01 Agosto 2016
A recente decisão da Suprema Corte salvadorenha derrubando uma lei de anistia que bloqueou processos por crimes de guerra por mais de 20 anos ameaça desestabilizar a frágil estabilidade política que foi alcançada em um país dilacerado pela violência do narcotráfico e com uma das taxas de homicídio mais altas do mundo.
A reportagem é de Linda Cooper e James Hodge, publicada por National Catholic Reporter, 28-07-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A decisão, tomada em 13 de julho, dissolve a imunidade dos membros de forças militares, para militares e rebeldes que cometeram crimes de guerra, bem como a imunidade dos que deram as ordens ou tinham responsabilidade de comando.
Ela também abre caminho para que as vítimas busquem indenizações e para que o governo processe as atrocidades cometidas durante a guerra civil, conflito que durou 12 anos e que terminou em 1992 com um acordo mediado pela Organização das Nações Unidas. A violência no país matou cerca de 75 mil civis e fez desaparecer outras 8 mil.
Embora essa decisão do tribunal esteja sendo naturalmente vista como uma vitória para os ativistas dos direitos humanos e aos que vêm lutando por justiça desde o final da guerra, muitos – incluindo alguns que haviam procurado a revogação da lei de anistia anteriormente – estão recebendo a notícia com cautela. Na política complexa de El Salvador no período do pós-guerra, tal decisão é vista como potencialmente desestabilizadora ou, no dizer de um analista, como uma “faca de dois gumes”.
Alguns questionam o tempo que o supremo tribunal do país, com sua maioria conservadora, levou para tomar a decisão, vendo o caso atual como uma tentativa de golpe velado que poderá cercear o presidente do país, Salvador Sánchez Cerén, ex-comandante rebelde que se opusera à lei de anistia.
A Aliança Republicana Nacionalista – ARENA, partido de direita no país, forçou a aprovação da lei de anistia em 1993, poucos dias depois que uma Comissão da Verdade, da ONU, relatou que militares formados e armados pelos EUA, juntamente com os seus esquadrões de morte e grupos paramilitares afiliados, cometeram 85% das atrocidades durante a guerra, enquanto que a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional – FMLN, hoje o partido governante, foi o responsável por apenas 5%.
Héctor Perla Jr., pesquisador do Conselho para Assuntos Hemisféricos, sediado em Washington, disse ao National Catholic Reporter que essa decisão é um passo importante para romper a cultura de violência e impunidade do país.
“Mas o meu medo”, disse ele, é que a decisão “estabeleça as bases para uma tentativa da direita de derrubar o governo Sánchez Cerén através de meios não eleitorais e antidemocráticos de um modo que atrapalhe totalmente as lutas por justiça que há muito tempo as vítimas vêm buscando”. De um modo que seja semelhante, segundo ele, “à forma como a direita no Brasil se utilizou de acusações anticorrupção para perpetrar uma tentativa de ‘golpe suave’ contra a presidenta Dilma Rousseff”.
Em um discurso à nação depois que a decisão fora anunciada, Sánchez Cerén criticou-a como uma ameaça à “frágil coexistência” que dá ao país a estabilidade que hoje tem.
A direita tem um histórico de ameaçar fazer acusações contra os ex-líderes da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional caso a lei de anistia fosse anulada, apesar de a Comissão da Verdade considerá-la apropriada por apenas 5% das atrocidades da guerra.
Assim que superou as estimativas em 2014, tornando-se o primeiro ex-marxista eleito para a presidência de El Salvador, Sánchez Cerén recuou em sua promessa de campanha que visava obter a revogação da anistia.
Ele assumiu o poder sem que o seu partido tivesse a maioria na Assembleia Legislativa, o que significava praticamente uma impossibilidade de revogar a lei por vias legislativas.
Sánchez Cerén, que foi professor escolar e que se tornou no comandante geral da FMLN, venceu a eleição contra o candidato da ARENA, Norman Quijano, abertamente defensor da lei de anistia. A diferença foi de apenas 6.300 votos.
Quijano imediatamente alegou fraude eleitoral e convocou os militares para que impedissem Sánchez Cerén de assumir o cargo. Porém o ministro da Defesa salvadorenho, o general David Munguía Payés, rapidamente dissipou os temores ao dizer que os militares não interviriam e que acatariam a decisão da Autoridade Eleitoral Suprema.
Munguía Payés, mantido por Sánchez Cerén em sua equipe governista, igualmente criticou a decisão da Suprema Corte, sugerindo que ela irá se transformar numa “caça às bruxas” num momento em que o país está sob o cerco do narcotráfico.
O país de seis milhões de habitantes atualmente tem, em média, um assassinato a cada hora. Não muito diferente dos dias de guerra civil, parentes de entes queridos desaparecidos dirigem-se a necrotérios para ver corpos encontrados diariamente em sepulturas sem identificação, frequentemente desmembrados com facões.
Segundo Perla, os anos de impunidade são um dos principais motivos por que “a violência na verdade aumentou no período pós-guerra; na prática, a lei de anistia emitiu um decreto que proclamou que o emprego da violência contra o seu adversário era um meio legítimo de resolver as diferenças”.
Em todo caso, a decisão tomada este mês pela Suprema Corte irá, provavelmente, dificultar as coisas para o governo de Sánchez Cerén, impedindo a aprovação de sua pauta voltada à promoção da educação e programas de assistência à saúde numa busca por reduzir a pobreza e o analfabetismo. Até mesmo acusações espúrias contra ele poderão enfraquecer o seu governo.
Mas essa decisão tomada em relação à anistia não é a única decisão da Suprema Corte que fez aumentar a pressão sobre o governo. Uma decisão recente anulou os aumentos de impostos progressivos e a renegociação da dívida que buscavam gerar fundos a serem empregados em medidas contra o crime.
Inclusive o general aposentado Mauricio Ernesto Vargas, que representou os militares no diálogo do governo com a FMLN durante a guerra, chamou a decisão pela revogação da lei de anistia de um elemento “desestabilizador” num país polarizado.
Mesmo assim, defensores dos direitos humanos estão esperançosos, com vários deles pedindo que uma procuradoria independente investigue os crimes de guerra.
Miguel Montenegro, diretor da Comissão dos Direitos Humanos de El Salvador, ele próprio tendo sido torturado por forças do governo [militar], disse esperar que este novo mecanismo seja posto em vigor de forma que o passado não se repita.
David Morales, do Ministério Público de El Salvador, considerou esta decisão uma vitória para as vítimas. Se os promotores e juízes perseguirem uma abertura, disse ele, é bem possível que haja uma reconciliação.
Até agora não houve reconciliação nacional, disse Perla, porque nunca houve cura. A lei de anistia “excluía qualquer possibilidade de responsabilização, remorso, pedido de perdão e esforços em fazer as pazes (...) excluía qualquer relato verdadeiro, indenização, justificação e empoderamento por parte das vítimas”.
Não há, porém, muitos indícios de que o país tem a vontade política para confrontar o passado e revisitar os horrores de uma das guerras mais ferozes na história recente da América Latina.
Douglas Meléndez Ruiz, procurador-geral de El Salvador, ainda irá anunciar planos específicos relativos à investigação e ao processo dos casos de crime de guerra.
Entretanto, ele já contribuiu para as dificuldades de governabilidade de Sánchez Cerén ao prender oficiais que ajudaram a levar a cabo uma trégua entre gangues locais. Ele também estaria visando importantes mediadores dessa trégua, incluindo Munguía Payés, que ajudou a intermediar uma trégua novamente em 2012, segundo reportagem de 20 de maio deste ano publicada no New York Times. Um ex-funcionário da Organização dos Estados Americanos que ajudou nessa intermediação contou ao jornal que não há motivo racional algum que justifique as ações do procurador-geral, e que elas são “todas ações com motivações políticas”.
Enquanto isso, o bispo auxiliar José Gregorio Rosa Chávez, de San Salvador, vem pedindo calma na esteira da decisão tomada pela Suprema Corte, pedindo que os salvadorenhos não reajam de forma exagerada, mas sim que busquem a reconciliação – jamais a vingança.
A Igreja entrou na contenda em torno da lei de anistia em 2013, quando o arcebispo conservador de San Salvador, Dom José Luis Escobar Alas, foi motivo de indignação internacional ao fechar o amplamente respeitado centro de defesa dos direitos humanos Tutela Legal, menos de um mês depois que a Suprema Corte concordou em considerar a constitucionalidade da lei anistia.
O centro, fundado pelo falecido Dom Oscar Romero, possuía milhares de provas de assassinatos e atrocidades que poderiam ser usadas em processos por crimes de guerra.
O caso da morte de Romero é um dos mais de 30 casos documentados pela Comissão da Verdade, da ONU, sugeridos para serem investigados por primeiro. Os demais casos incluem:
• O massacre Rio Sumpul de 1980, no qual militares abateram 600 salvadorenhos em fuga, inclusive muitas crianças e bebês.
• Os estupros e assassinatos em 1980 de quatro religiosas americanas.
• O massacre de El Mozote de 1981, em que Batalhão Atlacatl, treinado pelos EUA, executou sistematicamente 1 mil moradores, incluindo mais de 250 crianças.
• O massacre de El Calabozo de 1982, no qual o Batalhão Atlacatl metralhou mais de 200 homens, mulheres e crianças.
• Mais de uma dúzia de execuções entre 1985 e 1988 de prefeitos de cidades pequenas que a FLMN suspeitava de estarem trabalhando para os comandantes do exército.
• Os assassinatos de seis padres jesuítas em 1989, da empregada e sua filha pelo Batalhão Atlacatl.
Se El Salvador vai se juntar, ou não, às fileiras de outros países latino-americanos como Peru, Argentina e Chile, que aboliram leis de anistia e processaram crimes de guerra, pode depender, em certo grau, da colaboração de Washington.
Os EUA possuem dezenas de milhares de documentos que poderiam ajudar os promotores salvadorenhos. Defensores dos direitos humanos pediram ao governo Obama que tornasse não sigilosos esses documentos, dizendo que isso é o mínimo que os EUA podem fazer, dada a extensão da sua cumplicidade na guerra civil do país.
Os EUA só enviaram a El Salvador mais de 4 bilhões de dólares durante a guerra, como também treinaram milhares de seus militares na Escola das Américas, agora chamada de Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança, que usava manuais de treinamento que defendiam a tortura e execução entre os anos de 1982 e 1991.
Militares formados na Escola das Américas possuem relações com todas as grandes atrocidades documentadas no relatório da ONU, desde o assassinato de Dom Oscar Romero, em 1980, ao massacre aos jesuítas, em 1989.
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Decisão da Suprema Corte pode trazer justiça, instabilidade a El Salvador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU