23 Novembro 2018
A história das relações entre Estados Unidos e China envolve muitas coisas: ideologia, geopolítica, rivalidade global; pode ser um choque de civilizações, comércio, direitos humanos, etc. Mas também envolve sentimentos: Os estadunidenses se sentiram traídos depois de 40 anos dando quase tudo para a China.
O comentário é de Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China, publicado por Settimana News, 22-11-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Um sentimento diferente de traição começa no início dos anos 40, ou até mesmo uma década antes, quando o sistema dos EUA não sabia se apoiava o terrível e corrupto Generalíssimo Chiang Kai-shek do Partido Nacionalista Chinês (KMT) ou os bandidos comunistas intelectuais e românticos de Mao Zedong. Os Estados Unidos acabaram escolhendo Chiang porque acharam que Mao também era comunista, mas muitos nuca se convenceram e pensavam que Washington havia dado um empurrãozinho em Mao em direção aos soviéticos, como afirmou John Pomfret no livro The Beautiful Country and the Middle Kingdom: America and China, 1776 to the Present.
Em teoria, os sentimentos não devem contar em conflitos. É o que nos diz a política moderna. Mas a sabedoria antiga diz o contrário. Os gregos entraram em guerra contra Troia pelo rapto de Helena, a esposa de um dos seus reis; foi raiva, um sentimento, diz a Ilíada. Mais filosoficamente, no século IV A.C., o grão-mestre Mo rejeitou a doutrina egoísta do mestre yangista Wuma, argumentando que os homens não se movimentam apenas pela autopreservação. As pessoas estão dispostas a irem para a guerra e arriscam a vida porque há algo mais importante do que a vida: yi, orgulho, o sentimento de estar certo ou de ser injustiçado. Todos são sentimentos muito fortes.
Mas a verdadeira questão é o que Mao deu aos soviéticos pelo apoio na vitória da guerra civil contra o KMT.
Moscou impôs condições similares a uma ocupação à China. Apesar das frases de irmandade comunista, eles foram muito mais duros do que as imposições de qualquer potência colonial, singular ou coletivamente, desde a Guerra do Ópio de 1840, incluindo a ocupação japonesa. E a relação ficou clara com o chavão de que Moscou era o irmão mais velho, e Beijing, o mais novo. Em chinês, irmão mais velho significa "o líder”, e o irmão mais novo significa companheiro.
A China teve de ceder milhões de quilômetros quadrados de território: toda a Mongólia, além de grandes áreas do nordeste e noroeste – cerca de 20% do território reivindicado pelo KMT da República da China. Havia conselheiros soviéticos em todas as principais posições do Estado chinês. A União Soviética ajudou a construir a nova indústria na China, mas também levou toda a moderna infraestrutura japonesa anterior da Manchúria. E o principal: impôs na China um sistema político e econômico que foi o grande responsável pelo subdesenvolvimento do país antes do início das reformas.
As perdas territoriais ainda estão presentes, assim como o sistema político, que agora está no centro das disputas internacionais e origina grande parte das dificuldades de funcionamento no país.
Durante os anos 50, a China fez parte do império soviético de facto e de jure. Moscou disse a Beijing para lutar pela Coreia do Norte, e assim aconteceu, colocando as considerações políticas russas sobre a prioridade de Beijing de recuperar Taiwan, que hoje é o pior pesadelo geopolítico da China. Tudo graças a essa guerra coreana ordenada pela Rússia.
A China conseguiu sair dessa subordinação colonial porque Stalin morreu em 1953, e a ordem interna e internacional criada por ele estava desmoronando. Na verdade, a execução crucial de Gao Gang, o “superior” pró-soviético da Manchúria, ocorreu em 1954. A revolta húngara de 1956, sua violenta repressão soviética e o terremoto de consciência no mundo todo mundo estremeceu as bases da legitimidade ideológica soviética doméstica e global.
A crise do muro de Berlim e a chegada de Castro ao poder em Cuba, entre o fim dos anos 50 e início dos anos 60, tudo isso minando significativamente a liderança soviética no Ocidente, levou à perda gradual do controle da China pela União Soviética.
Ainda não se sabe muito bem como a União Soviética de Khrushchev perdeu o controle da China nesse período. Mas foi um grande custo para a China. Isolado, e sem apoio estrangeiro nem orientação, nos anos 60 o país quase tropeçou na autoilusão da Revolução Cultural e só foi resgatada porque Mao queria abrir as portas para os Estados Unidos, talvez principalmente porque os EUA queriam ter sucesso político fora do desastre do Vietnã.
Compare tudo isso ao que os EUA fizeram para a China em 40 anos: baixas tarifas de importação e transferência de tecnologia desde os anos 70, o que provocou a primeira onda de modernização. Desde a década de 90, fez vista grossa para o roubo de propriedade intelectual chinês que estavam empobrecendo e ameaçando empresas americanas, estabelecendo uma ordem internacional segura e estável na qual a economia na China disparou.
Além disso, o colapso do império soviético deixou um enorme vazio político na Ásia Central, que a China está gradualmente voltando a ocupar, recuperando - embora não legalmente - mais do que tinha perdido para a União Soviética. No entanto, o desaparecimento da União Soviética não foi causado pela China, mas pela pressão americana. Porém, a China ficou com grande parte dos benefícios geopolíticos.
Tudo isso deixou o país mais rico do que nunca e com a maior área de influência geográfica de sua história. Graças aos seus esforços, mas isso teria sido impossível sem a contribuição dos Estados Unidos. Ou seja, os chineses estão mais ricos e com maior influência global principalmente pelos esforços dos Estados Unidos. Embora sem pretensão, os EUA não se opuseram muito quando aconteceu.
Em troca, os EUA não impuseram uma ordem política de forma violenta, como a URSS ou as potências coloniais, mas tentou promover reformas políticas e econômicas que realmente julgava serem boas para os EUA, para a China e para o mundo.
Agora, depois de 40 anos de tentativas pacíficas, o resultado dessas mudanças não foi como esperado, e os estadunidenses estão amargurados e sentindo que foram profundamente injustiçados.
Sim, cínicos e realistas sabem que existem outras partes, mais duras, dessa história. Mas o elemento positivo também é verdade. Houve e há algo de bom para todos, incluindo a China, nas mudanças que os Estados Unidos almejam.
Sim, os gregos não travam uma guerra em Troia por causa de Helena; eles queriam tomar o rico comércio do Bósforo e da Ásia dos troianos. Mas se Paris tivesse sido mais gentil e observado simples regras de cortesia como a de que não se deve seduzir e raptar a esposa do anfitrião do jantar, as controvérsias entre gregos e troianos poderiam ter sido resolvidas sem guerra.
Portanto, quando o vice-Presidente Michael Pence diz que cabe à China evitar uma guerra fria, ele está repetindo de forma mais dura o que há décadas os EUA tentam dizer apenas persuadindo, sem usar a força. Pence argumenta que os EUA não queriam prejudicar a China, que ajudaram a deixar os chineses e a China ricos e modernos.
Resumindo, muitos estadunidenses sentem que ajudaram a China a se salvar da miséria e da pobreza absoluta. Os EUA não impuseram regras usando a força, mas tentaram convencer a China a se adaptar aos costumes mundiais, que a tornavam muito melhor.
A China aproveitou o que havia de bom e agora não quer adotar normas internacionais, e, de muitas maneiras, desafia os EUA, seu maior benfeitor da história, e a ordem internacional com algo que acabará prejudicando a todos: o mundo, os EUA e a própria China. Muitos estadunidenses se questionam o que há de errado com a China. Beijing aparentemente só entende pelo uso da força, então para eles é melhor lidar dessa forma.
Será que a China vai conseguir persuadi-los a respeito?
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Estados Unidos se sente traído pela China - Instituto Humanitas Unisinos - IHU