16 Setembro 2016
"A história das igrejas cristãs, sobretudo recuperando os valores luteranos, assim como reconhecendo seus limites e contradições, permite uma apreciação mais realista de Lutero".
O comentário é do biblista e monsenhor italiano Giovanni Giavini, capelão durante o pontificado de João Paulo II, em artigo publicado por Settimana News, 08-09-2016 . A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Depois de ouvir o discurso Lutero sobre Nossa Senhora, não se pode perder aquele sobre o sacramento da Eucaristia. Também este remonta ao ano de 1520, ano da sua excomunhão. Ele dedica um longo sermão, com aprofundada catequese, tanto para o clero como para os leigos. Suas principais ideias estão aqui: a centralidade de Cristo, o valor secundário das obras humanas, um pouco de pessimismo (por alguma razão, menos forte aqui do que o habitual), polêmica contra a hierarquia eclesiástica e certa religiosidade popular do seu tempo, segundo ele, demasiada exterior e superficial.
Comecemos exatamente daqui. Depois de recordar como os primeiros cristãos participavam Eucaristia dominical, ou seja, com fé viva e caridade, Lutero escreve: "Naquele tempo, um cristão cuidava do outro, ficava perto dele, tinha compaixão; agora tudo se descolore, tantas missas, uso abundante deste sacramento (!), sem compreender seu significado, sem qualquer exercício para tal... Muitos não querem ser solidários, nem ajudar os pobres, suportar os pecados, cuidar dos miseráveis, sofrer com os que sofrem, orar pelos outros, nem mesmo defender a verdade e promover um aperfeiçoamento da Igreja ... não sabem fazer outra coisa, com o sacramento, senão temer e honrar com suas oraçõezinhas e devoções o Cristo presente no pão e no vinho ....".
É preciso, diz, com razão, ajudar essas pessoas a redescobrir o verdadeiro sentido da Eucaristia, o que faz no início de seu sermão, com lúcidas declarações de teólogo e catequista: "O santo sacramento do altar - como o batismo - tem três aspectos: o primeiro é o sacramental, ou seja, o sinal. O segundo é a coisa significada pelo sinal sacramental. O terceiro é a fé nos dois anteriores. Todos os três são necessários".
A respeito do sinal Lutero enfatiza a escolha, que vem do próprio Jesus, de usar pão e vinho, ou seja, duas espécies ou elementos externos. Embora, no tempo de Lutero, prevalecesse o uso da comunhão eucarística somente com o pão, Lutero recomendava e pedia que a comunhão fosse feita com pão e vinho, porque "Jesus deu, no pão, sua verdadeira carne mortal e no vinho, o seu verdadeiro sangue... demonstrando que não só a vida e as boas obras manifestas e realizadas em sua carne, mas também a paixão e o martírio, manifestos em seu sangue derramado, são para nós e nós podemos participar de tudo isso, apreciar e fazer uso". Interessante a explicação sobre o duplo sinal eucarístico, mais capaz, segundo ele, de manifestar o significado verdadeiro de comunhão com o Senhor. Não se pode tirar-lhe a razão. Compreende-se também porque entre nós introduziu-se, pelo menos em algumas ocasiões, a comunhão com pão e vinho consagrados; isto, pelo menos, a partir Vaticano II, não obstante as óbvias dificuldades práticas.
Pode-se notar que Lutero, muitas vezes, fala da "verdadeira carne e do verdadeiro sangue" de Cristo. Ou seja, tanto para ele, como para tradição anterior, desde, pelo menos, os Padres da Igreja, como Santo Ambrósio, na Eucaristia há uma presença "real" do Senhor. Certamente é uma presença assaz misteriosa, não física, mas nem mesmo puramente simbólica. Lutero colidiu de frente também com seu contemporâneo, o reformador suíço, Zwínglio, que acreditava apenas na presença simbólica (como a da pátria na bandeira).
Lutero entendeu que certamente tratava-se de um mistério mais único que singular. Em que sentido se pode compreender a presença "real”, mas não física ou material? A Igreja Católica, há alguns séculos, tenta explicá-lo com o termo "transubstanciação", ou seja, por meio de uma mudança não material ou externa, mas por meio de uma mudança profunda, isto é, na "substância" do pão e do vinho, substituída por aquela do corpo e do sangue de Cristo. Um exemplo: todo mundo come um pedaço de pão, mas a substância do pão existe em todos os pedaços de pão deste mundo; por isso todas as hóstias consagradas, mesmo que cada um tome apenas uma hóstia física, única e comum, possuem a mesma "substância", isto é, aquela de Cristo. Assim a Igreja Católica explicava o dogma: Cristo está presente, ao modo "de substância": talvez pudéssemos dizer: está presente com seu Espírito e no-lo comunica sempre mais.
Lutero, no entanto, não gostava da explicação Católica e não a entendia (ainda hoje, para nós, é difícil, não só como pronunciar palavra), por isso, escreveu: "Alguns exercitam-se na arte e nas sutilezas para descobrir onde permanece o pão quando se transforma na carne de Cristo, e o vinho, no seu sangue, e ainda, como uma tão pequena partícula de pão e vinho podem conter o Cristo inteiro, sua carne e seu sangue. Não importa que não se possa vê-lo. Basta saber que se trata de um sinal de Deus, no qual a carne e o sangue de Cristo estão verdadeiramente contidos; o como e o onde, vamos deixar para Ele". Por isso, é calúnia afirmar que Lutero, ignora a teoria da transubstanciação, negando a presença real de Cristo (agora, de per si, do Cristo glorioso) no sinal eucarístico. No entanto, ainda hoje, esta calúnia se repete. Claro, Lutero não preocupou-se de outros aspectos da Eucaristia, mas as calúnias são sempre detestáveis.
Sobre a presença real e mesmo misteriosa, Lutero se dedica longamente, e insiste num aspecto que nós, por muito tempo, deixamos engavetado: a "comunhão dos santos do céu e da terra": "Jesus preferiu as formas do pão e do vinho para expressar, mais amplamente, a unidade e a comunhão realizadas no sacramento; pois não há união mais intima, profunda e indivisível do que a união do alimento com aquele que o comeu, enquanto o alimento entra e se transforma na própria natureza e torna-se um único ser com aquele que se alimentou. Outras maneiras de se unir, como acontece com pregos, cola, barbante ou outras coisas tais, não fazem das coisas amarradas um ser indivisível.
Da mesma forma, nós também, no sacramento, estamos unidos com Cristo e incorporados com seus santos, tanto que ele assume as nossas partes, fazendo ou não por nós, como se ele fosse o que nós somos, e o que nos acontece, também acontece a ele, ainda mais do que a nós; para que nós também pudéssemos assumir suas partes, como se fôssemos o que ele é ... Tão profunda e total é a comunhão de Cristo e de todos os santos conosco... que destruirá completamente o pecado em nós, tornando-nos semelhantes a ele, no dia do julgamento. Por isso, devemos unir-nos aos próximos e eles a nós, no mesmo amor.
Em conclusão: os frutos deste sacramento são comunhão e amor; nele somos fortificados contra a morte e contra todos os males. Tal comunhão possui duas faces: uma, pela qual desfrutamos de Cristo e de todos os santos, a outra, pela qual deixamos que todos os cristãos desfrutem de nós, tanto quanto eles e nós pudermos. Assim, o amor egoísta, por nós mesmos, é expulso por este sacramento, deixando lugar ao amor altruísta; do mesmo modo, para a transmutação do amor, o sacramento torna-se (também) um pedaço de pão, uma bebida, um corpo, uma comunidade: esta é a verdadeira unidade fraterna cristã".
Disso podemos compreender melhor a crítica que Lutero fez a certos cristãos do seu tempo, que reduziram a comunhão eucarística a algo íntimo ou até mesmo egoísta, sem a dimensão da fé, da eclesialidade e da caridade. Isso, porém, não aconteceu somente cinco séculos atrás, mas, ao contrário, é um risco permanente, está sempre por perto. Sobretudo para nós, padres, expostos ao risco do hábito e da Missa unicamente por dever pastoral.
Depois do texto anterior, Lutero adicionou outros sobre as "confraternite" de seu tempo. Leremos apenas um, como pálido exemplo daquela linguagem cáustica e quase trivial, a qual muitas vezes se indulgenciava, especialmente nas conversas conviviais com amigos. "Primeiro de tudo, queremos considerar o uso indevido das confraternite, dizendo o seguinte: nos reunimos para nos empanturrar e embriagar, fazemos celebrar uma missa, ou mais missas, e depois nos dedicamos ao diabo, o dia todo e a noite toda, e no dia seguinte, e não fazemos outra coisa senão desagradar a Deus. A confraternite não passa de uma gangue e de uma usança pagã, na verdade, animalesca ... seria melhor abolir essas confraternite, pois são uma grande afronta a Deus, aos santos e a todos os cristãos, pois fazemos do culto e dos dias de festa uma troça do diabo.
Os dias santos devem ser comemorados e santificados com boas obras, e a confraternite deveria ser uma comunidade especialmente dedicada às boas obras; ao invés disso, porém, tornaram-se uma reunião para beber cerveja. O que fazem os nomes sagrados da amada Nossa Senhora, de Santa Ana, de São Sebastião ou de outros santos, em tua irmandade, se não é outra coisa que um encharcar-se de bebida, farras, desperdício de dinheiro gasto inutilmente, vociferos, gritos, conversas, danças e perda tempo? Se você quisesse colocar uma porca como patroa de uma fraternidade, esta não iria aceitar! Porque tentam deste modo os amados santos, abusando de seu nome, com ultrajes e pecados, e desonram e blasfemam sua fraternidade com tais coisas? Ai daqueles que as fazem e as promovem" [1].
Não todo Lutero está aqui, claro, mas apenas uma amostra de seu vulcânico e muitas vezes polêmico discurso. Não podemos, no entanto, ignorar os muitos fragmentos de ouro que comunicava aos alemães, em 1.500, e não somente aos alemães. A história das igrejas cristãs, sobretudo recuperando os valores luteranos, assim como reconhecendo seus limites e contradições, permite uma apreciação mais realista de Lutero. Deixemos a Deus o juízo mais verdadeiro.
Nota:
[1] Também as páginas sobre a Eucaristia são tiradas de VINAY, V. Scritti religiosi di Lutero. Torino: Utet, 1967, p. 308-322.
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Lutero e a Eucaristia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU