27 Mai 2017
O corpo humano e a corporeidade das relações estão atravessando, neste nosso tempo, uma estranha conjuntura. Aplicam-se neles, quase com obstinação, forças aparentemente contrastantes entre si, mas que convergem em ressaltar um mal-estar generalizado em relação a eles. Em todo o caso, hoje, o corpo parece sofrer a conjunção de forças que exercem uma inusitada violência sobre ele.
A reportagem é de Marcello Neri, publicada por Settimana News, 17-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por um lado, temos o corpo objeto de um cuidado meticuloso, cosmético, totalmente concentrado na aparência da sua exterioridade. Saudabilismo e esteticismo se aplicam sobre ele para torná-lo mais eficiente, atraente para o olhar, fazendo dele uma espécie de manifesto publicitário, estendido ao olhar de todos, de um eu cada vez mais inseguro e hesitante. Nessas paragens do corpo, movem-se uma indústria e um comércio que obtêm dividendos enormes com isso. O mal-estar do corpo, sabiamente induzido pelas lógicas do mercado, tornou-se uma máquina consumidora obsessiva que produz enormes somas de dinheiro. Imagem de um eu perdido, incapaz de se aceitar e de aceitar que a passagem da vida deixa marcas indeléveis.
A multiforme cosmética do corpo induz, portanto, a necessidade de um esquecimento da própria história e da própria vivência. Sobre isso operamos, para que não se possa ver que algo realmente aconteceu conosco e está gravado em nós.
Por outro lado, a obra digital de uma definitiva superação da dimensão corporal do humano, não como sonho, mas como obra já bem estabelecida, acompanhada pela promessa de uma libertação definitiva, de uma permanência do eu para além da sua história efetiva. Imortalidade como mera continuação, salvação digital da produção neurológica do nosso cérebro. Acumulação do saber, que somos sem ser só isso, em um disco rígido com duração ilimitada.
O saber da mente finalmente resgatado do império dos sentidos, que, porém, continuamos cultivando obstinadamente no primeiro lado da gestão do corpo ao qual nos referimos – contradição que vale uma revelação. Fruto de uma dupla operação: projeção do nosso cérebro na interface digital, antes, e projeção de retorno das elaborações algorítmicas, alma do software, no nosso cérebro, depois.
Vivemos constantemente nesse pêndulo, nova terra prometida de uma expansão ilimitada dos nossos poderes neuronais. Talvez nos esquecendo de uma pequena coisa. Ou seja, que o cérebro funciona como funciona justamente porque é um órgão do corpo. O grande ausente nesse jogo de espelhos que nos cativa e captura rapinosamente.
A mente sabe precisamente na sua ligação com o corpo, e não saberia assim se ele não existisse. No limite, como obstáculo ambivalente a ser posto teoricamente entre parênteses, o sentir (corpóreo) continua como o convidado de pedra do saber da mente. E é muito provável que ele tenha sido capaz de chegar ao ápice dos seus melhores impulsos e dos mais futuristas justamente graças a esse seu vínculo corpóreo. E na tensão, muitas vezes insuportável, de um corpo que para e de uma mente que continua funcionando no auge das suas capacidades, gera-se o sonho de um destacamento voltado à preservação do poder da mente e do saber que ela continua produzindo.
Sem se perguntar se esse saber, na sua lucidez cristalina e poder intacto, teria sido garantido para nós justamente assim, independentemente do impasse em que o corpo caiu. Não poderia ser que justamente o limite do corpo, sofrido como um fracasso, e a sensação neuronal dessa detenção ou regressão da funcionalidade corpórea são exatamente a gênese de um pensamento e de um saber que gostaríamos de colocar em outro lugar?
Se dermos uma olhada na literatura de ficção-científica, podemos perceber que a máquina, projeção digital e algorítmica dos poderes da mente, cultiva um sonho prometeico, um desejo que subverte o seu destino a que foi programado: o de se tornar senciente, de inventar para si um algoritmo que lhe faça degustar aquilo que não é: um corpo que sente, sofre, ama. Regressão ao útero cerebral que lhe deu à luz, como desejo dos desejos da inteligência artificial.
O encanto assim sentido, sofrido, percebido da máquina senciente, além disso, não está tão distante do encanto do “Imortal”, de Borges, que acessa a experiência comumente humana da finitude:
“Nos arredores, vi um caudal de água clara; provei-a, levado pelo costume. Ao subir à margem, uma árvore espinhosa me lacerou o dorso da mão. A inusitada dor me pareceu muito viva. Incrédulo, silencioso e feliz, contemplei a preciosa formação de uma lenta gota de sangue. De novo sou mortal, repeti a mim mesmo, de novo me pareço com todos os homens. Nessa noite, dormi até o amanhecer” (J. L. Borges, O Aleph, Editora Globo, 1998, tradução de Maria Kodama).
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O corpo e as técnicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU