14 Janeiro 2018
Ele verá o seu antigo colega de estudos Jorge Mario Bergoglio em pelo menos quatro ocasiões, agora que ele está prestes a chegar à sua terra chilena: o padre Fernando Montes Matte, 78 anos, também aparece entre os convidados ao La Moneda, quando o bispo de Roma será recebido no palácio presidencial.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada no sítio Vatican Insider, 12-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A imprensa nacional insiste em lembrar a amizade entre a “presidenta” cessante, Michelle Bachelet, e o jesuíta chileno, que teve entre os seus colegas de curso o futuro papa, justamente no momento em que o Concílio começava.
Mas são muitos os motivos que sugerem que se ouça o Pe. Fernando – reitor da universidade jesuíta “Alberto Hurtado” desde a sua fundação (1999) até 2016 –, se se quiser captar armadilhas e nostalgias, esperanças legítimas e expectativas exageradas ou instrumentais que se movem em torno da iminente visita do Papa Francisco.
Como o senhor se lembra de Bergoglio naqueles anos?
Ele era um pouco mais velho do que eu. Na época, “aceleraram” um pouco os tempos da preparação dele. Ele me alcançou quando eu estudava filosofia na Argentina: eu estava no terceiro ano, e ele, no primeiro. Era uma comunidade muito restrita, com muita convivência entre nós: esporte, repouso, retiros... Ele era um bom companheiro. Lembro-me dele como alguém muito inteligente, mas não era um intelectual “acadêmico”. Ele estava muito concentrado na espiritualidade de Santo Inácio e, dada a sua formação, era muito próximo do povo. Acabamos vivendo juntos o anúncio do Concílio Vaticano II. Vivíamos em uma Igreja fechada, em uma Companhia encurvada sobre o passado, e se abriram as janelas... A Igreja começou a olhar para os sinais dos tempos no espírito cheio de frescor do Papa João XXIII.
Continuam circulando boatos vagos e rumores sobre as relações complicadas entre Bergoglio e a Companhia de Jesus na Argentina...
Eu preguei duas vezes os Exercícios Espirituais aos jesuítas argentinos. Pude falar sobre esses casos. O tempo de Bergoglio foi um tempo positivo, de enorme crescimento para a Companhia de Jesus na Argentina, com muitas vocações. Mas, de algum modo, justamente a sua própria personalidade tão atraente fez com que alguns deles se apegassem muito a ele. Criou-se um ambiente muito próximo dele e outros mais distantes. Isso levou a uma certa divisão. Esse fenômeno de uma excessiva proximidade com alguns não existiu quando ele assumiu outros cargos: Bergoglio, como bispo, foi um bispo aberto universalmente a todos. Às vezes, nas congregações religiosas, é perigoso que os superiores sejam atraentes demais.
O que Bergoglio conhece sobre a realidade da Igreja no Chile?
Quando ele passou um ano no Chile como estudante, antes do Concílio, a comunidade em que ele vivia fazia parte dele, e ele não teve uma experiência direta da Igreja chilena. Certamente, ele também viu a diferença de reação entre a Igreja chilena e a Igreja argentina perante a ditadura. No Chile, a Igreja era muito corajosa e lutava pelos direitos humanos. A Argentina era menos. Até mesmo alguns críticos argentinos da Igreja chilena diziam que ela se expunha demais à política, que era intervencionista demais. Mas eu não sei se Bergoglio também pensava assim.
Muitos estão carregando essa visita papal de expectativas e possíveis momentos polêmicos. Não existe o risco de atribuir à visita papal um poder “taumatúrgico”, como se fosse uma espécie de palingênese?
Há muitas pessoas que esperam que, nos dois ou três dias da visita papal, realize-se uma mudança radical da Igreja chilena e também do país. E isso é no mínimo ingênuo. Eu espero que a visita ajude a Igreja chilena a pôr em prática muitas coisas que o papa propôs e que os bispos mostram compartilhar, mas, depois, não se vê uma vontade de aplicá-las.
Quanto e como pesa a comparação com a visita de João Paulo II?
É preciso ler a visita do Papa Francisco tendo em mente o Chile de hoje, que é muito diferente do de 30 anos atrás. Naquele tempo, havia a ditadura; hoje, a democracia. E foram feitos processos e mudanças que tornam inapropriada qualquer comparação. No tempo da ditadura, a Igreja tinha um prestígio imenso, era a instituição mais respeitada do país. Agora, não é mais assim.
E por quê?
Por pelo menos três fatores principais. Em 30 anos, o Chile deu um salto no desenvolvimento que não tem comparação na América Latina. A renda per capita aumentou cinco vezes. O índice de pobreza era de 43%; agora é de 11%. A expectativa de vida é maior no Chile do que nos Estados Unidos. Acima de tudo, há uma revolução com a introdução dos meios de comunicação digital de massa. A pós-modernidade entrou no país e abalou todas as realidades constituídas, incluindo a Igreja. Os partidos estão se dissolvendo. A confiança nas instituições está no nível zero. É uma mudança cultural impressionante, e a Igreja também está envolvida nesse processo.
E então?
Na Igreja, infelizmente, houve muitos casos de abuso de menores. E isso tirou prestígio. E, depois, os bispos, até mesmo bons, mantêm um perfil baixo, são pouco conhecidos. Em suma, passamos de uma situação de cristandade, onde todos eram cristãos por condição sociológica, a uma situação de secularização.
Que sentimentos essa mudança da Igreja provoca? Nostalgias pelo prestígio e pelo protagonismo político dos anos 1970 e 1980? Reações de uma fortaleza sitiada?
No Chile, regulou-se juridicamente o direito ao divórcio, e, mais recentemente, aprovou-se a descriminalização da interrupção da gravidez em alguns casos. O país fez essas mudanças, e a Igreja, por um tempo muito longo, concentrou as suas energias e as suas intervenções públicas nas campanhas para se opor a essas mudanças legislativas.
Em uma situação como a que o senhor descreve, o que é importante perceber? Não convém recomeçar a partir das coisas elementares?
Eu espero que o papa sugira esse caminho. E que sugira a todos que nós não avançamos na moral impondo mais leis e novos pecados, mas propondo um ideal que se manifesta na vida modificada e moralmente coerente. É preciso dar testemunho reconhecendo que a Igreja não é mais hegemônica na sociedade. Embora nos processos de secularização e embora reconhecendo que, no Chile, não houve, sequer no passado, uma participação unânime na missa, há uma espiritualidade popular que, por exemplo, pode ser vista nas multidões que vão em peregrinação ao Santuário da Virgen de Lo Vásquez, no dia de Nossa Senhora Imaculada: mais de um milhão de pessoas, em um país pequeno como o Chile... Isso significa que, no coração do povo, permanece uma fé tenaz, que talvez não tem “forma” eclesial. Bergoglio sempre olhou para essa realidade popular, mesmo quando era bispo. É um olhar sobre as dinâmicas eclesiais que supera polarizações entre uma imagem da Igreja apenas social e política e uma imagem da Igreja em luta contínua apenas para defender valores morais.
Escândalos sexuais na Igreja: quais fatores tornaram essa crise tão devastadora? E esse fenômeno não é o sintoma de um mal mais profundo, que não pode ser resolvido apenas pensando nos procedimentos de controle e de punição?
Há uma hipersexualização da vida social que impregna tudo e condiciona a todos, incluindo os padres. E, talvez, de uma Igreja que nos últimos anos falou principalmente de moral sexual, reivindica-se uma maior coerência. E ela é atingida com mais dureza quando os homens da Igreja se mancham com tais abusos. Tudo se torna mais pesado e pungente quando existe uma Igreja “moralizadora”.
No entanto, não se pode negar uma obstinação mórbida.
A Igreja deve tomar medidas adequadas para enfrentar a crise. Mas o caso dos abusos sexuais do clero assumiu valores simbólicos exorbitantes também porque envolveu uma elite de sacerdotes ligados à “classe alta”. Sobre o caso do padre Fernando Karadima, escrevem-se livros, fazem-se programas de televisão, até mesmo filmes. E isso se torna como que uma marca de infâmia que pesa sobre toda a Igreja e sobre todos os padres.
Esses casos condicionarão a visita papal?
Um problema que eu não sei como vai ser resolvido é o do bispo Juan Barros, nomeado pelo Papa Francisco para liderar a diocese de Osorno. Ele faz parte dos cinco bispos considerados próximos do padre Karadima. Na diocese, há grupos que o contestam e anunciam manifestações. O papa possui informações diretas do bispo e sobre o bispo. Mas talvez esteja menos informado sobre o que a nomeação provocou e está provocando no país. Até mesmo os bispos se distanciaram de Barros, e muito poucos bispos foram à sua posse na diocese. O papa tem razão em dizer que, contra Barros, não há provas e nenhuma condenação. Mas ele se tornou o símbolo dessa situação ligada àquele grupo de pessoas próximas de Karadima, embora não tenha culpas pessoais. E, mesmo que não possa ser acusado individualmente, talvez, à luz de tudo isso, a sua nomeação não foi prudente.
O senhor disse que foram os jesuítas que convenceram os espanhóis a reconhecer a soberania Mapuche, porque uma guerra contínua com esse povo não convinha, teria sido extenuante...
A conquista espanhola foi uma conquista de invasão, e a Igreja chegou aqui com eles, com os invasores espanhóis. Aqui, eles encontraram um povo guerreiro e valoroso, que havia sido capaz de resistir ao Império Inca. Eles também fizeram uma resistência implacável com os espanhóis. O descobridor espanhol do Chile teve que abandonar a obra e retornar ao Peru. Quando os conquistadores voltaram, os Mapuche massacraram o primeiro governador e um dos sucessores. O segundo poema épico espanhol, a Araucana, é inspirado na conquista espanhola do Chile. Depois, os jesuítas aprenderam a língua dos Mapuche, insistiram que a fé não podia ser imposta pela força e foram falar com o rei da Espanha para convencê-lo a terminar a guerra ofensiva e enviar sinais de paz aos Mapuche. Embora ela tenha chegado aqui no rastro dos espanhóis, a Igreja logo se tornou um fator de defesa do povo Mapuche e dos seus direitos.
O que essa abordagem do passado sugere para a situação atual?
No século XIX, os chilenos retiraram todas as terras do povo Mapuche e esmagaram a sua língua e a sua cultura, de acordo com a concepção do século XIX do Estado liberal, que não admitia a pluralidade e a diferença cultural. Na linha dessas experiências históricas passadas, é preciso que os chilenos tomem consciência do papel desempenhado pela Igreja para com os povos indígenas: um papel que muitos agora desconhecem. A Companhia de Jesus, ainda em 1620, durante a sua Congregação geral provincial, chamou a atenção para a necessidade de pôr fim ao trabalho escravo e favorecer outras condições. Tratava-se de um documento social de primeira categoria e atestava uma conquista ocorrida de maneira vergonhosa. A abordagem eclesial correta à questão Mapuche leva tudo isso em consideração. E reconhece que pequenos grupos violentos de fomentadores não representam o povo Mapuche e as suas reivindicações.
O senhor, pessoalmente, espera algo especial da visita do papa?
Todos os dias, mais do que me interrogar sobre como o país irá acolhê-lo e sobre qual Igreja ele encontrará, eu me pergunto como eu vou acolhê-lo. Como diz Santo Agostinho: se os tempos são ruins, mude você, e os tempos mudarão, porque o tempo é você... Existe o risco de que a atenção midiática se concentre em elementos anedóticos ou nos escândalos, impedindo que se vá até o fim. Até mesmo a “presidenta” Michelle Bachelet, não sendo católica, reconheceu e apreciou a grande mensagem humanista do papa com um artigo no jornal El Mercurio.
Eu espero que, depois da viagem, a Igreja chilena se torne mais solícita para seguir o papa no caminho do Evangelho, não só em palavras. Agora, por exemplo, a sociedade chilena está lidando com um fenômeno de imigração inédito. Chegam haitianos, venezuelanos, colombianos. Existem abusos e exploração dos imigrantes no campo de trabalho. E a legislação chilena parece obsoleta, não é adequada para enfrentar o fluxo migratório atual. Como jesuítas, estamos trabalhando para tentar adequar a legislação à realidade de hoje.
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Chile. ''É assim que vou esperar o meu colega Bergoglio''. Entrevista com Fernando Montes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU