27 Julho 2016
Indígenas do povo Kaingang bloquearam nesta terça (26) a rodovia RS 150, no Rio Grande do Sul, exigindo a homologação imediata da Terra Indígena (TI) Rio dos Índios, no município de Vicente Dutra. Há décadas, os indígenas de Rio dos Índios – Kanhgág Ag Goj, em Kaingang – lutam pela demarcação de seu território tradicional.
A reportagem é publicada por Conselho Indigenista Missionário – CIMI, 26-07-2016.
Atualmente, 46 famílias indígenas vivem num reduzido espaço do território, em apenas 2 dos 715 hectares já declarados pelo Ministério da Justiça como de ocupação tradicional do povo Kaingang.
Confinada, a comunidade de cerca de 200 pessoas enfrenta grande preconceito na região e sofre com pouco espaço para as crianças viverem e com a impossibilidade de plantar e coletar material para artesanato e lenha.
Os indígenas afirmam que o bloqueio só será suspenso quando suas reivindicações forem ouvidas e o governo der um retorno sobre a homologação do território e a indenização das benfeitorias das cerca de 85 famílias de pequenos agricultores cujas propriedades, loteadas pelo Estado à revelia dos indígenas, incidem sobre o território tradicional.
Diversas lideranças Kaingang da região do Alto Uruguai participam da mobilização, em apoio aos parentes que vivem espremidos na TI Rio dos Índios, vítimas da omissão do Estado brasileiro em corrigir seus próprios erros.
Bem viver em Kanhgág Ag Goj
Junto com a mobilização iniciada nesta manhã, os Kaingang divulgaram um documento com o título “Pelo Bem Viver: Homologação JÁ” (clique aqui para ler na íntegra) open new windows. Na carta, enviada também à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Ministério Público Federal (MPF), afirmam sua luta por “Vida, terra, justiça e demarcação”.
“Nossa postura é pelo bem viver: categoria que vem sendo adotada pelos povos indígenas em diferentes contextos latino-americanos para expressar sua posição ética frente à sociedade, à natureza e à sobrenatureza, traduzida nos seus modos próprios de pensar, viver, sentir”, afirma o documento.
“Nesse sentido, imediatamente ressaltamos que o presente ato e postura socioambiental segue no horizonte da autodeterminação indígena, da sua organização social, ética, ambiental e política como movimento social”, diz a nota. “Esta parcela territorial é constitutiva da humanidade Kaingang desde tempos imemoriais e a postura pela retomada se insere num universo simbólico mais amplo que compõe a memória coletiva do nosso povo que atualmente lutam para reconstituir nosso território”.
Os que “não prestam”
Ao longo das décadas de luta dos Kaingang da TI Rio dos Índios pela demarcação de seu território tradicional, foram diversos os casos de conflitos, violência e ameaças sofridas pelos indígenas na região. Na avaliação do cacique de Rio dos Índios, Luís Salvador, os conflitos são motivados pela atuação de políticos locais e deputados federais.
“Quem quer nos ver brigar com os pequenos agricultores são alguns políticos, locais e federais. Não há conflito com o município, mas tem conflito com o poder político da região”, afirma Luís Salvador. “Há mobilização de deputados como Heinze [PP], Alceu Moreira [PMDB], para que aumente o conflito na região. Eles não querem resolver o problema, querem que os dois [indígenas e pequenos agricultores] se matem”.
Vicente Dutra foi o palco das famosas declarações racistas e homofóbicas do deputado ruralista Luís Carlos Heinze (PP-RS), quando, em 29 de novembro de 2013, ele afirmou que “quilombolas, índios, gays e lésbicas” são “tudo o que não presta”. A afirmação, documentada em vídeo, ocorreu durante uma audiência com produtores rurais, da qual participaram também os ruralistas Vilson Covatti (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS).
Na ocasião, Moreira – que preside atualmente a CPI da Funai e do Incra na Câmara dos Deputados – disse que os agricultores não deveriam permitir que nenhum “vigarista” ocupasse suas propriedades, e incitou: “reúnam verdadeiras multidões e expulsem [os indígenas] do jeito que for necessário”.
Pouco antes, naquele mesmo mês, cerca de 500 pessoas haviam se dirigido até a entrada da aldeia Kaingang de Rio dos Índios e tentado expulsar os indígenas da área, numa situação bastante tensa. O atrito teve origem em um ataque a tiros contra os Kaingang feito por um segurança do empreendimento turístico Águas do Prado, cujos cerca de 200 hectares fazem parte do território tradicional Kaingang e foram retirados da posse dos indígenas no ano de 1981, por meio de um decreto municipal.
Em 2014, um professor Kaingang foi assassinado em Vicente Dutra (RS), esfaqueado pelas costas.
Os deputados foram representados na Justiça por suas falas preconceituosas e de incitação ao ódio e à violência em Vicente Dutra, mas nenhum deles foi punido e as declarações se repetiram em outras ocasiões – recentemente, organizações indígenas da Bahia também entraram com ação contra novas declarações preconceituosas de Luis Carlos Heinze.
30 anos de espera
A realidade dos Kaingang de Rio dos Índios é exemplar da situação vivenciada por grande parte dos povos indígenas da região sul do Brasil: famílias vivendo às margens de rodovias, acampadas ou confinadas em pequenas áreas em situação precária, aguardando a demarcação de pequenos territórios.
Além da atuação criminosa de deputados ruralistas, os conflitos são acirrados pela morosidade do Estado brasileiro em demarcar os territórios tradicionais dos povos indígenas. A demarcação de Rio dos Indíos, reivindicada formalmente desde a década de 1990, só iniciou em 2000, com a formação do Grupo de Trabalho (GT) da Funai. O relatório de identificação e delimitação da área foi publicado em 2003 e a portaria que declarava a tradicionalidade da terra indígena, em 2004. Desde então, os indígenas aguardam a desintrusão e a homologação da área.
Recentemente, a TI Rio dos Índios foi incluída na lista “Assina, Dilma!”, quando o movimento indígena reivindicou ao governo de Dilma Rousseff a publicação das homologações e portarias declaratórias de vinte e duas terras cujos processos demarcatórios estavam prontos, sem nenhum impedimento jurídico, aguardando apenas a assinatura do governo federal.
Segundo Luís Salvador, os indígenas acreditam que os pequenos agricultores não são culpados pela política equivocada do Estado e, por isso, lutam também pela indenização das benfeitorias “de boa fé” incidentes sobre a terra indígena, conforme estabelece o artigo 231 da Constituição Federal.
“Tem que trabalhar em cima da Constituição. Ela estabelece que nós temos direito a nossas terras tradicionais e que os ocupantes de boa fé têm direito à indenização das benfeitorias. Já esperamos demais, são 30 anos de luta. Estamos reivindicando que o governo faça a homologação do nosso território e proceda com a indenização dos pequenos agricultores”, acrescenta Salvador. “Nossas terras são tradicionais, e não aguentamos mais esperar. Vamos bloquear a rodovia até o governo sinalizar com alguma solução”, conclui o cacique.
No documento divulgado nesta terça, os Kaingang afirmam que a mobilização cobra “a dívida histórica do Estado brasileiro” com os povos que resistiram e ainda resistem “aos processos violentos de colonização e desterritorialização”. “Exigimos a imediata homologação da Terra Indígena Kanhgáng Ag Goj e indenização dos proprietários de boa fé para o uso exclusivo do Povo Kaingang, para que possamos novamente por em diálogo corpo, pensamento e território Kaingang”, finaliza a nota.
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Kaingang bloqueiam rodovia no RS exigindo homologação de território tradicional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU