30 Dezembro 2017
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do Ano Novo do Ciclo B (01/01/2018) que corresponde ao texto bíblico de Lucas 2,16-21.
A celebração do “Ano novo”, prática vivida em todas as culturas e religiões, parece responder a um desejo humano de “começar de novo”.
“O homem foi criado para que no mundo houvesse um começo”. Este pensamento de S. Agostinho deveria iluminar nossa vida ao longo deste novo ano que se inicia.
Desde que o ser humano surgiu da terra e sobre a terra, o mundo criado ganhou um “novo início”.
Nós o estamos reconstruindo incessantemente. “O ser humano é criado e é criativo”; pois é exatamente o dom de re-começar, sempre, que nos caracteriza como humanos.
Caminhamos hoje para algo novo; somos convocados pelo futuro a realizar projetos diferentes, possibilidades novas, “coisas” que nos acenam lá de longe e nos fazem uma proposta: “re-criem-nos”; coisas que surgem sob a forma de um desejo, de uma esperança... mas que sempre dependem de nós para se tornarem concretas. Elas exigem empenho, dedicação e criatividade.
Habita em nosso interior uma nostalgia de alguma coisa mais original, de um novo início e da tentativa de outros caminhos. Trata-se de uma aspiração de algo mais humilde e simples, que nasce do “húmus”, da terra que somos. É o desejo de sermos nós mesmos simplesmente, sinceramente, prazerosamente.
É a necessidade de viver re-começando, sempre.
A atitude do “recomeçar contínuo” revela-se como oportunidade para ativar outros recursos internos e colocar a vida em outro movimento, mais inspirado e criativo.
É inevitável que na existência humana se façam presentes a dor, o cansaço, a frustração, a repetição mecânica..., que ameaçam afogar as melhores expectativas. Frente a essa constatação, compreende-se a voz que brota das nossas entranhas e diz: “comecemos de novo”. A celebração do “ano novo”, neste sentido, significa a oferta de uma nova oportunidade à vida, para que ela tenha um novo sentido.
Somos impulsionados, continuamente, a romper com o formalismo e o convencional, a vida marcada pela ordem, normas claras e recompensas seguras... e caminhar para uma vida mais audaz e incerta, de hori-zontes amplos, de exigências que nos convidam a “começar de novo”, de significado mais universal.
Não caminhamos empurrados pelas costas, nem nossa vida é obra da inércia. Fomos feitos para o “mais”.
Ver a novidade em uma simples mudança de datas do calendário não passa de uma mera convenção. O 01 de janeiro não é mais “novo” que o 31 de dezembro. E, depois do rito de “passagem de ano”, tudo continuará sendo como era ontem, ou inclusive pior, porque, a ressaca da celebração será acompanhada pela frustração de comprovar que nada mudou.
É óbvio que a novidade não é “algo” que possamos encontrar “fora” para ser incorporada à nossa existência cotidiana. O máximo que podemos encontrar nesse nível são aparências de novidade que, satisfazendo por um momento nossa curiosidade, rapidamente nos farão voltar ao ritmo da rotina.
O “novo” está dentro de nós. Estamos no tempo para crescer na consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “kronos” mas no “kairós” (tempo de plenitude e de sentido). Nosso verdadeiro ser é constituído pelo divino que há em nós, e isso é eterno, é sempre novo. Somos já a plenitude e estamos no eterno.
Nesse sentido, novidade é sinônimo de viçoso, abertura, presença, vida; a vida sempre é nova, e vai acompanhada de atitudes e sentimentos de surpresa, admiração, louvor, gratidão, comunhão e plenitude.
“E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam” (Lc 2,18).
Seria um crime transformar a vida num velódromo, dando voltas sempre em torno ao mesmo circuito de 365 dias, sem avançar nada.
Vida expansiva, projetada para todas as direções e sintonizada com as surpresas, grandes e pequenas, que a plenificam e lhe dão um sentido de eternidade. “A vida é demasiado breve para ser mesquinha” (Disraeli).
Tudo isto é o que, saibamos ou não, nosso coração aspira. Mas, habitualmente, o buscamos onde não pode encontrar-se. Os pastores, movidos por uma sensibilidade especial, foram capazes de encontrar onde ninguém pensaria encontrar:
Este ano será novo se aprendermos a crer na vida de maneira nova e mais confiada, se encontrarmos gestos novos e mais amáveis para conviver com os outros, se despertarmos em nosso coração uma compaixão nova para com aqueles que sofrem.
Quem sabe, o Evangelho de hoje nos possa inspirar para que, algum dia, aprendamos a viver cada mo-mento como se fosse o último, ou melhor, o mais completo, o mais ditoso: a melhor oportunidade para uma presença inspiradora, para o abraço mais acolhedor, para a palavra melhor pronunciada ou o silêncio mais criativo, para o gesto solidário mais espontâneo... É como se cada momento fosse sagrado e eterno.
O cristão é aquele que, como os pastores de Belém, conserva límpido os seus olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está sendo germinada em sua vida. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido”. Qual foi o novo e o surpreendente que encontraram: um recém-nascido deitado na manjedoura. Trata-se do “novo” despojado de ornamentos, de poder, de riquezas.
Tiveram olhos e ouvidos abertos para se deixarem impactar pela imagem, humanamente simples; o encontro com o “Deus que se humanizou” possibilitou o retorno à eterna infância, escondida na própria interioridade.
Porque descobriram facilmente o Infinito, passaram a viver humildemente sua condição humana na paz, na alegria e na gratidão.
A partir do “olhar” admirado dos pastores, iniciar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do seu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a cortesia, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar junto...
- Re-cor-dar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.
- Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt. 5,8).
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Ano novo: onde encontrar a novidade? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU