Por: Jéferson Ferreira Rodrigues | 18 Agosto 2016
A espiritualidade é um “estilo de vida” no Mistério, que inspira e provoca uma existência vivida com qualidade e plenamente. É o exercício de “viver bem”, degustando cada momento da vida, fazendo com que a existência irrompa no/com seu próprio sabor. Nele superam-se os medos para atingir a plena liberdade e a sabedoria como vivência qualificada (Luc Ferry).
As religiões são espaços propícios para cultivar essa dimensão espiritual. Elas não são restritivas e exclusivas, sobretudo porque o Mistério, mesmo não nominado, mas experimentado está para além de qualquer contexto particular. Isso fica mais claro, depois que tiveram que conviver com uma forte crítica elaborada pelos profetas do “fim da religião” na modernidade e na secularização, sobretudo diante do não cumprimento da profecia.
Hoje se vê uma explosão do “espiritual” vivido numa pluralidade de experiências. Existe a busca por uma existência nutrida por algo/alguém, que não está reduzido numa imanência absoluta, mas abre-se num horizonte de transcendência e transparência. Nela ensaia-se um “respiro” para além da dureza cotidiana, na aventura de encontra-se plenamente, numa mútua relação consigo, com outros seres e com um Mistério inesgotável.
Na tradição cristã, a espiritualidade foi concebida e vivida desde muitas perspectivas, partindo do e se encontrando no Mistério radical, manifesto na pessoa de Jesus de Nazaré, o Filho. Foi pensada desde o “alto” (com as virtudes de um existir ideal) e desde “baixo” (com as realidades do cotidiano). Não lhe faltaram compassos e descompassos. O discernimento é o nexo articulador para perceber as anomalias e sintonizar tal dimensão com outras dimensões do existir humano.
O existir humano, em suas dimensões, precisa ser transpassado por uma espiritualidade adequada, que o considere nas suas possibilidades e limitações. Eis o desafio de pensar e viver tal relação, diante de um humano desadequado: esquecido por aqueles(as) que tem a tarefa de promovê-lo, negado em seus direitos, condicionado a uma mobilidade humana ineficiente, submetido a uma jornada de trabalho desumana, etc.
O Concílio Vaticano II intuiu a “experiência espiritual” de forma inédita. Ele conectou-a com a experiência da santidade, que atinge a todos(as) e nada tem haver com “super-heroísmo” da fé, mas com a ousadia de ser gente num cotidiano tão complicado. Nela promove-se a dignidade da pessoa humana, para que diante de si, tenha condições de compartilhar um “mundo diferente” na companhia de outros e do Mistério.
A espiritualidade proposta, no Concílio Vaticano II, não é um espiritualismo “das alturas”, mas uma experiência concreta da condição humana (humanismo), revelando-se como luzeiro de novas lógicas e novos sentidos. O ser humano aprende a encontrar o sentido radical, na pluralidade de caminhos, e aprende a degusta-lo desde os sabores que lhe são próprios, especialmente os traços próprios de sua cultura.
Tal feito foi possível devido à opção conciliar de mudar seu método, para que coubesse outro conteúdo, digno do ser humano daquele e de cada tempo. Não foi sua pretensão fabricar anátemas, mas reconciliar-se com os distanciados, por percalços históricos: mundo moderno e o mundo das outras igrejas cristãs. Com isso, não se acentuo um “estilo” legislativo e jurídico, típico do Senado Romano, mas abriu-se ao outro no elogio daquilo que têm de melhor.
“a escolha de um estilo é uma escolha de valores,
uma escolha de prioridades,
uma escolha de identidade,
uma escolha de personalidade,
uma escolha, neste caso,
que tem a ver com a pessoa que o Concílio
queria que cada um e cada uma de nós fosse”.
(John O’Malley)
John W O’Malley, no Cadernos Teologia Pública, edição 90, reflete sobre a espiritualidade humanística do Concílio Vaticano II. Ressalta que o caráter “humanístico” do Concílio está atrelado a sua disposição em mudar seu estilo e método: dos anátemas para o epidíctico. É um elogio ao outro, buscando um caminho conjunto, no âmbito dos documentos e de uma prática possível. Isso tudo acaba realçando uma espiritualidade, conjugada com santidade, que promove um humano autêntico e digno de sua história na companhia de si, dos outros e do Mistério.
Para acessar o texto: clique aqui
John W. O’Malley é um jesuíta norte-americano, doutor em História pela Harvard University, professor de teologia da Georgetown University e membro da Fundação Guggenheim e da Sociedade Filosófica Norte-Americana. Ele participou do II Colóquio Internacional IHU – O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade.
Eis algumas obras:
The Jesuit – A history from Ignatius to the present (Canadá: Rowman & Littlefield, 2014)
O que aconteceu no Vaticano II (São Paulo: Loyola, 2014)
Trent – What happened at the Council (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2013)
The first Jesuits (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995).
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Espiritualidade e Vaticano II: a arte de “um viver bom e santo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU