Apesar de todos os avanços, a sociedade de nosso tempo ainda trata de invisibilizar a transexualidade, considerando essas pessoas como menores e privando-as do acesso a direitos básicos. E o sistema prisional brasileiro ainda está muito aquém do propósito de ressocialização de delinquentes, sendo como que um caldeirão de violência e mais violações de direitos também por parte do Estado. Agora, imagine a situação de uma mulher transexual que ingressa no sistema carcerário. “Se pensarmos que estas mulheres já são invisibilizadas fora do cárcere, é possível imaginar que, em um local onde tudo se potencializa, a invisibilidade se torna maior e ainda mais perversa”, destaca Monique Costa Machado, graduada em Direito, que realizou uma pesquisa que a levou a mergulhar nessa realidade.
Segundo a pesquisadora, essa invisibilização é ainda muito pior do que apenas tratar essas pessoas como se tivessem sido apagadas da sociedade, pois além da indiferença, ainda são submetidas a violações que as levam a situações-limite. “O sistema [prisional] foi pensado tão somente para o homem delinquente”, aponta, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E descreve: “no momento que [mulheres trans] ingressam no sistema carcerário para o cumprimento da pena, estas mulheres são expostas a diversas violações e se tornam mais vulneráveis ainda”.
Um exemplo disso é a classificação binária da maioria das casas de detenção, onde homens e mulheres são separados apenas com base na sua genitália. “A consequência disso é que, quando se tenta buscar na base de dados alguma informação sobre elas, não se consegue identificar estas mulheres porque o que encontramos são registros masculinos”, acrescenta, ao lembrar que não se consegue nem mapear essas pessoas e, logo, tampouco conceber políticas públicas a elas.
Depois do confronto com essa realidade, Monique destaca a necessidade de, apesar das dificuldades, se perseguir um plano ideal para o cumprimento de pena pelas mulheres trans. Essa, segundo ela, é uma execução de pena em que “não lhe fosse privado o básico como, por exemplo, continuidade de tratamentos hormonais, vestimentas de acordo com sua identidade de gênero, até o corte de cabelo. Questões que por si só já seriam avanços, considerando a atual condição destas mulheres, que hoje estão totalmente desabrigadas quando o assunto é dignidade humana”.
Monique Machado (Foto: Ricardo Machado | IHU)
Monique Costa Machado é graduada em Direito pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul - Fadergs, realiza pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, pelo Centro Universitário Ritter dos Reis, UniRitter.
Monique proferiu a palestra As mulheres transexuais e a adequada execução da pena privativa de liberdade nas unidades prisionais, no espaço do IHU ideias do dia 25-10-2018. Assista à íntegra da conferência.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o sistema penal brasileiro trata as mulheres transexuais? Qual a realidade dessas pessoas?
Monique Costa Machado – Nessa questão é preciso identificar dois fatores importantes. O primeiro deles é que o sistema prisional não foi pensado para mulheres cis e tampouco para mulheres transexuais, ou seja, o sistema foi pensado tão somente para o homem delinquente. O segundo ponto é que, no momento que ingressam no sistema carcerário para o cumprimento da pena, estas mulheres são expostas a diversas violações e se tornam mais vulneráveis ainda. A realidade destas mulheres, em síntese, é que elas são encarceradas, via de regra, em instituições masculinas, o que acarreta inúmeras violações de direitos, tanto por parte da população carcerária quanto por parte do Estado.
IHU On-Line – Qual é o perfil das mulheres transexuais que ingressam no sistema penitenciário?
Monique Costa Machado – A verdade é que não se tem um perfil destas mulheres, porque ainda hoje o sistema carcerário é binário, classificando os apenados entre masculino e feminino. Quando uma mulher trans é condenada ao cumprimento de uma pena, ela é encaminhada a uma instituição de acordo com sua genitália, e não com sua identificação de gênero. E a consequência disso é que, quando se tenta buscar na base de dados alguma informação sobre elas, não se consegue identificar estas mulheres porque o que encontramos são registros masculinos.
IHU On-Line – As mulheres cis em geral, quando ingressam no sistema penitenciário, são muito mais invisibilizadas do que os homens, chegando a sofrer abandono das próprias famílias. As mulheres transexuais são submetidas a um processo similar?
Monique Costa Machado – De forma simples, sim. Se pensarmos que estas mulheres já são invisibilizadas fora do cárcere, é possível imaginar que, em um local onde tudo se potencializa, a invisibilidade se torna maior e ainda mais perversa.
IHU On-Line – Há diferenças no tratamento reservado a mulheres e homens trans na realidade do sistema carcerário? Por quê?
Monique Costa Machado – No geral não há. O que tem ocorrido em algumas casas prisionais é a criação de alas LGBTs dentro das instituições masculinas. Contudo, convém reiterar o mecanismo de marginalidade e, portanto, vulnerabilidade extrema quando o assunto é mulheres trans, dado o viés heteronormativo da sociedade e, por extensão, como já mencionado, o binarismo do sistema prisional brasileiro.
IHU On-Line – A transfobia é algo que, de forma especial atualmente, tem dado vazão a discursos de ódio e intolerância na sociedade. Em que medida essa transfobia se acentua no ambiente do sistema penitenciário?
Monique Costa Machado – O sistema carcerário por si só é violento, segregador e preconceituoso e é nesta realidade que estas mulheres estão inseridas. Elas estão vivenciando uma narrativa de diversas violências, dentre elas a negação das características que as identificam como mulheres, o que ao meu ver é uma, senão a maior, das violências impostas a elas.
IHU On-Line – É possível destacar algumas ações que têm sido desenvolvidas para minimizar os efeitos dessa mitigação a que são submetidas as mulheres trans no sistema penitenciário?
Monique Costa Machado – O debate sobre esta população é tão incipiente pelo conjunto dos órgãos responsáveis que ainda precisamos avançar muito para podermos pensar em ações que de fato cumpram o que se considera básico no campo da garantia dos seus direitos elementares. Inclusive quando falamos em dar vozes a estas mulheres para que possamos entender o que para elas é de primeira ordem no adequado cumprimento da pena.
IHU On-Line – Quais os limites e os avanços da legislação brasileira no que diz respeito aos direitos de pessoas trans dentro do sistema penitenciário?
Monique Costa Machado – O principal avanço jurídico que se tem até aqui diz respeito a uma decisão do Supremo Tribunal Federal - STF no início de 2018, em fevereiro, quando o ministro Luís Roberto Barroso, ao proferir sentença no Habeas Corpus - HC 152.491, determinou que as apenadas fossem transferidas para uma instituição adequada com sua identidade de gênero. Considera-se uma decisão paradigmática tendo em vista que o Supremo Tribunal reconheceu que encarcerar mulheres transexuais em instituições masculinas é no mínimo um tema que merece nossa atenção e reflexão.
IHU On-Line – O que a academia tem produzido no que diz respeito aos estudos sobre essa realidade? O que observa na maioria dessas produções?
Monique Costa Machado – Penso que uma das considerações a se fazer é que estamos falando em cumprimento da pena de mulheres transexuais, situação que em boa medida deve o Direito se ocupar. No entanto, o que percebi durante a pesquisa foi que se tem bem pouco conteúdo produzido neste sentido dentro das ciências jurídicas. Tanto que necessitei buscar estudos em outras áreas, como a Psicologia e o Serviço Social, para que fosse possível ter um lastro teórico.
Também é importante destacar que as produções ainda buscam retirar da invisibilidade esta parcela da população carcerária. É claro que a maioria das pesquisas e estudos buscam a afirmação de direitos para estas mulheres, caminham no sentido de reconhecimento da existência desta população carcerária para que, posteriormente, de posse de um arcabouço de maiores informações, seja possível ter uma leitura mais adequada e aprofundada sobre o assunto. Assim, percebo que majoritariamente as produções a este respeito buscam a apresentação de propostas que contribuam com a estruturação de mecanismos sistêmicos que atuem objetivamente no trato desta população.
IHU On-Line – O que considera como uma execução adequada de pena de privação de liberdade para mulheres transexuais? Quais os desafios para assegurar na prática a execução correta da pena, de forma a respeitar os Direitos Humanos?
Monique Costa Machado – No plano ideal, seria garantir a estas mulheres que o princípio do livre desenvolvimento da personalidade não lhes fosse tolhido, que elas pudessem ter a garantia de afirmar sua identidade como mulher dentro das instituições. Todavia, uma execução onde não lhes fosse privado o básico, como, por exemplo, continuidade de tratamentos hormonais, vestimentas de acordo com sua identidade de gênero, até o corte de cabelo. Questões que por si só já seriam avanços, considerando a atual condição destas mulheres, que hoje estão totalmente desabrigadas quando o assunto é dignidade humana, em clara violação a preceitos fundamentais de Direitos Humanos.