01 Junho 2017
"Se, por um lado, a greve de 1917 representou o ápice do anarquismo no movimento operário brasileiro, por outro, mostrou todas as suas limitações, que em pouco tempo acabariam por reduzir e mesmo eliminar a sua influência".
O artigo é de Augusto C. Buonicore, publicado originalmente na revista Debate Sindical, n. 12, de set/out de 1992 e reproduzido por Vermelho, 30-05-2017.
Augusto Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
A Paula Beiguelman
“Em São Paulo só não ganha dinheiro quem não trabalha, só é pobre quem é vadio.” (Correio Paulistano, junho/1917)
A situação era tensa. Um grupo de operários chegou à porta do cotonifício Crespi e conclamou os trabalhadores a aderirem ao movimento grevista, que tinha se iniciado havia dias. A polícia, decidida a não permitir piquetes, interveio violentamente. O saldo do conflito: um morto. A vítima chamava-se José Ineguez Martinez, era sapateiro e tinha apenas 21 anos. Depois deste dia São Paulo não seria mais a mesma.
Numa fria manhã de julho, dia 11, uma multidão de cerca de 10 mil pessoas caminhou lentamente pelas principais ruas da cidade paralisada, numa última homenagem ao operário assassinado. As bandeiras vermelhas e negras tremulavam entre choros e sentimentos de vingança. A São Paulo proletária estava nas ruas, nunca se tinha visto aquilo antes.
O cortejo fúnebre seguiu lento pelo aterro do Carmo – hoje continuação da Avenida Rangel Pestana –, tentando se dirigir ao Palácio do Governo, mas foi impedido pela polícia. Seguiu então pela Rua Floriano Peixoto até a praça XV de Novembro. De repente, a multidão parou e só se ouviu um grito: “Libertem Nalepinsk! Libertem Nalepinsk!”.
Nalepinsk, outro sapateiro, preso por ter denunciado o assassinato de Martinez. Uma comissão se deslocou até a Secretaria da Justiça estadual para exigir a sua libertação. O delegado-geral, acuado, prometeu soltá-lo logo após o enterro. Uma vitória. A primeira. A multidão avançou e chegou à Praça da Sé. Agora era a vez dos discursos. O cortejo então seguiu para o cemitério do Araçá, sua última parada.
Ali, diante do túmulo de Martinez, os oradores se revezavam. Eram homens e mulheres do povo. Na voz traziam a indignação e a revolta. “Soldados, não deveis perseguir vossos irmãos de miséria. A fome reina em nossos lares, e os nossos filhos nos pedem pão. Os perniciosos patrões contam, para sufocar as nossas reclamações, com as armas de que vos armaram (...). Soldados! Recusai-vos ao papel de carrascos.”. Parte da assistência chorava. Nem mesmo os soldados, escalados para vigiar o movimento, contiveram-se. Notava-se que alguns deles enxugavam os olhos com as mangas de suas fardas. Um operário morreu, e agora?
Ser operário naqueles dias não era nada fácil, nunca foi. Trabalhava-se em média 14 horas diárias, sem férias, sem descanso semanal remunerado e sem nenhum tipo de assistência pública. Para eles apenas o trabalho. “Produzir, produzir, deve ser o lema dos paulistas”, afirmava a imprensa burguesa. Mas, produzir para quem? Começavam a se perguntar os operários.
Por todo este trabalho, recebiam parcos salários que não eram o suficiente para o sustento de suas famílias – o que levava mulheres e crianças a se empregarem nas fábricas, submetendo-se às mesmas condições de trabalho dos homens e recebendo menores salários. Os locais de trabalho eram insalubres, as jornadas longas, sem horário para as refeições, que eram feitas ao lado das máquinas. Afinal, São Paulo não podia parar. “Oh! Pobre dos proletários!”, dizia uma canção anarquista.
Em 1912, 67% dos trabalhadores têxteis eram mulheres. Em 1918, mais de 50% do operariado fabril eram constituídos de menores de idade, como podemos constatar neste trecho de artigo publicado em um jornal da época: “Assistimos a entrada de cerca de 60 menores, às 7 horas da noite (...). Essas crianças saem às 6 horas da manhã. Trabalham, pois, 11 horas a fio em serviço noturno, apenas com um descanso de 20 minutos (...). O pior é que elas se queixam de serem espancadas pelo mestre de fiação (...). Alguns apresentam mesmo ferimentos produzidos por uma manivela. Trata-se de crianças de 12, 13 e 14 anos.”.
O custo de vida aumentava dia a dia. Em 1916, os gêneros alimentícios subiram mais de 60%, sem que houvesse qualquer reajuste salarial. Começavam a faltar alimentos e toda a produção nacional era vendida à Europa, que estava em guerra. A fome batia às portas das famílias dos trabalhadores. É neste contexto dramático que teve início a onda da greve que abalaria o país.
Em julho de 1917, o que parecia mais uma simples greve – como outras tantas que já haviam ocorrido desde o começo do século – acabou por desembocar no maior movimento de contestação operária da historia do Brasil até aquele momento.
E os operários disseram não!
Uma comissão de operários do Cotonifício Crespi se dirigiu à direção da empresa exigindo um aumento salarial de 20%, baseado na elevação do custo de vida. O dono da empresa não aceitou o pedido. Os operários o ameaçaram com uma greve. A resposta patronal foi fechar a fábrica. A paralisação então se ampliou estendendo-se a outras categorias.
No dia 8 de julho ocorreu o primeiro incidente na porta da fábrica. Um choque entre operários e policiais deixou inúmeros feridos, e os ânimos se acirraram. Na manhã do dia seguinte, novo conflito, agora na porta da Companhia Antártica. Trabalhadores enfurecidos tomaram de assalto um caminhão da empresa de bebida e destruíram as garrafas por ele transportadas. A massa seguiu em passeata pelo Brás até a fábrica de tecelagem Mariângela. Ali ocorreu um novo e mais grave confronto com a polícia. O jovem Martinez caiu mortalmente ferido. Um operário morreu, e agora?
Saindo do enterro do sapateiro, a multidão dirigiu-se à Praça da Sé para um grande comício de protesto. Ali exigiu-se a reabertura das ligas operárias, proibidas de funcionar no dia anterior, a libertação dos grevistas presos e a punição dos assassinos de Martinez.
O Comitê de Defesa Proletária, formado no dia anterior, assumiu a direção do movimento e apresentou a sua pauta de reivindicações: aumento de 35% nos salários; proibição do trabalho de menores de 14 anos; abolição do trabalho noturno para menores de 14 anos e mulheres; jornada de trabalho de 8 horas; respeito ao direito de associação; congelamento de preços dos alimentos e redução dos aluguéis.
Nos bairros operários cresceu o descontentamento. Milhares de populares saquearam lojas e armazéns, especialmente os que estocavam alimentos. O número de grevistas crescia dia a dia. De 10 mil subiu para 20 mil – mais de quarenta mil trabalhadores entrariam em greve durante o movimento. Eram sapateiros, eletricitários, trabalhadores das companhias de gás, mecânicos e a quase totalidade dos operários de pequenas oficinas, que compunham o grosso do proletariado do período.
A repressão recrudesceu e a resposta popular foi imediata: ergueram-se barricadas. Os grevistas tomaram os bondes da cidade. Alguns foram destruídos pela fúria popular. “Uma multidão de garotos”, afirmou o jornal O Estado de S. Paulo, “se entregou a todos os excessos, escolhendo para alvo de suas loucuras os carros elétricos (...). E o que é mais deplorável, é que um bando de mocinhas, infelizes operárias de fábricas, imitou os gestos da garotada, tomando conta de três elétricos no Largo da Sé.”. Os grevistas tentaram ocupar a 5ª delegacia, localizada no Brás, mas não conseguiram. O posto policial passou a ser defendido por tropas de Infantaria e a Cavalaria.
No largo da Estação Norte, os policiais tentaram invadir um Café, onde se reuniam alguns líderes grevistas. Foram recebidos à bala. No tiroteio que se seguiu, vários caíram feridos. Novamente, apareceram as barricadas com sacos de mantimentos e veículos tombados. As ruas do Brás e da Mooca transformaram-se, instantaneamente, num labirinto, que ninguém ousava percorrer. No dia 13 de julho, os jornais publicaram uma nota da Delegacia Geral: “Pedimos ao povo pacífico que se recolha às suas casas para não ser recolhido no meio dos desordeiros (...), pois a polícia (...) vai manter a ordem, para isso empregando os meios mais enérgicos.”.
Frente aos constantes casos de insubordinação da Força Pública e da Guarda Civil, que se recusavam a reprimir os grevistas, foram solicitadas tropas do interior. Navios de guerra aportaram no porto de Santos. Marinheiros foram destacados para reprimir alguns populares que saqueavam os armazéns da cidade. “A polícia não permitirá reuniões nas praças e ruas, dissolverá pela força os que pretenderem ir contra esta resolução”, afirmava um novo comunicado do governo. Tropas de Infantaria e a Cavalaria percorriam as ruas dispersando aglomerações.
Na sexta-feira, faltavam pão, gás e transporte. Um grupo de operários tentou parar os poucos bondes que ainda teimavam em circular, escoltados por policiais fortemente armados. Novo tiroteio, nova vítima fatal: uma menina de apenas 12 anos. A fuzilaria prosseguiria. Outro morto, o pedreiro Nicola Salermo. O que era uma simples greve por aumento salarial e melhoria de condições de trabalho estava se transformando numa insurreição operária.
Diante do impasse nas negociações entre operários e patrões, formou-se uma comissão de jornalistas de diversas publicações da capital paulista. O seu objetivo era mediar o conflito. Desse esforço nasceu uma proposta de aumento geral de salários de 20%, respeito ao direito de associação e não dispensa dos grevistas. O governo, por sua vez, comprometeu-se a libertar os presos e reconhecer o direito de reunião. Afirmou também que “o poder público intercederá (...) para que sejam estudadas e votadas medidas que protejam os trabalhadores menores de 18 anos e as mulheres no trabalho noturno.”. Propostas que foram aceitas prontamente pelo Comitê de Defesa Proletária.
O Comitê decidiu, então, comunicar a proposta em três grandes comícios: no Largo da Concórdia, na Lapa e no Ipiranga. Em todos eles foi aceita a contraproposta patronal e decidida a volta ao trabalho, sob a condição de se retornar à greve caso os patrões descumprissem o acordo. “Com a volta de alguns milhares de operários ao trabalho, a cidade retomou ontem o aspecto que tinha antes de se iniciar o movimento grevista”, noticiou aliviado O Estado de S. Paulo. Mas, a calma era apenas aparente. Depois destes dias turbulentos, a cidade de São Paulo não seria mais a mesma. A paisagem urbana havia mudado com a entrada em cena de um novo personagem: o proletariado.
Embora os acontecimentos de julho de 1917 tenham representado uma das mais belas páginas da luta do proletariado brasileiro, apresentou também suas limitações. Pouco a pouco a maioria das conquistas foi sendo retirada pelos patrões. As perseguições e prisões dos líderes não só continuaram como aumentaram. As promessas da burguesia, pouco a pouco, transformaram-se em pó.
Primeiro, apesar de combativos, os operários constituíam-se em minoria da população e se encontravam dispersos em pequenas oficinas, existindo, assim, uma fragilidade nas suas organizações de classe. Segundo, esta fragilidade deu lugar à proliferação de ideias anarquistas, típicas dos pequenos artesãos. O anarquismo era a força hegemônica no setor mais combativo do movimento sindical brasileiro. Eles recusavam-se a organizar os operários de forma mais centralizada, negavam a necessidade de o proletariado constituir um partido classista e revolucionário – única maneira de travar uma luta política consequente contra a burguesia e o seu Estado.
Esta concepção da luta operária os prendia, fundamentalmente, aos marcos da luta estritamente econômico-corporativa. Questões-chave – como ampliação da democracia (eleições livres, voto secreto, direito de voto aos analfabetos, a mulheres e estrangeiros residentes no país, legalização dos partidos de esquerda), a luta pela reforma agrária e contra o imperialismo – passavam ao largo das reivindicações anarquistas. Num país dependente, composto por uma população majoritariamente camponesa, dirigido por uma oligarquia agrária, que excluía grande parte do povo da efetiva participação política, estas seriam bandeiras que poderiam trazer aliados importantes aos operários em luta.
Somente assim poderiam se constituir em força político-social autônoma, e disputar efetivamente a hegemonia da sociedade brasileira e garantir as condições indispensáveis à consolidação e à ampliação das conquistas do conjunto dos trabalhadores.
Se, por um lado, a greve de 1917 representou o ápice do anarquismo no movimento operário brasileiro, por outro, mostrou todas as suas limitações, que em pouco tempo acabariam por reduzir e mesmo eliminar a sua influência. A Revolução Russa de outubro de 1917 mostrou outro caminho: O da organização do proletariado enquanto partido independente, como instrumento de luta pela conquista do poder político e construção de um Estado socialista de caráter proletário. Coisas então incompreensíveis para os anarquistas. Uma das consequências da greve geral de 1917 – e de outros embates que se seguiram – foi a fundação do Partido Comunista do Brasil, ocorrido em março de 1922. Este foi o marco da crise geral do anarquismo e representou o início de uma nova fase na história da luta dos trabalhadores brasileiros rumo à sua libertação.
Bibliografia
BANDEIRA, M.; MELO, C.; ANDRADE, A. T. O ano vermelho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967 (há uma edição atual da editora Expressão Popular).
BEIGUELMAN, Paula. Os companheiros de São Paulo: Ontem e hoje. São Paulo: Cortez, 2002.
KHOURY, Yara Aun. As greves em São Paulo. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1981.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A greve geral paulista de 1917 e os seus reflexos no movimento operário brasileiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU