11 Julho 2018
Quando foi embora, em 2017, aos 91 anos, Zygmunt Bauman nos privou de uma voz corajosa, de um olhar atento a cada sobressalto da história e pronto para acolher a contradição, para depois desmontá-la a partir de dentro. Nos seus escritos, o trabalho de uma vida inteira, dedicado a separar o núcleo das verdades inconfessáveis do falar anônimo, dos enganos da propaganda, do preconceito.
A reportagem é de Maria Serena Natale, publicada em Corriere della Sera, 09-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No livro de 2016 que o jornal Corriere della Sera repropõe hoje com um prefácio de Donatella Di Cesare, Stranieri alle porte [Estrangeiros às portas], Bauman analisava a reação das sociedades europeias à crise migratória que acabara de tocar o ápice, enquadrando com clareza a inquietação do Ocidente e o novo verbo do securitarismo em um horizonte mais amplo, definido pelos dois polos da responsabilidade e da indiferença moral.
Estranheza e exílio: Bauman os conhecia bem. Judeu polonês que fugiu do nazismo, abrigado na União Soviética, que retornou e ainda foi perseguido no seu país, que emigrou para Israel e que, por fim, desembarcou no Reino Unido, pátria do liberalismo e do racionalismo. Militar na guerra com os soviéticos, marxista ortodoxo, depois crítico (influenciado por Antonio Gramsci), um dos maiores sociólogos e filósofos do século XX, investigou as ambivalências de uma modernidade observada através da lente que o tornou conhecido no mundo, a “liquidez”. Categoria fundamental de seu pensamento, na qual, porém, nunca quis esgotar um percurso sempre voltado para a frente, para estudar as transformações das interações humanas, a linguagem da política, os fenômenos de massa.
Nos migrantes, “portadores de más notícias” brechtianos, dos quais o capitalismo também precisa para reduzir os custos de trabalho e aumentar os lucros, Bauman identifica a encarnação perfeita do medo do “grande desconhecido”, em um mundo cuja ordem é subtraída do controle dos cidadãos, humilhados pela sua própria impotência.
Desumanizados, transformados pelo discurso público em uma força obscura que avança ameaçadoramente, os estrangeiros deixam de ser titulares de direitos – como os direitos de hospitalidade e de visita, evocados por Immanuel Kant em “Paz perpétua: um projeto filosófico”: “O direito de um estrangeiro de não ser tratado de maneira hostil quando chega ao solo de outro” e “o direito que cabe a todos os homens de se proporem como membros da sociedade”.
Cria-se, assim, um dispositivo através do qual uma comunidade já fragmentada e dispersa pode, sem graves conflitos de consciência, excluir o hóspede do perímetro da responsabilidade social, removê-lo da condição humana comum, relegá-lo à realidade paralela dos hotspots, dos centros de identificação e das cotas.
Uma estratégia ainda mais viável na “sociedade da performance” como a atual, em que as relações são avaliadas pela capacidade de produzir resultados, e o indivíduo, não mais garantido e dirigido por uma política incapaz de resolver problemas complexos, é chamado a um contínuo esforço de autoafirmação, até mesmo às custas do outro, percebido como rival na luta de todos contra todos por um posicionamento no mercado.
Assim, o debate sobre a imigração gradualmente deslizou do plano da ética para o da segurança, da prevenção da criminalidade e da defesa da ordem pública, no quadro de um estado de alerta e de emergência permanente.
A essa distorção, Bauman contrapõe uma visão aparentemente utópica: somos um único planeta, uma única humanidade. O único caminho para superar uma crise que é de identidade e de sentido está no encontro, no conhecimento, na compreensão entendida no significado gadameriano da fusão de horizontes.
Para a Europa das fronteiras fechadas e das rotas controladas, o intelectual marxista dirige a exortação retomada da homilia do Papa Francisco em Lampedusa, no dia 8 de julho de 2013: perguntemo-nos quem chorou, quem chorou hoje no mundo?
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