Por: André | 28 Julho 2016
Barrancos acredita que se vive em Jujuy, Província situada no norte da Argentina, uma suspensão do Estado de Direito. Que se procura dividir a Associação Tupac Amaru para dar um aviso, razão pela qual manterão Milagro Sala presa o tempo que for necessário.
Durante uma homenagem realizada no ano passado na Universidade de Quilmes, Dora Barrancos perguntava: “Quem tem medo de Milagro Sala?” E respondia: “Os poderosos, os tíbios, os que são contra os direitos das maiorias populares”.
Socióloga, doutora em História e pesquisadora principal do Conicet, hoje diz que aquilo foi uma prévia do que se seguiu como se os novos ventos “pestanejassem”. Nesta entrevista explica por que acredita que em Jujuy existe um estado de exceção, onde ficam de fora as maiorias populares diante de uma “comandita” dos Três Poderes que se articulam muito fortemente com uma carga xenófoba em grandes segmentos da população.
A entrevista é de Alejandra Dandan e publicada por Página/12, 25-07-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
O que lhe diz a prisão dessa mulher que, segundo você, é temida pelos poderosos?
Não se pode ler a prisão de Milagro Sala senão no contexto da excepcionalidade, uma espécie de interrupção do Estado de Direito em Jujuy. Além das formas pouco republicanas – quase não há separação dos Três Poderes –, não há dúvida de que há uma intenção de interromper o direito das maiorias, de coibir ao menos a vontade política dos setores populares, tendo em conta o ciclo que acaba de se deixar, que significou o exercício do acolhimento dessas maiorias em uma política governamental de caráter inclusivo. Por isto, há uma figura de cessação do Estado de Direito porque deliberadamente se exclui os segmentos populares.
Mas, além disso, articulam-se nessa excepcionalidade – e vou dizer isso com muita prudência – sentimentos muito discriminatórios. Parte da sociedade de Jujuy é discriminatória. Não saberia dizer quais são os segmentos mais afetados pelas sensibilidades discriminatórias, mas me atrevo a dizer que são os setores médios, médios altos, embora não se possa deixar de conjecturar que há o acompanhamento de algum estrato médio baixo.
Essa circunstância não se refere apenas à comunidade Tupac Amaru, mas vem de longe e compreende todos os povos originários. Não é de hoje que nos preocupam as distorções mentais, as atitudes que costumam dominar, que desejam obstruir o reconhecimento da população indígena. Fala-se de “abuso” de direitos e da super utilização por parte dessa população dos serviços de saúde, por exemplo. Há uma operação mental de exclusão que também atinge a população boliviana.
Uma perspectiva dessas começa a indagar a defesa de Milagro, uma linha que trata justamente o ódio racial.
Há ódio xenófobo instalado há muito tempo. Está-se diante de uma tomada de consciência, entre os setores médios e altos com maior cumplicidade, com vistas a não reconhecer os “bolivianos” nem os grupos locais que em geral compartilham as mesmas origens étnicas. O notável é que se assiste a uma boa reprodução da população indígena em toda a região do norte, é uma demografia em crescimento e ela é percebida como uma ameaça.
Isso não é diferente da xenofobia europeia, mas entre nós o tema sofre de um processo de esconjuramento. Coloca-se em evidência uma atitude “preventiva”. Não poucos setores entram no “estado de prevenção”, o que equivale a imaginar: “eles vão me tirar algo, eles vêm para me roubar, esses que não têm o mesmo direito que eu”. É uma ferida que muito difícil de reconhecer. A Tupac representa essa coagulação do indígena ameaçante e que é rechaçado preventivamente por determinados grupos sociais que se tornaram individualistas, muito pouco solidários.
Mas não me parece que isso se assimile à construção do sentido xenófobo europeu ilustrado pela frase: “eles vêm para tirar o meu trabalho”. É um fenômeno diferente que leva a enunciar que “os negros não podem ter os mesmos direitos, porque não são iguais a mim, embora tenhamos nascido no mesmo país”. E isto é muito mais simbólico do que material e econômico, porque muitas vezes o enunciado é pronunciado por gente morena que compartilha semelhantes características étnicas.
Que papel a Tupac cumpriu nestes anos?
Há uma associação punitiva dos Três Poderes do Estado com relação a Milagro Sala. Chegaram a um acordo e não apenas tácito: o acordo é em torno da exemplaridade do assédio e da humilhação. É preciso cortar-lhe as asas, colocá-la em uma caixa e aniquilar sua liderança. O que mais constrange um movimento social, qualquer grupo, são as implosões, as manifestações internas de dissensos graves e irremediáveis.
E o que esta comandita dos Três Poderes se propôs a fazer é quebrar o movimento, fazê-lo dissentir profundamente, sobrecarregá-lo com conflitos internos; e é o que está conseguindo em alguma medida. Chama-se de modo separado os integrantes da Tupac para negociar, há tentativas de adquirir vontades, de fazer que abjurem do pacto coletivo. Em um movimento tão amplo como a Tupac sempre existiram pontos de vista diferentes, manifestações dissonantes. É sobre estes dissensos que opera a campanha de assédio para que rache completamente. Esse é o objetivo principal. Vão manter a Milagro Sala presa o tempo que for necessário, que, falando claramente, quer dizer até extinguir a Tupac Amaru.
É a metáfora do corpo desarticulado de Tupac Amaru.
Com certeza. É um esquartejamento. Não é provar que ela é ladra, isso lhes interessa muito menos. Ladra é a metáfora que está na superfície; abaixo, conta o movimento de esquartejamento. Acabar com a rebelião destes índios e destas índias e destes putos índios – é o que dizem – ou destas lésbicas índias, dada a liberdade enorme em matéria de sexualidade que o movimento tem e que creio que é um aspecto único em matéria de movimentos sociais na América Latina.
Por que considera que a Associação Tupac Amaru é um movimento singular?
É completamente original no leque de direitos que ela reivindica e esse é seu perigo; não é uma manifestação clássica dos movimentos sociais. Avançou-se muito em relação aos movimentos sociais de oposição ao neoliberalismo na década de 1990, e a Tupac Amaru é uma organização que se fez com clara hegemonia da liderança de uma mulher. Isto não é tão novo, porque houve muitas líderes piqueteiras nos anos 1990. A reivindicação do direito à moradia, à recreação, à saúde, ao trabalho, é bastante trabalhada, mas no caso da Tupac se tornou intenso também o direito a uma “vida digna de ser vivida” do ponto de vista da sexualidade, um reconhecimento das sexualidades dissidentes. Essa é a novidade da Tupac que tem anualmente também uma manifestação de grande festa com a marcha do orgulho gay. Estas festas mostram tramas de solidariedade muito peculiares.
Insisto em que quando se percorre a trajetória dos movimentos sociais típicos da Argentina, como o movimento piqueteiro, os direitos solicitados estão ajustados a uma base padrão: moradia, educação, saúde e trabalho. Foram movimentos que consagraram demandas frente à perda de trabalho, mas também construíram movimentos mais sólidos para além desse objetivo. Avançaram a partir dessa experiência de reunir-se para reclamar oportunidades de trabalho com a liderança de mulheres, como demonstrou, entre outros, Andrea Andújar.
Mas, passada a algidez da crise, muitas dessas mulheres subsumiram novamente em posições não públicas. A diferença é que a Tupac incorporou o reconhecimento das pessoas dissidentes em matéria de sexualidade ao programa de reivindicações.
A própria Tupac aparece estruturalmente como uma parte dessas identidades dissidentes. Pois bem, na linha que vai dos movimentos sociais dos anos 1990 até aqui aparece uma disputa pelo espaço político. Você acredita que isso se vê no reclamo de tipo impugnatório que fazem sobre a ideia do Estado paralelo?
Exatamente. A construção do “Estado paralelo”, como argumenta o poder em relação à expansão da Tupac, é o maior ponto de ressentimento. Não ocorreu a ninguém que injuriava as organizações sociais nos anos 90 falar de ameaça do “Estado paralelo”. No entanto, isto aparece aqui pelas características da Tupac: é uma meta organização social dado que o leque de direitos sobre os quais trabalha é mais variado. Por isso, ao imaginar agora o renascimento dos movimentos sociais com as assembleias populares e outros fenômenos – caso voltarem a se apresentar no cenário com a força dos anos 90 –, terão que abrir espaço para os novos direitos.
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“Eles se propuseram a quebrar o movimento”. Entrevista com Dora Barrancos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU