29 Abril 2019
Chega às livrarias nestes dias a obra Buddhismo, arte V, da OperaOmnia de Raimon Panikkar, publicada pela Jaca Book. A publicação da OperaOmnia foi concebida quando o grande filósofo ainda estava vivo: assim ele teve oportunidade de cuidar da esquematização e da apresentação, juntamente com a curadora Milena Carrara Pavan. O imponente plano da obra inclui doze partes (Mística e Espiritualidade, Religião e Religiões, Cristianismo, Hinduísmo, Budismo, etc.), muitas vezes divididas em dois volumes, para um total de 18 volumes. Que os escritos reunidos ali não sejam "apenas" palavras escritas e impressas, mas sejam muito mais, o próprio autor chega a expressá-lo com discrição e seriedade em um editorial que aparece em todos os volumes: "Esta Opera Omnia cobre um período de setenta anos em que me dediquei a aprofundar o sentido de uma vida humana mais justa e plena. Eu não vivi para escrever, mas escrevi para viver de maneira mais consciente e ajudar os meus irmãos com pensamentos que não surgem apenas da minha mente, mas brotam de uma Fonte superior que talvez possa ser chamada de Espírito - mesmo que eu não pretenda que meus textos sejam ‘inspirados’".
O comentário é de Gianni Vacchelli, narrador, escritor, docente (PhD) italiano, publicado por Avvenire, 26-04-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde o início nota-se o aspecto fundamental da vida e da obra panikkariana (porque os dois aspectos não devem ser separados, nem mesmo confundidos): a aspiração de transmitir uma experiência profunda, entremeada de interioridade, de consciência e de amor. Nesse sentido, toda a obra panikkariana opera na sua essência e, mesmo por trás da inegável erudição, é mística e iniciática. O leitor é chamado para aquela transformação através da qual, inclusive, passou a existência daquele que escreveu. O dinamismo do ser, consciência e bem-aventurança, sat, cit e ananda, ou, dantescamente, de "sabedoria, amor e virtude" não é, todavia, destinado a poucos eleitos, mas é possibilidade humana, porque todo homem é capax Dei, para usar a linguagem de tantas tradições cristãs, isto é, capaz de realização e relacionalidade constitutivas. Somos "cristofanias", de acordo com o neologismo panikkariano.
A riqueza do volume em questão não pode ser resumida de forma alguma. Panikkar, por outro lado, deixa claro desde o início que o seu não é "um tratado sobre o Budismo histórico nem sobre suas escolas, mas está centrado em sua mensagem principal". E a essência da experiência mística budista é a seguinte: "A realidade última é inefável. [...] O Absoluto não deve ser pensado, porque, nesse caso, seríamos forçados a pensar nele como Ser ou Não-Ser, e ele ‘não é’ nenhuma das duas coisas". Também o ser do homem ou que habita no homem deve ser deixado. Mas não ao não-ser ou, de alguma forma, a alguma derivação niilista, mas entregue a uma autêntica inefabilidade. Talvez algo assim seja encontrado naquele estado de "não-si" como resultado final do caminho contemplativo, do qual fala com frequência a grande mística norte-americana, ainda desconhecida da maioria, Bernadette Roberts. Por outro lado, os dois místicos se conheciam e se citavam.
A antiga e extraordinária lenda budista Romavisaya, desde o início, fulgurante: "Como é possível que no reino de Roma há tantos engenheiros de máquinas especialistas em tecnologias mágicas?" torna-se de profética realidade, na hermenêutica do filósofo. A tecnologia, como Panikkar argumentou tantas vezes, não é neutra, mas culturalmente situada: ela nasce no Ocidente e tem dentro dela a aceleração e uma vontade de domínio e de controle, que correm o risco de violar constantemente os ritmos do ser. É por isso que "a máquina aumenta o poder, mas diminui a liberdade" e "nem os criadores conseguem controlar as máquinas", que ditam seus tempos e espaços. Então Panikkar resume a lenda: “Fala que os robôs são reais e muito poderosos. Afirma que eles foram inventados em outro lugar, mas podem ser produzidos em qualquer lugar, uma vez que seu segredo seja conhecido. Ele reconhece que tornam poderosos aqueles que podem dominá-los, mas termina dizendo que, no final, causarão a morte daqueles que lidam com eles". Para concluir: “O destino da civilização tecnológica é a morte. Eu gentilmente convido vocês a desmontá-la”. Que fique claro, no entanto: aquele de Panikkar não é luddismo, mas crítica radical ao "mito tecnológico", ao seu pensamento único e dominante, aceito passivamente por todos nós.
Mas a maior parte da obra é dedicada à Opus Magnum de Panikkar sobre o Budismo: O Silêncio do Buda. Um a-teísmo religioso, apresentado aqui na edição de 2006, totalmente revisada e reescrita. O denso oximoro do título nos lembra que a "Realidade [até do mistério que algumas tradições chamam de Deus] para a qual a razão nos abre não se esgota no pensamento dela, como explicitamente declara o Budismo e toda a mística". Além da imensa Opera Omnia, também gostaríamos de lembrar a impressionante antologia Pluriversum. Per una democrazia delle culture (Pluriversum. Para uma democracia de culturas, em tradução livre, da Jaca Book, 2018), organizada e introduzida com grande sabedoria por Serge Latouche, o filósofo de decrescimento, que foi grande amigo de Panikkar, além de sério estudioso. Seria suficiente o primeiro ensaio da coleção Os direitos humanos são uma noção ocidental?, para encontrar o poder da crítica intercultural de Panikkar em conceitos ou símbolos que nós, do nosso ponto de vista ocidental, "mitificamos" ou tomamos como garantidos.
Mas o fulcro é a atualidade e a importância para nós desse poliédrico autor, sacerdote católico, filho de mãe catalã e de pai indiano, em cujo DNA está inscrito um diálogo constituindo de tradições e culturas. Aqui indicaremos sete pontos, que permitem adivinhar sua profundidade:
1) Colligite fragmenta, “Recolham os fragmentos”. O lema evangélico era muito caro a Panikkar. É preciso recolher os fragmentos da nossa cultura, das nossas tradições. E daquelas alheias. Nenhuma civilização, religião ou cultura pode pensar de ter a solução para os problemas da atualidade. Certamente nem mesmo a tecnociência. É necessário um encontro profundo, não fácil, mas frutífero, entre as várias tradições, para um enriquecimento mútuo e compartilhado. Todos nós precisamos de todos.
2) A relação é "no começo": não há um "eu" sem um "tu". O homem não pode viver sem o outro, mas nem mesmo desconectado da terra, do cosmo, da matéria e daquele indescritível mistério que algumas tradições chamam de "Deus" e outras com outros nomes: Infinito, Nirvana, Paz, Justiça, Silêncio, Nada etc., sem nunca conseguir esgotá-lo. Daí também a intuição cosmoteândrica, Deus-Homem-mundo, o pensamento triádico-trinitário, etc.
3) Se a relação é constitutiva, eis que o diálogo dialógico (e não dialético e contraposto) torna-se uma práxis indispensável, árdua, mas ao mesmo tempo profundamente humana. O diálogo é amizade. A amizade é diálogo. A busca é "comunidade de busca".
4) O pluralismo também é constitutivo. Não haverá "a" religião, mas as religiões. Não um cristianismo, mas cristianismos. E mais ainda: não monismos, não dualismos. Somos sempre tentados a reduzir tudo a um (um único pensamento, um único sexo, uma única religião, uma única cultura ... a nossa, na maioria das vezes) ou corremos o risco de sermos dilacerados pelos dualismos: Deus vs homem, carne vs espírito, razão vs paixão, etc. Mas há uma terceira possibilidade, uma terceira força: misteriosamente me torno capaz de manter essas polaridades unidas, sem confusão e sem separação ...
5) A redescoberta da mística como um "direito humano". Esse é talvez o apelo mais importante de Panikkar: a redescoberta de uma dimensão infinita que habita dentro de cada um de nós. A mística é uma possibilidade para todos, para além das crenças ou dos pertencimentos religiosos ou não-religiosos.
6) A instância intercultural tem um valor filosófico-heurístico imprescindível. O olhar intercultural tem imensas potencialidades críticas, libertadoras e emancipatórias.
7) A palavra é inseparável do silêncio, é "o êxtase do silêncio". Sem um silêncio prévio, as palavras se tornam tagarelice, flatus vocis, até mesmo mentiras. É por isso que somos verdadeiramente humanos quando cultivamos a palavra, mas quando também fazemos experiência do silêncio, que não é "ausência", isolamento, mas ventre em que uma palavra autêntica pode nascer. Uma palavra autêntica faz o que diz. E assim uma tríade harmoniosa é constituída: Silêncio-Palavra-Ação. Panikkar nos fala continuamente da plenitude do homem, que é humana, divina e cósmica.
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Panikkar e o silencioso direito humano para o infinito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU