31 Outubro 2016
"O Papa Francisco celebrará em Lund apenas o Lutero reformador. A sua vida posterior não lhe diz respeito. Eu não sei se ele vai dizer isso explicitamente em Lund. A mim, ele disse, e eu acho oportuno referi-lo."
O comentário é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 30-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero afixou na porta da catedral de Wittenberg as suas 95 teses que inauguraram oficialmente a religião luterana, mas, ainda no ano anterior, o conteúdo dessas tese tinha sido elaborado e publicado nas reuniões dos monges agostinianos dos quais Lutero tinha sido nomeado vigário geral.
Acontece que, dessa mesma data, completa-se nesta segunda-feira, meio milênio. O nosso Papa Francisco não podia se eximir de participar desse evento, que será celebrado em Lund, na Suécia, pelos luteranos liderados pelo representante mundial dessa religião. A missa, naturalmente, será celebrada por eles. O Papa Francisco participará dela rezando e, depois, fará um discurso sobre a Reforma.
Eu tive a honra de receber, há três dias, um telefonema dele, que desejava – assim me disse – falar comigo sobre aquela Reforma que teve uma enorme importância para toda a Igreja e pôs em ação, na época, o luteranismo, mas, depois, toda a galáxia protestante, que já conta, na sua inteireza, com 800 milhões de fiéis. Os luteranos, propriamente ditos, são uma minoria, 80 milhões no total, ou seja, um décimo do protestantismo. Os católicos são um 1,3 bilhão.
Se forem acrescentados os ortodoxos, os anglicanos, os valdenses, os coptas, superam-se os 2 bilhões de almas fiéis. O Papa Francisco sabe que eu estudei muito a fundo a vida de Lutero e a sua Reforma e me perguntei qual era a relação de Francisco com as outras Igrejas cristãs além dos ritos e das crenças.
Francisco – é bom lembrar – acredita na unicidade de Deus. Isso significa que todas as religiões, começando pelas monoteístas, mas também as outras, acreditam naquele Deus ao qual chegam, cada uma, através das suas Escrituras, da sua teologia, da sua doutrina e dos seus cânones. Toda, portanto, deveriam confraternizar, e esse é o resultado que Francisco persegue, embora estando bem consciente de que serão necessários muitos e muitos anos para conseguir isso.
Mas, quanto às outras Igrejas cristãs, o objetivo não é apenas a confraternização, mas até a unificação. Não parece uma incongruência se eu disser que a unificação das Igrejas cristãs é ainda mais difícil do que a confraternização com as outras religiões. A razão dessa dificuldade é compreensível: a sua unificação põe em jogo também as estruturas litúrgicas e canônicas, e também deve dizer respeito a origens divisionistas das quais a luterana foi a primeira cronologicamente. Talvez a segunda, se considerarmos os cátaros, cujo movimento religioso ocorreu no século XIV e provocou até uma Cruzada contra eles e a sua aniquilação até física por parte de tropas mobilizadas pelos Senhores da Provença. Os únicos religiosa e fisicamente poupados foram os seguidores de Pedro Valdo. A Igreja Valdense ainda está presente em poucas comunidades do Piemonte e também em Roma, mas conserva uma autoridade amorosa. O Papa Francisco encontrou no ano passado os seus dirigentes em Turim e até pediu perdão em nome da catolicidade por aquela deplorável Cruzada que banhou de sangue seres humanos, estes também encaminhados no caminho do mal para defender a própria vida.
Para concluir a primeira parte destas reflexões, acrescento que Lutero tocou o auge da sua vida de reformador nos anos que vão de 1510, quando começou a condenar a simonia da Igreja de Roma com a venda das chamadas indulgências e foi excomungado pelo papa Médici Leão X, até as teses de Wittenberg de 1517 e até 1520. Mas, depois, o seu pensamento mudou, assim como seus atos. Ele quis ser o soberano absoluto da sua Igreja, tornou-se conservador, prepotente, casou-se, misturou-se com a política e, no fim, decidiu que os luteranos deviam fazer a guerra não apenas aos católicos, mas também a todas as Igrejas protestantes, da de Calvino aos huguenotes franceses. Por fim, decidiu que os luteranos deviam ser apenas a única religião da Alemanha.
O Papa Francisco, de fato, celebrará em Lund apenas o Lutero reformador. A sua vida posterior não lhe diz respeito. Eu não sei se ele vai dizer isso explicitamente em Lund. A mim, ele disse, e eu acho oportuno referi-lo.
* * *
Mas o tema sobre o qual ele me entreteve mais longamente diz respeito à Reforma da Igreja. Da sua Igreja: a Misericórdia e, portanto, os pobres, a sua acolhida se são imigrantes, seja qual for a sua religião ou nenhuma. É provável que, sobre esse tema, Francisco também fale em Lund e, no dia seguinte, em Malmö, onde se encontrará com os católicos daquela região por ocasião dos dias dos santos e dos mortos no calendário eclesiástico.
A Misericórdia, à qual está intitulado o Jubileu proclamado por ele e ainda em curso até o fim deste ano, não é a mesma coisa que o perdão. É um dom espiritual que o Senhor dá a todos nós, pelo simples fato de nos ter criado e que nós, por nossa vez, devemos dar a todos nos modos e nas necessidades que demonstram e que cada um de nós deve dar ao próximo. Essa é a tese do Papa Francisco. Dir-se-á – e é verdade – que essa também é a tese da Igreja, em teoria. Mas, na prática, são muitos os bispos que a aplicam de modo restritivo. O exemplo mais marcante diz respeito às comunidades e às famílias. Muitos bispos e muitos sacerdotes ferem ou até mesmo negam o seu dom de misericórdia àqueles que não estão alinhados com os cânones eclesiásticos.
Francisco não pensa assim e, sobre isso, adota o ponto central da Reforma luterana, quando supera a intermediação dos sacerdotes entre os fiéis e Deus. A relação é direta: cada indivíduo que busca a Deus pode, naturalmente, se valer do encorajamento e até das intermediação dos sacerdotes, mas também pode buscar e encontrar essa relação com Deus diretamente: trata-se de uma necessidade que a sua alma sente, e é a alma que busca, encontra e é por ela iluminada.
Lembrem-se do "Inominado" de Manzoni quando, depois de ter sido, por muitos anos, o senhor do mal, sente de repente dentro de si uma imensa dor e a necessidade de ser misericordioso para com as suas vítimas e pede para se encontrar com o cardeal Borromeo, que o exorta e lhe explica como dentro dele nasceu a misericórdia e o desejo de ter uma relação com Deus. Isso nos é dito com grande eficácia pelo Manzoni, sobre como nasce a misericórdia na alma e qual é a função do clero.
Na realidade, essa é a profunda razão que levou Francisco a estar presente em Lund no dia do aniversário dos 500 anos da Reforma luterana. A Igreja sempre aceitou ou, melhor, encorajou a relação direta das almas com Deus, mas, ao mesmo tempo, reiterou que essa relação direta é realizado através do clero, que administra os sacramentos. De fato, ocorre assim e sempre ocorreu, mas, em um tempo bastante remoto, eram os próprios fiéis que se administravam os sacramentos e a eucaristia, em particular, o único sacramento que Jesus criou, de acordo com todos os Evangelhos, durante a última Ceia, transformando o pão e o vinho no seu corpo e no seu sangue.
Os cristãos dos primeiros séculos faziam assim, e essa é – em última análise – a íntima essência daquilo que o atual pontífice pensa, não na forma, mas certamente na sua substância.
A Misericórdia de Francisco é a revolução que ele está fazendo e que não é nada fácil. Envolve até mesmo aspectos evidentes de política religiosa, quando vê em perspectiva uma sociedade espiritualmente global, integrada pelas culturas, pela fraternidade e pela amizade fraterna dos espíritos. Assim também se explica o nome do Santo de Assis, que confraternizava com tudo o que vive, do lobo à flor, dos irmãos em Cristo aos muçulmanos. E até mesmo (é verdade, Francisco?) com a irmã morte.
Assim pensamos e, em parte, dissemos juntos, confraternizando, duas pessoas de sentimentos diferentes e de modos diferentes de viver. Todos são irmãos porque são diferentes, e essa é a beleza da vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Francisco, Lutero e o valor compartilhado da Reforma. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU