02 Agosto 2019
Celia Ojeda (Valladolid, 1979) é doutora em Biologia, especializada em reservas marinhas, com mais de 15 anos de atividade em favor do delicado equilíbrio ambiental do planeta. Começou combatendo a pesca predatória e trabalhando na proteção dos oceanos no Greenpeace, e agora coordena as campanhas contra o consumismo desmedido, que tem nos plásticos o verdadeiro inimigo dos grupos ambientalistas, um dos fatores que estão esgotando a paciência de Gaia, a mãe Terra. “O problema que enfrentamos é que chegou a hora de mudar a forma como vivemos, comemos, conduzimos. Não podemos manter as coisas como estão. Já não temos muito tempo”, afirma.
E como bióloga que busca dar sentido à vida, faz um percurso pelos tremendos açoites que o homem desfere contra a natureza, pelas sequelas letais de sua depredação, desde os campos de gelo dos polos, que nunca haviam se convertido em água, até a corrida iniciada para perfurar o fundo do mar, sem se importar com os efeitos catastróficos que acarreta. Mais lenha na fogueira de um planeta que se consome ao calor da cobiça humana, que ameaça acabar com todos os sonhos.
A entrevista é de Gorka Castillo, publicada por Ctxt, 31-07-2019. A tradução é do Cepat.
O consumo é uma das referências dos economistas clássicos para avaliar o crescimento de um país. Se cai, os alarmes disparam. Há outra alternativa?
Não concordo com essa afirmação. De fato, considero pobre medir a riqueza de um país por seu Produto Interno Bruto (PIB). É tão inexato que há países que deixaram de o utilizar. Por quê? Porque o consumo ou o consumismo, que não é o mesmo, está intimamente relacionado à extração intensiva dos recursos naturais. Se a isto somamos que a população mundial continua crescendo, e crescerá muito mais nas grandes cidades, durante os próximos anos, parece evidente que é incongruente continuar medindo a riqueza ou a pobreza de um país em função de seu nível de consumo. É preciso mudar já essas variáveis, caso almejemos ter alguma possibilidade de salvar o planeta.
Mas, o conceito de consumo parece unido ao de felicidade.
Sim, é verdade. Temos a sensação de que só podemos ser felizes se compramos, se consumimos, se possuímos, se passamos as férias muito longe de casa. É como se o próprio conceito de felicidade pudesse ser comprado. Minha pergunta é: por acaso não é possível ser feliz fazendo pequenas coisas, estando com pessoas próximas ou desfrutando um ambiente natural?
Então, somos reféns do marketing consumista?
De alguma maneira, sim. As grandes companhias têm sua produção e suas vendas, seus interesses de mercado, e nós somos a ferramenta. Lutar contra esse bombardeio de mensagens que nos lançam incessantemente mensagens do tipo: “compra este produto e será o mais fashion da praia” é realmente difícil, é verdade, mas não nos resta outra opção a não ser mudar, porque o que está em jogo é a vida no planeta. Algumas empresas já começaram a ser conscientes de tudo isto.
Mas, como disputar com o mercado as necessidades das pessoas?
Oferecendo alternativas. Por exemplo, ainda é normal ver pelas ruas pessoas com uma garrafa de plástico com água, quando não muitos anos atrás carregávamos vasilhas. Vivemos cercados por um marketing consumista desmedido, onde não cabem conceitos como o conserto, a troca ou o mercado de segunda mão. Acredito que quando as empresas começarem a propor estas opções, o modelo começará a mudar e poderemos decrescer, que é o único caminho viável contra a mudança climática.
É possível convencer uma multinacional que a única maneira de salvar o planeta é parando as máquinas?
Esse é o nosso trabalho. Em geral, as empresas olham para a rentabilidade a curto prazo e não acredito que se preocupem muito com o benefício para não agirem assim. Recordo-me que quando trabalhava na área de pesca do Greenpeace, muita gente me perguntava a razão pela qual os países não paravam as pescas, quando era evidente que os estoques estavam esgotando. A resposta que encontrei sempre foi a mesma: porque o sentido da existência das grandes corporações é o business, o negócio puro e duro.
As consequências de seu negócio costumam ser secundárias. Sendo assim, não é estranho que quando não veem excessiva rentabilidade na pesca, comecem a fabricar garrafas de plástico ou se dediquem a outra coisa até esgotar as existências. O meio ambiente é acessório. O problema que enfrentamos é que ainda não fomos capazes de gerar uma consciência social de que consumir é como votar. É certo que com a nossa forma de comprar e gastar decidimos quem queremos que governe o mundo. As multinacionais e as grandes empresas poluidoras? Ou aquelas que funcionam com parâmetros de produção limpos e um comportamento trabalhista ético?
A vida é cada vez mais urbana. De que maneira isso afeta o modo de lutar ou de ignorar a mudança climática?
Ignorar nas cidades é muito fácil. No Greenpeace, estamos há um ano com um programa dedicado exclusivamente ao consumo urbano, mas há outras muitas organizações que trabalham fortemente neste âmbito há algum tempo, como C40 ou as cidades que se uniram no Pacto de Milão pela saúde alimentar. Isto demonstra que há uma preocupação extrema em criar consciência, pois as cidades são as grandes catedrais do consumo mundial e os lugares onde se produz maior CO2.
É também onde mais se consome e mais lixo se gera. E satisfaz suas necessidades absorvendo todos os recursos do mundo rural, para onde devolvemos os resíduos que geramos. Se conseguirmos mudar esta dinâmica e os grandes núcleos urbanos reduzirem seu consumo de energia, de moda, de tecnologia, favorecerem uma mobilidade sustentável e administrarem adequadamente seus próprios resíduos, a melhora ambiental no planeta seria brutal. Para isso, é imprescindível que os governos municipais apliquem medidas contundentes que favoreçam uma mudança nos hábitos consumistas.
Com projetos como Madri Central?
É claro. A única explicação que encontro na tentativa do prefeito de Madri em deixá-lo em suspenso é a de contentar seus eleitores. É um projeto imprescindível para enfrentar as emissões de CO2 e a poluição da cidade, porque faz parte de um plano de mobilidade sustentável muito mais amplo que chega ao subúrbio. Por exemplo, as estradas radiais, com a finalidade de favorecer o transporte público e outras formas de trânsito alheias ao veículo privado, que já funcionam em outras cidades europeias.
A demonstração de rejeição popular que as alegações do novo prefeito suscitaram foi a manifestação que houve em junho. Foi algo extraordinário porque era um sábado de calor sufocante, que muita gente costuma aproveitar para sair da cidade. Quem imaginaria, alguns anos atrás, que tantas pessoas pudessem se mobilizar em defesa do direito ambiental ou que uma ministra falasse tão decididamente sobre a transição energética? Algo começou a mudar neste país, embora seja certo que existe uma maior conscientização social na Europa que na Espanha. Ainda estamos a anos-luz da Alemanha ou Suécia.
Mas, na Noruega continuam caçando baleias.
Sim, e muitas empresas petroleiras continuam perfurando no Ártico, apesar de sua consciência ambiental ser muito maior que a nossa. Utilizam bicicleta, reciclam os plásticos ou não os utilizam. Muitas vezes, o social não coincide com o político.
Como chegou ao Greenpeace?
Tive a sorte de que o orientador de minha tese em biologia marinha considerava que eu precisava preparar algo funcional. Todas as vezes que havia um estudo sobre como melhorar, por exemplo, a efetividade de uma reserva marinha ou como otimizar sua vigilância, eu ia até a administração e apresentava os resultados. Contudo, como eram muito lentos ou simplesmente incapazes de executar os planos que apontávamos desde a ciência, tornei-me mais ativista do que já era. Surgiu uma vaga no Greenpeace, apresentei-me, gostei, e aqui estou.
Fica incomodada com a politização da luta contra a mudança climática?
Eu acredito que é uma luta de todos e todas, que transcende a política. A mudança climática não pode servir a uma determinada ideologia. Nem sequer deveria ser a aposta de um governo. Todos os partidos deveriam ver que a emergência climática é uma realidade que irá afetar o conjunto da população, sejamos de direita ou de esquerda, verdes ou brancos. Não deve ser politizada nesse sentido, ainda que as medidas a serem adotadas para a combater, sim, são. Mais importante que a saúde do planeta é o modo como a administramos.
Um dos focos do movimento internacional contra a mudança climática é o Green New Deal, um acordo global que defende a transformação econômica em grande escala e que rompe as tentativas neoliberais de liderar o debate com cortinas ecológicas. É possível o capitalismo verde?
O capitalismo verde, vendido pelas grandes empresas, é um paradoxo. É impossível continuar com os níveis de produção atuais e com a demanda consumista que geram, caso se renuncie ao extrativismo dos recursos naturais e se aposte na sustentabilidade. Por isso, são conceitos incompatíveis em essência, mesmo que tentem gerar confusão com sua estratégia de greenwashing, essas campanhas de marketing idealizadas pelas grandes corporações para limpar sua imagem em relação ao meio ambiente quando, na realidade, não o respeitam.
O que, sim, poderiam fazer, é iniciar uma transição de seu modelo de crescimento infinito para o decrescimento paulatino, porque é a única forma de frear a deterioração climática. Daí que uma de nossas exigências aos Estados na luta global contra a emergência climática é que não limitem suas atuações a simples declarações de intenções, onde estampam a assinatura e acabou.
Muitos se perguntam para que servem os tratados internacionais sobre a mudança climática, se seu cumprimento é lento e impreciso. Até mesmo o acordo de Paris deixa a porta aberta para um aquecimento da Terra de 3 graus, até 2050, algo que seria catastrófico segundo os cientistas. Fica surpresa com a falta de instinto de sobrevivência do ser humano?
O que não me surpreende é a falta de instinto de sobrevivência de nossos políticos. Os tratados são assinados para serem cumpridos. É uma coisa óbvia. E por isso posso entender o receio que estes acordos multilaterais suscitam em muita gente, porque é verdade que os países buscam ferramentas para escaparem. Mas, assina-los é importantíssimo. O problema são os políticos e as políticas que, em certas ocasiões, têm muitas dificuldades para tomar medidas audazes para combater esta ameaça global. Um exemplo são as reticências para acabar com a produção de carros a diesel. Compreendo que tomar uma decisão drástica a este respeito é difícil porque atinge muitos empregos e aumenta a sensibilidade social, mas é necessário buscar uma solução urgente.
Há mais contradições. A última é a assinatura do tratado comercial entre a União Europeia e o Mercosul.
É um acordo comercial que coloca em perigo a Amazônia, entre outras coisas, pela importação de soja contemplada para o consumo do gado europeu e a exportação de carne para outros mercados. Nós já manifestamos nossa oposição. É a cara e a cruz desta Europa tão contraditória que, por um lado, tenta liderar a luta contra a mudança climática e, por outro, assina um acordo destas características. É o que dizia antes sobre a falta de determinação de nossos políticos em adotar medidas comerciais congruentes com o meio ambiente. E, às vezes, não só é a política, mas, sim, as empresas. Vivemos um momento de transformação onde há muitos interesses em jogo, que provocam muitas contradições.
Também no Greenpeace?
É claro que temos contradições. Explicar tudo isto de decrescer e deixar de consumir não é tarefa fácil. Por exemplo, como dizer a um país africano para que não cresça porque é ruim para o clima? Ou que cresça sob algumas determinadas condições? Muitos povos não querem que lhes deem água, ao contrário, preferem aprender a tirá-la. Que aqui tenhamos visto as orelhas do lobo não significa que todos tenham que fazer o mesmo que nós fazemos. Se no Global north, nome que agora se utiliza para se referir às economias da Europa e dos Estados Unidos, não somos capazes de saber como queremos avançar em matéria de sustentabilidade, diante dos desafios que temos pela frente, como vamos pedir aos países do Sul que adotem medidas de controle drásticas?
Uma demonstração da gravidade climática está no Ártico, onde este verão se vive uma situação inédita.
Efetivamente, a temperatura subiu tanto que o degelo atingiu limites desconhecidos, o pergelissolo está desaparecendo e os incêndios se multiplicaram por 10, em relação a uma década atrás. E é curioso observar como os países do norte da Europa começaram a se preocupar com tudo isto porque começaram a padecer os efeitos da mudança climática. Jamais tinham sofrido inundações, nem grandes incêndios, nem ondas de calor. Agora que os desastres naturais estão se tornando mais relevantes, ativaram os alertas.
Para que você perceba a dimensão do desastre, barcos de 42.000 toneladas começaram a traçar novas rotas de navegação através do polo em razão do degelo. E em vez de elevarmos as mãos à cabeça, há quem considere genial porque os trajetos se encurtaram. Para mim, é incompatível tanta irresponsabilidade porque os oceanos, o Ártico e a Antártida são os responsáveis por esfriar o planeta. O equilíbrio térmico da Terra depende deles e por isso deveriam ser designados espaços protegidos, sem demora. Alguém não compreende isto?
E enquanto chega esse momento, a indústria mineira elabora planos para explorar comercialmente os fundos marinhos. A que custo?
Incalculável porque nem sequer conhecemos o hábitat destas regiões. É que possuímos mais informação da superfície da Lua e de Marte! Pelo Greenpeace, lançamos um alerta global após comprovar que a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, um organismo da ONU responsável por regulamentar a indústria mineira de águas profundas, está priorizando os interesses corporativos acima da proteção marinha. A título pessoal, surpreende-me que uma entidade como a Organização das Nações Unidas, que agora negocia o Tratado dos Oceanos para águas internacionais, não diga a essas multinacionais mineiras que deixem o mar tranquilo porque temos os dias contados. Os danos de suas perfurações podem ser irreversíveis.
Decepcionada com a ONU?
Não, de modo algum. Os tratados ambientais da Organização das Nações Unidas são muito importantes. Se conseguirmos que nas negociações sobre os oceanos se aceite proteger 30% das águas internacionais, até 2030 - agora está em apenas 1% -, será um êxito estratégico porque pode servir como amortecedor para gerir de forma racional e sustentável os 70% restantes.
Quem é Celia Ojeda?
Pfff. Não sei o que dizer. Sou uma mulher com uma trajetória em defesa do meio ambiente, com muitas contradições, que não dorme bem à noite porque tem um filho pequeno, que quando vai ao supermercado fica doente pela quantidade de plásticos que utilizamos e que, às vezes, briga até com a caixa, pobre caixa que não tem culpa de nada! (risos). Sou uma pessoa muito normal.
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“O capitalismo verde, vendido pelas grandes empresas, é um paradoxo”. Entrevista com Celia Ojeda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU