24 Setembro 2016
O ano é 1958. Pier Paolo Pasolini acaba de conhecer Laura Betti por intermédio de Alberto Moravia e Elsa Morante, o casal estrela da intelectualidade romana. Laura Betti vem fugindo da correção provinciana de Bolonha com seu eletrizante unipessoal de music-hall. Pasolini chegou a Roma para ser o escritor que no Friul lhe impediram ser (utilizaram seus poemas como evidência para retirar seu cargo de professor em um ignominioso processo judicial). Os dois se reconheceram instantaneamente como almas gêmeas, nessa Roma que já é casa tomada pela dolce vita que Fellini haverá de imortalizar em breve (Federico presenteará Pier Paolo com seu primeiro carro, um Fiat 600, em agradecimento por ter lhe apresentado Betti, a quem dará um papel em A Doce Vida, permitindo que ela própria escreva suas falas).
A reportagem é de Juan Forn, publicada por Página/12. A tradução é do Cepat.
Os paparazzi a batizaram La Giaguarina (filhote de onça-pintada) por seu casquete loiro platinado e seus olhos estirados até as têmporas pela maquiagem. Em seu show “Giro A Vuoto”, Betti canta textos escritos especialmente para ela por Moravia, Italo Calvino, Vittorio De Sica, André Breton e Pasolini (“Ballata dell Suicidio”), musicalizados por Kurt Weil, Nino Rota e até por Igor Stravinsky. Segundo a imprensa, La Giaguarina inventou uma nova forma de glamour, que combina provocação e desprezo e deixa sua plateia sem alento. Na noite em que se conhecem, é ela quem toma a iniciativa. Encara Pier Paolo, que leva longo tempo a olhando de longe com os óculos escuros, e lhe diz: “O que lhe provoca medo? Quer saber o que penso de você? Que cheira primavera e pão fresco”. Horas depois, pendurada em seu braço e à deriva pela incombustível noite romana, apresenta-o como “meu marido” e acrescenta: “Sou sua devota escrava”. Pasolini aceita o jogo: pouco depois, a apresentará a Godard, a Barthes e a muitas pessoas mais como “minha mulher não carnal”.
O que começou como um desafio aos preconceitos da época foi se tornando cada vez mais certo com o tempo. Ela cozinhava seus pratos favoritos, ele a acompanhava na visita a videntes. O problema era que sabiam estar juntos sós, mas se tornavam impossíveis quando tinham pessoas ao redor. Pier Paolo levava sem permissão a seus ragazzi di vita ao departamento, na Via del Babuino, onde La Giaguarina recebia como uma rainha sua claque. As festas acabavam quando os dois se fechavam na cozinha, deixando os convidados sem comida, nem bebida, enquanto brigavam a gritos. Morante lhes disse uma vez, do outro lado da porta, farta de esperar com a copa vazia: “Por que não deixam de gritar e agem de verdade, ao invés de palavras?”.
Contudo, todas as vezes que Pasolini era levado aos tribunais (acusado de “psicopata do instinto”, “anômalo sexual”, “ameaça social”), La Giaguarina estava sempre na primeira fila, olhando-o sem pestanejar para lhe dar apoio. E tenha-se em conta que Pasolini sofreu trinta e três processos judiciais. Segundo Pier Paolo foi ela, filha de advogado, quem lhe presenteou com o hoje famoso verso “em um inocente não se acredita nunca”. Com poucas pessoas se abriu tanto como com ela. Assim que a conheceu havia lhe dito: “Não posso me permitir errar em nenhuma de minhas obras. Meus inimigos me despedaçariam e meus amigos deixariam de me estimar”. La Giaguarina foi tudo menos tolerante com ele. Quando Pasolini conheceu Ninetto Davoli e começou a ir todos os dias ao ginásio, ela o repreendeu: “Onde ficou toda a sua doçura? Prefere usar a máscara dos músculos, como Mishima?” Quando uma úlcera perfurada o prostrou em cama, durante meses, e Pasolini retomou a escrita, La Giaguarina não só cozinhou e cuidou dele, como também lhe disse: “Por fim, você compreende que é poeta. Prefiro mil vezes seus poemas a seus filmes, ainda que me deteste por isso” (Italo Calvino também lhe disse o mesmo, em uma bela carta que está em Os livros dos outros: “Não há possibilidade de que consiga abandonar toda essa vanglória do mundo do cinema para voltar a ser o escritor que, antes de tudo, é?”).
Quando Pasolini levou O Evangelho segundo São Mateus ao Festival de Veneza, e perdeu para O Deserto Vermelho de Antonioni, anunciou para La Giaguarina que abandonava o cinema. Ela lhe gritou: “Justo agora que chegou ao ponto em que, por fim, você pode filmar o que deseja? Pode fazer a vida de Gramsci! Se quiser, até esse filme sobre São Paulo você pode fazer!” Que bom teria sido. Lamentavelmente, Pasolini não filmou nem um e nem outro, mas não abandonou o cinema, e tampouco deixou de apelar a ela como atriz. Pediu a mesma que estivesse a seu lado quando inventou, para o filme Capricho à Italiana, a insólita dupla de atores Totó e Ninetto Davoli. E em Teorema lhe deu o papel de empregada submissa, que lhe valeu o prêmio de melhor atriz em Veneza, e por causa do qual ficaram dois anos sem se falar, depois que La Giaguarina ameaçou se suicidar no meio da filmagem.
Durante esse período de ostracismo, ela fez a voz do diabo na dublagem em italiano do filme O Exorcista e lhe enviou ingressos para a estreia. Em uma carta adjunta, dizia-lhe: “Nego ter tido um comportamento que não fosse poético e não posso acreditar que logo você não compreendeu isso. Mas, bom, confesso que estranho suas sublimes ausências de sensibilidade, sinto saudade de sua angústia egoísta, porque não quer me ver?”. Pier Paolo nem lhe respondeu. Mas, quando precisou dela em Saló (“Ninguém quer atuar neste filme, estão me deixando só”), ela voltou a estar ao seu lado. E foi a última de seus amigos a vê-lo com vida, na tarde do dia primeiro de novembro de 1975, horas antes que fosse assassinado. O encontro foi para falar de cinema. Ele queria convencê-la a aceitar fazer de Adolf Eichmann (!!!), em Porno-Teo-Kolossal, o delirante filme-denúncia que Pier Paolo queria filmar em Nova York, na Palestina e na China de Mao (isto não foi possível, mas La Giaguarina faria, alguns anos depois, sua atuação mais colossal, como a fascista erotomana esposa de Donald Stherland, no filme 1900).
De 1975 até sua morte, em 2004, Laura Betti dirigiu a Fundação Pasolini (que ela mesma criou), coordenou a edição definitiva dos livros de Pier Paolo, doou a Cinemateca Italiana cópias restauradas de todos os seus filmes e filmou um dos melhores documentários que existem sobre ele (PPP, a razão de um sonho), onde diz: “A direita não só orquestrou e acobertou o assassinato de Pasolini, como também até inventou uma estúpida teoria conspirativa que sustenta que ele organizou sua própria morte como um martirológio”. E até o final repetiu a mesma frase, cada vez que lhe perguntavam por ele: “Sua morte me deixou sem histeria”.
Em 1971, a Vogue italiana pediu a diferentes artistas que escrevessem um necrológio, ambientado em 2001, sobre alguém que admiraram. Pasolini a escolheu, predisse que morreria dormindo e a terminou assim: “Em suma, esta é a despedida de uma heroína indomável, que não por ser filha de advogado deixou de ser a melhor das cozinheiras e sustento exemplar de um turbulento como eu”.
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Dois contra o mundo: Pasolini e Betti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU