18 Março 2019
Eu nasci em 1979. Na terra onde nasci e cresci, desde o meu nascimento, centenas de pessoas morreram em disputas da camorra. Os clãs vivem em guerra, os membros não conhecem outra maneira de estar no mundo porque acreditam que, se você demonstrar confiança, você será traído, se você perdoar, será punido, se você não matar, será morto.
Quando criança, eu havia desenvolvido uma espécie de fascínio quase mórbido pelos cadáveres que eram mostrados nos noticiários regionais ou que eu via, cobertos com lençóis, na primeira página dos jornais locais. Havia cartuchos de balas marcados com números, manchas de sangue cobertas de serragem e pessoas desesperadas: porque na morte pouco importa de que lado você está.
O comentário é de Roberto Saviano, jornalista e escritor italiano, publicado por L'Espresso, 17-03-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A morte é a morte. A morte é o fim da presença, da esperança de mudança. É o fim de tudo: é por isso que dar morte, para organizações criminosas, significa celebrar um ritual, um ritual que não deve restaurar a ordem ou pacificar, mas permanecer como um aviso. E é por isso que o simbolismo, na morte, se torna fundamental: os símbolos são como slogans, frases simples, imediatas, falam a todos e por um longo, longo tempo.
Minha relação com a morte mudou subitamente após o assassinato de Dom Peppe Diana. Ele era o pároco de Casal di Principe, feudo do clã dos casaleses. Sua morte mudou muitas vidas e, também, profundamente, a minha. Era um padre, portanto era o padre da sua comunidade e seu nome era Giuseppe, eis por que o clã dos casaleses decide matá-lo em 19 de março, no dia do santo com seu nome e Dia dos pais, tingindo de preto um dia que todo ano reabre em muitas pessoas uma ferida dolorosa que nunca consegue se curar.
Dom Peppe (Foto: vesuviolive.it)
E, de fato, 25 anos se passaram desde a morte de Dom Peppe e eu estou aqui, como todos os anos, para falar sobre isso; como se o seu assassinato pertencesse a um momento ainda muito próximo a nós no tempo. E isso acontece porque qualquer um que tenha cruzado a história de Dom Peppe, em 19 de março, qualquer dia 19 de março, não poderá ignorar o que fizeram com ele e o que fizeram com nossa terra.
Dom Diana tinha escrito um tratado intitulado "Por Amor ao meu Povo não calarei" e o distribuiu em todas as igrejas da diocese e das cidades vizinhas. Ele tinha escrito que não vivemos em uma democracia verdadeira, mas sob o totalitarismo da camorra: em um mundo onde os filhos, mais cedo ou mais tarde, se tornam vítimas ou mandantes da criminalidade organizada; um mundo em que os membros da camorra ditam suas regras com as armas. Ele tinha 35 anos quando foi baleado na cara e a notícia de sua morte chegou até mim já poluída. "Dom Peppe Diana foi assassinado, por que será?" Só este comentário, "Por que será?" já abria um mundo. Um mundo que cheirava a suspeita. Durante vários anos, houve rumores de que ele tivesse tomado liberdades com garotas que participavam das bandeirantes. Os jornais locais deram espaço às declarações dos colaboradores da justiça e, portanto, na primeira página, foi possível ler títulos como estes: "Dom Peppe Diana era da camorra", "Dom Diana na cama com duas mulheres". Além disso, havia uma foto onde podia ser visto com o braço em volta dos ombros de duas bandeirantes.
A memória de quem é assassinado é imediatamente conspurcada pela suspeita. Para um assassinato como o de Dom Peppe Diana, se esperaria uma tomada de consciência nacional que não aconteceu, porque as dúvidas sobre as circunstâncias da sua morte foram mais eficazes do que a tragédia.
Essa parece uma história antiga, mesmo que 25 anos depois ainda nos cause mal-estar, mas toda vez eu me pergunto como a opinião pública reagiria hoje diante de um evento como a morte de um padre anticamorra. Diante da morte de Dom Peppe Diana.
Como reagiria ao sentimento de culpa por ter deixado apenas um padre amoroso que se preocupava com o destino das pessoas entre as quais havia nascido, crescido e com quem tratava todos os dias? Como a web reagiria, hoje, às declarações dos arrependidos que a imprensa local usou para os títulos da primeira página?
O que aconteceria, no Facebook, dos "Dom Peppe Diana era da camorra", dos "Dom Diana na cama com duas mulheres" e das fotos de Dom Peppe abraçado às pessoas de que ele gostava? Imaginar essa reação me causa medo, mais medo do que a própria morte.
Roberto Saviano é autor do Gomorra, que documenta a atuação das máfias italianas e sua relação com as instituições do país. A obra se tornou um bestseller em todo o mundo. Saviano vive sob escolta permanente de cinco policiais, desde 13 de outubro de 2006. Ele muda constantemente de endereço, e não frequenta lugares públicos, em virtude de ameaças de morte feitas por mafiosos. Saviano deve consultar cada encontro, cada viagem com as autoridades de segurança e o ministério do interior do país. Hotéis e restaurantes, assim que ele aparecer, são evacuados e procurado por bombas. Em outubro de 2008, revelou-se que a Camorra tinha um plano para assassinar Saviano no natal daquele ano.
Saviano está no Brasil, neste momento, lançando a tradução brasileira do seu livro Meninos de Nápoles. O jornal O Globo, 17-03-2019, publica uma entrevista com o autor italiano em que perguntado "o que leva garotos de 10 a 19 anos a ingressar no tráfico?" ele responde:
"A vontade de ser como os outros. Poder comprar um par de sapatos, uma jaqueta de grife, poder reservar uma mesa na discoteca da moda onde só se entra se tiver dinheiro. A miséria e a consciência da impossibilidade de mudar sua condição pessoal levam a escolhas radicais".
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Padre Peppe Diana. Por amor ao povo. Depoimento de Roberto Saviano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU