08 Agosto 2016
Elena Loewenthal publica um excelente livro de Miti ebraici [Mitos hebraicos], obedecendo à diversão e ao prazer. Antes do tempo e do espaço, o mundo existe na mente de Deus, com um gesto. Esse gesto se chama Tsimtzum: redução. O Senhor se põe ao lado para dar lugar ao mundo, que é a ausência divina.
O comentário é do ensaísta e crítico literário italiano Pietro Citati, um dos mais respeitados literatos contemporâneos, em artigo para o jornal Corriere della Sera, 04-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Louis Ginzberg publicou na Filadélfia, entre 1925 e 1967, uma grande coleção em sete volumes de Legends of the Jews: pela editora Einaudi, Elena Loewenthal imprime um excelente livro de Miti ebraici [Mitos hebraicos], obedecendo à diversão e ao prazer.
O livro começa com tohu wahohu: um caos feito de sopro leve e consoantes de som fugidio; um caos onomatopeico à beira de um precipício que cai no nada. Antes do tempo e do espaço, o mundo existe na mente de Deus, com um gesto. Esse gesto se chama Tsimtzum: redução. O Senhor se põe ao lado para dar lugar ao mundo, que é a ausência divina. Deus deixa de encher todo o não ser, para permitir que o ser exista: essa autoprivação é, ao mesmo tempo, sublime e repleta de angústia.
O coração do livro de Loewenthal é a árvore da vida: tão grande, diz a tradição, que são necessários 500 anos para chegar a uma distância igual ao diâmetro do seu tronco. Ela está no centro do jardim do Éden: a árvore do conhecimento do bem e do mal forma, ao redor dele, uma estepe de proteção. Apenas quem atravessa os ramos dessa árvore pode se aproximar da árvore da vida. Como dizem os primeiros capítulos do Gênesis, Deus não quer que isso aconteça, porque o seu fruto concede a imortalidade; e, por essa razão, ele pôs em guarda um querubim de espada de fogo.
A árvore da vida é belíssima: Deus repousa na sua sombra. Ela produz nos seres humanos "uma alma suplementar", da qual entram em posse o Sábado, para saborear mais profundamente o dia santo. De um ramo dela, Moisés obtém a sua vara, que transforma em serpente, para convencer (inutilmente) o Faraó a deixar os filhos de Israel partirem do Egito. A árvore da vida é a Torá, que Deus ditou no Monte Sinai: sob ele, dorme o profeta Elias, que desce à terra para cumprir os atos de justiça ordenados por Deus.
Com a palavra, Deus cria todas as coisas: só uma coisa Ele não cria com a palavra; Adão, que Ele forma com a terra seca e quebradiça. Adão é feito de terra: o seu nome significa "terra"; a sua razão de viver está no fato de trabalhar o jardim do Éden, mantendo-o vivo e invocando a chuva para torná-lo exuberante.
Quando Adão e Eva saboreiam o fruto da árvore do conhecimento, eles adquirem o conhecimento de estarem nus e costuram uma folha de figueira para fazer um cinto. A nudez é o sinal da sua vulnerabilidade diante da vida e da morte.
Antes disso, os corpos de Adão e Eva estavam revestidos com uma espessa pele de couro e envoltos em uma nuvem de glória. Assim que deglutem a primeira mordida da fruta, tanto a pele de couro quanto a nuvem de glória desaparecem. Os túmulos de Adão e Eva – conta a tradição – são cavados no fundo da gruta de Hebron. Os seus corpos continuam emanando o aroma suave do Paraíso; e se tornam cada vez mais suaves, enquanto avançam no tempo. Alguns anjos invisíveis estão de guarda na entrada da gruta, protegendo o seu eterno repouso.
O livro de Loewenthal nos revela a figura, a beleza e o perfume dos anjos, essas criaturas invisíveis, não necessariamente boas, que vivem ao nosso redor, no ar, nas recordações e nas esperanças. Quando Deus criou Adão, alguns anjos ficaram felizes; outros, cheios de dúvidas. enquanto o da paz imaginou a futura queda. Quase todos os anjos pensaram que não se devia dar muita importância ao ser humano, uma criatura improvisada, formada com um punhado de terra e com um sopro de ar.
"O que é o ser humano para te recordares dele? O filho do homem, para dele cuidares?", disseram os anjos a Deus. Os anjos zombaram da estranha ideia que Deus tivera de moldar, no fim da criação, aquele ser de carne, sangue, terra, palavra. Eles ficaram com ciúmes do ser humano. Mas, por um lado, revelaram ser inferiores ao ser humano: quando Deus lhes disse para darem um nome para as coisas que tinha acabado de criar, eles não foram capazes de encontrá-lo; enquanto isso, Adão proferiu em perfeita ordem os termos de todas as coisas, das plantas aos conceitos. Os anjos o escutaram mudos e consternados: depois, inclinaram a cabeça e se renderam diante do último achegado, que sabia muito mais do que eles em matéria de palavras.
Duzentos anjos caíram do cume do Monte Hermon para se unirem às filhas do ser humano, belas e sedutoras; e ensinaram a elas encantos, segredos e magias. A partir dessas uniões, nasceram enormes gigantes, que devastaram todas as coisas; e corromperam os seres humanos, embora lhes ensinassem coisas que não eram capazes de aprender por si mesmos.
Enoque, o único homem piedoso que restou sobre a terra, ouviu uma voz descer do céu: "Enoque, escriba justo, vá ao encontro dos anjos que abandonaram os lugares celestes contaminando-se com as mulheres: vá ao seu encontro e anuncia que não encontrarão nem paz nem perdão". Nasceram os espíritos malignos da terra, que devoraram, oprimiram, prepararam emboscadas, ameaçaram os homens e as mulheres, atentando à paz e levando o mal para toda a parte.
Entre esses anjos, apareceu o Anjo da Morte, que se chama, em hebraico, Malakh Hamawet, um nome quase doce. Era repleto de olhos cintilantes, que ninguém podia suportar: era muito alto e ameaçador; eram necessários 500 anos para abranger uma distância igual à sua estatura. Quem o entrevia, vacilava: empacava por causa do estupor, escancarava a boca; e, naquele momento, o Anjo da Morte deixava cair sobre ele a poção que lhe dava morte. Somente Moisés teve o privilégio de morrer não pela mão do Anjo da Morte, mas de um beijo de Deus na boca.
Moisés foi o maior dos profetas hebreus. Ele falou no lugar do Senhor, mas especialmente com o Senhor. Ninguém falou tanto com Ele: Abraão o ouviu em silêncio; Jacó lutou em sonho com ele. Exceto Moisés, ninguém nunca discorreu com Deus "boca a boca", sem ficar fulgurado com a sacrossanta presença divina. Ele transcreveu palavra por palavra a Lei ditada no Monte Sinai: entreviu a terra que o Senhor havia prometido a Abraão e aos seus descendentes; e chegou ao ponto de vislumbrar a destruição do templo de Jerusalém, a mais ruinosa de todas as destruições possíveis.
A cor celeste (tekhelet) era diferente de todas as outras cores da tradição hebraica: assemelhava-se ao firmamento, que, por sua vez, se assemelha ao Trono da Glória. Era dessa cor que deveriam ser as franjas, postas nos quatro cantos do manto da oração. Quando ainda existia o templo de Jerusalém, a cor celeste aparecia nos paramentos do Sumo Sacerdote. Então, o culto do eterno era praticado apenas nos templos: sacrifícios, ofertas, fumaça que subia ao céu. Agora, o templo não existe mais: em nenhum outro lugar do mundo, um judeu pode prestar o seu culto; ele pode rezar apenas com as palavras – a única coisa que nos restou.
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A árvore, os anjos, Adão: o esplendor dos mitos hebraicos. Artigo de Pietro Citati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU