimidação) e a autonomia universitária.
Ocorre que a autonomia universitária não recebeu regulamentação legal até hoje. Mesmo as universidades públicas paulistas não tiveram tal regulamentação. Sua autonomia financeira está perenemente ameaçada devido a tal fato. Agora mesmo a Assembleia Legislativa de São Paulo segue uma CPI cujo alvo, além de arrancar recursos das universidades, ruma para a privatização das mesmas. A não regulamentação tem vários motivos. Um deles é o trato dos reitores com o “poder” federal. Em vez de exigir regras e leis para as universidades, boa parte dos magníficos preferiram “fazer política” com o Ministério da Educação, oferecendo apoio regional aos donos do mando em Brasília. Tal “realismo” levou a adiar indefinidamente a autonomia legal das universidades. Elas ainda dependem em quase tudo das ordens ministeriais. E os governos de Temer e o atual não têm interesse em ‘negociar” apoio com reitores. O realismo, como sempre, trouxe péssimos frutos. Os movimentos docentes também deixaram de lado a questão. Eles priorizaram as reivindicações salariais, os andamentos de política interna dos campi, sem focar esforços junto a parlamentares e governantes tendo em vista a necessária regulamentação legal da autonomia. Outras causas existem, mas seria demasiado longo nos deter nelas.
IHU On-Line - Nesta mesma entrevista a Caros Amigos, o senhor disse que “a universidade mimetiza, de maneira perversa até, porque ela é uma espécie de parasita, mimetiza a estrutura de poder do Estado” e tem a mesma relação fisiológica de poder que se observa nas instâncias do Estado. Pode explicar essa ideia?
Roberto Romano - As instituições políticas brasileiras surgem no âmbito da reação termidoriana [16] contra os pressupostos e práticas da Revolução Francesa. Com Termidor e, sobretudo com Napoleão, o modelo do equilíbrio dos poderes, atribuído a Montesquieu [17] erroneamente, visto ter sido idealizado já por Platão, perde o passo para a hegemonia do Executivo. Os demais poderes, se é possível usar o termo, são tutelados pelo Executivo. Tal versão conflita com as formas europeias como as usadas na Inglaterra, nas quais o Executivo é posto e demitido pelos Parlamentos. Tudo em nosso modelo segue o rumo do Executivo. Este último, um gigante de pés de barro, visto que tem poderes desmesurados mas precisa do aval parlamentar e da proteção judicial, se estabelece numa burocracia que assume todas as iniciativas. A maioria das políticas públicas brasileiras é prerrogativa do Executivo. O Parlamento e a Justiça devem ser cooptados sempre, mas não têm o poder de iniciativa. As universidades, infelizmente, seguem o padrão. Valorizados nelas são os gabinetes reitorais e não tanto os Conselhos, as Comissões etc. E é assim que os reitores das universidades federais, como disse antes, assumem uma atitude política de “negociar” apoio dos ministérios. Casos são mais do que conhecidos. A Universidade da Paraíba, ainda hoje um excelente centro, na época ditatorial tinha um reitor que “se dava bem” com o ministério. As verbas fluíam sem problemas. Passou a ditadura, escassearam os recursos federais e outros caminhos precisaram ser tomados. O modelo geral de administração praticado no Brasil é o predomínio do Executivo. E as universidades o seguem.
IHU On-Line - Uma questão polêmica nas universidades são as métricas avaliativas da aprendizagem: alguns pesquisadores avaliam que essas métricas não dão conta de avaliar o saber e outros afirmam que ela é necessária para avaliar o nível de aprendizado dos alunos. O que o senhor pensa sobre as métricas?
Roberto Romano - Integrei durante anos a Comissão de Avaliação da Unicamp, na qual os relatórios, os pedidos de promoção e outros quesitos eram analisados. O primeiro ponto que noto é a diversidade dos saberes. Seria possível usar o mesmo metron na avaliação de setores díspares como a engenharia, a física, a educação, a química, a biologia etc? Passado este ponto, os números de fato refletem a qualidade e a quantidade certa dos trabalhos de investigação, docência etc? Noto que surgiu uma polêmica que no meu entender é sem sentido. Refiro-me à guerra entre qualidade e quantidade. Aqui também é preciso encontrar a medida correta e justa. Setores das ciências exatas e médicas costumam publicar artigos e livros coletivamente. Já no campo das ciências humanas a prática é diversa, mais raros os livros e artigos coletivos. Certa feita o relatório de um professor de filosofia quase foi recusado, porque ele teria a publicação de um livro e dois artigos em um ano. Foi difícil explicar que na filosofia e nas ciências sociais um livro por ano demanda trabalho sério e disciplinado e que um filósofo ou sociólogo que publica dez livros e 20 artigos num só ano apresenta sérios problemas de rigor. Como sempre, no caso das avaliações, guio-me pela filosofia da prudência: nada demais! Nem muito resultado nem resultado algum. O problema da medida é um dos mais importantes nas ciências e na ética, ele não se resolve apenas em termos técnicos, mas exige a virtude da prudência, algo muito difícil de ser exercitado coletivamente.
IHU On-Line - Como o senhor vê a preocupação das universidades com os “cursos voltados para o mercado”?
Roberto Romano - O professor Roberto Macedo, economista, tem um texto intitulado “Faça de seu diploma uma prancha de surf”. Nele, se critica a tendência de especializar demasiadamente o ensino universitário. O professor argumenta que muitas tarefas, no aparelho de Estado e nas firmas privadas, são cumpridas por pessoas que, oficialmente, não poderiam desenvolver ações. Assim, um engenheiro poderia empregar saberes que deveriam ser praticados por um economista, advogado etc. Ele propõe que os campi instaurem ou reinstaurem um setor mais amplo de ensino, inicial, para depois encaminhar os estudantes para suas especializações ou tarefas de mercado. Acho uma boa sugestão a do professor Macedo.
IHU On-Line - Recentemente foi publicada uma pesquisa segundo a qual um terço dos brasileiros desconfiam da ciência. Como o senhor interpreta esse dado? Isso é um sintoma da crise das universidades também?
Roberto Romano - É a colheita de uma prática das elites e de boa parte dos intelectuais brasileiros, cuja preocupação é o lucro em detrimento da sociedade. Só no fim de um processo razoavelmente democrático foi estabelecido um trato mais responsável com a educação pública. Infelizmente o referido trato se esgotou com o novo governo obscurantista, aliás eleito por massas alheias e contrárias à vida intelectual. O anti-intelectualismo brasileiro se instalou em setores à direita. Mas há grande número de inimigos do intelecto nas chamadas esquerdas. E a cultura brasileira, pelo menos desde Vargas, vive de novelas de rádio e TV. A população foi amestrada pelos dramas melosos e repetitivos, o que impediu o exercício da imaginação e a prática da agudez mental. Os grupos supostamente evangélicos, mas na verdade oportunistas e retrógrados, pioram a receita. Retornamos aos anos 30 quando nos EUA a teoria da evolução era combatida a ferros por pastores milagreiros e venais. Chegamos à época em que o grito das Luzes faz todo sentido: “Esmagai a Infame!”. É triste, mas é assim.
IHU On-Line - Que futuro vislumbra para as universidades brasileiras?
Roberto Romano - Com o andar da carruagem do mercado e do obscurantismo e com o denominado “terrorismo cultural” (Tristão de Athayde) redivivo, não vejo futuro algum para a universidade. Perdoem as Polianas, o nosso caso está mais para Cassandra. Sem mais nem menos.
[1] Jacques Le Goff (1924): medievalista francês, formado em história e membro da Escola dos Annales. Presidente, de 1972 a 1977, da VI Seção da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), foi diretor de pesquisa no grupo de antropologia histórica do Ocidente medieval dessa mesma instituição. Entre outras altas distinções, Le Goff recebeu a medalha de ouro do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), pela primeira vez atribuída a um historiador. (Nota da IHU On-Line)
[2] Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século 19, as quais se tornaram um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-3-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética. Também sobre Kant, foi publicado o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética. Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios. (Nota da IHU On-Line)
[3] Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632–1677): filósofo holandês. Sua filosofia é considerada uma resposta ao dualismo da filosofia de Descartes. Foi considerado um dos grandes racionalistas do século 17 dentro da Filosofia Moderna e o fundador do criticismo bíblico moderno. Confira a edição 397 da IHU On-Line, de 6-8-2012, intitulada Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamento. (Nota da IHU On-Line)
[4] Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716): filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão. O uso de "função" como um termo matemático foi iniciado por Leibniz, numa carta de 1694, para designar uma quantidade relacionada a uma curva, tal como a sua inclinação em um ponto específico. É creditado a Leibniz e a Newton o desenvolvimento do cálculo moderno, em particular o desenvolvimento da integral e da regra do produto. Descreveu o primeiro sistema de numeração binário moderno (1705), tal como o sistema numérico binário utilizado nos dias de hoje. Demonstrou genialidade também nos campos da lei, religião, política, história, literatura, lógica, metafísica e filosofia. (Nota da IHU On-Line)
[5] Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, físico e matemático francês que criou uma das afirmações mais repetidas pela humanidade nos séculos posteriores (O coração tem razões que a própria razão desconhece), síntese de sua doutrina filosófica – o raciocínio lógico e a emoção. (Nota da IHU On-Line)
[6] René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e matemático francês. Notabilizou-se sobretudo pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do cálculo moderno. Descartes, por vezes chamado o fundador da filosofia e da matemática modernas, inspirou os seus contemporâneos e gerações de filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ele iniciou a formação daquilo a que hoje se chama de racionalismo continental (supostamente em oposição à escola que predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), posição filosófica dos séculos 17 e 18 na Europa. (Nota da IHU On-Line)
[7] Francis Bacon (1561-1626): político, filósofo, ensaísta inglês, barão de Verulam e visconde de Saint Alban. É considerado como o fundador da ciência moderna. Desde cedo, sua educação orientou-o para a vida política, na qual exerceu posições elevadas. Em 1584 foi eleito para a câmara dos comuns. Sucessivamente, durante o reinado de Jaime I, desempenhou as funções de procurador-geral (1607), fiscal-geral (1613), guarda do selo (1617) e grande chanceler (1618). Como filósofo, destacou-se com uma obra onde a ciência era exaltada como benéfica para o homem: o Novum Organum. (Nota da IHU On-Line)
[8] Denis Diderot (1713-1784): filósofo e escritor francês. A primeira peça importante da sua carreira literária é Lettres sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient, em que resume a evolução do seu pensamento desde o deísmo até ao cepticismo e o materialismo ateu, o que o leva à prisão. Mas a obra da sua vida é a edição da Encyclopédie (1750-1772), que leva a cabo com empenho e entusiasmo apesar de alguma oposição da Igreja Católica e dos poderes estabelecidos. (Nota da IHU On-Line)
[9] Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): filósofo alemão. Exerceu forte influência sobre os representantes do nacionalismo alemão, assim como sobre as teorias filosóficas de Schelling, Hegel e Schopenhauer. Fichte decidiu devotar sua vida à filosofia depois de ler as três Críticas de Immanuel Kant, publicadas em 1781, 1788 e 1790. Sua investigação obteve a aprovação de Kant, que pediu a seu próprio editor que publicasse o manuscrito. O livro surgiu em 1792, sem o nome e o prefácio do autor, e foi saudado amplamente como uma nova obra de Kant. Quando Kant esclareceu o equívoco, Fichte tornou-se famoso do dia para a noite e foi convidado a lecionar na Universidade de Jena. Fichte foi um conferencista popular, mas suas obras teóricas são difíceis. Acusado de ateísmo, perdeu o emprego e mudou-se para Berlim. Seus Discursos à nação alemã são sua obra mais conhecida. (Nota da IHU On-Line)
[10] Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, desenvolveu um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições de seus principais predecessores. Sobre Hegel, confira a edição 217 da IHU On-Line, de 30-4-2007, intitulada Fenomenologia do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel 1807-2007, em comemoração aos 200 anos de lançamento dessa obra. Veja ainda a edição 261, de 9-6-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel; Hegel. A tradução da história pela razão, edição 430, disponível em e Hegel. Lógica e Metafísica, edição 482. (Nota da IHU On-Line)
[11] Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, 1775-1854): filósofo alemão. Suas primeiras obras são geralmente vistas como um elo importante entre Kant e Fichte, de um lado, e Hegel, de outro. Essas obras são representativas do idealismo e do romantismo alemães. Criticou a filosofia de Hegel como "filosofia negativa". Schelling tentou desenvolver uma "filosofia positiva", que influenciou o existencialismo. Entrou para o seminário teológico de Tübingen aos 16 anos. (Nota da IHU On-Line)
[12] Alexander von Humboldt [Friedrich Heinrich Alexander, Barão de Humboldt] (1769-1859): naturalista e explorador alemão. Atuou também como etnógrafo, antropólogo, físico, geógrafo, geólogo, mineralogista, botânico, vulcanólogo e humanista, tendo lançado as bases de ciências como Geografia, Geologia, Climatologia e Oceanografia. (Nota da IHU On-Line)
[13] Alceu Amoroso Lima (1893-1983): nascido no Rio de Janeiro, crítico literário, professor, pensador, escritor e líder católico. Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. (Nota da IHU On-Line)
[14] Gustavo Capanema (1900-1985): político mineiro. Foi o ministro que mais tempo ficou no cargo em toda a história do Brasil. (Nota da IHU On-Line)
[15] Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo: Companhia das Letras) é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. A IHU On-Line dedicou-lhe a sua edição 101, de 17-5-2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 anos depois. Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cadernos IHU em formação nº 3, de 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. (Nota da IHU On-Line)
[16] Reação termidoriana: termo utilizado para designar a queda do governo jacobino, liderado por Maximilien Robespierre. (Nota da IHU On-Line)
[17] Barão de Montesquieu (Charles-Louis de Secondat, 1689-1755): político, filósofo e escritor francês. Ficou famoso por sua Teoria da Separação dos poderes, atualmente consagrada em muitas das modernas constituições nacionais. Sua obra mais famosa é O espírito das leis. (Nota da IHU On-Line)